Nosso abraço durou um longo período de tempo. Eu queria confortá-lo. Eu iria ser seu porto seguro naquele momento. Só em ter ideia que ele estava sofrendo, eu também sofria. Uma parte de mim estava aquebrantada. A outra se manteve forte para ficar do lado dele.
No decorrer do dia, vários familiares foram chegando. O clima estava mais denso e triste a cada minuto que se passava. Eu tentava distrai-lo, mas quase todas as tentativas eram em vão. Volta e meia ele caia amargamente no choro.
- Primo... Vovô Dito era tão legal... Porquê ele tinha de ir...?
- Você já é grandinho o suficiente pra entender. Eu vou te explicar: Tio estava doente, para ele, era uma dor insuportável. Creio que ele não estava mais suportando. Você gostaria que ele tivesse vivo, conosco, mas sofrendo?
- Verdade... Mas eu sinto tanta saudades dele...
- Lembra do que a gente aprendeu na igreja? Ele está descansando agora.
O puxei pra mais um abraço. Era tão bom, estar ali, protegendo meu pequeno...
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Como eu precisava ir a escola no outro dia, eu precisa voltar pra casa. Mas no outro dia eu voltaria.
O carro de minha mãe estava estacionado perto de onde uma rodinha de meus primos se formara.
Neto, Caio, Matheus e Oliver, reunidos no mesmo lugar. Isso daria merda. Não queria deixá-lo ali. Mas, eu não tive escolha, e ele não poderia ir pra minha casa.
- Tchau gente, até amanhã.
- Por que tu não fica aqui com a gente? - perguntou Neto.
- Não posso... tenho prova amanhã. - menti.
- Oliver, fica bem tá? - disse o encarando e fazendo cafuné na orelha dele. Não sei porque, mas ele amava aquilo. Depois o puxei pra um abraço. Perdi a contas de quantos foram.
- Huuuuuuum - vaiou Matheus.
- Algum problema... primo? - disse já com as mãos apertando seu pescoço o imprensando contra o carro.
- N-n-nã-ã-o, f-f-foi s-s-só u-m-m-ma brin-brin-brincad-d-deira pri-primo... - gaguejou ele.
- ACHO BOM! - disse me virando. - Até amanhã gente.
Cada dia que se passava, eu suportava menos aquele menino. Garoto atrevido! Mas comigo, a banda tocaria diferente.
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- Fizeram a atividade que eu passei ontem? - perguntou o professor de matemática.
- Meu tio faleceu ontem, não tive a oportunidade de fazer os exercícios... - menti descaradamente.
- Tudo bem, mas eu pegarei os seus na próxima aula.
Pelo menos essa colou. Quando as aulas terminaram, eu voltei para o sítio.
Quando eu chego na entrada, minha prima Olivia vem correndo em minha direção:
- PRIMOOOOO! OLHA COMO EU TOU BONITA, EU VOU PRO ENTERRO DO MEU AVÔ!!! - exclamou ela.
Quase não contive a gargalhada, tão inocente... Nem sabia a gravidade do assunto.
- Minha princesa! - disse a pegando no colo. - Você tá linda, sabia? Cadê seu irmão?
- Ah, "Oleve" tá la na casa de Tia Milena com os meninos...
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Fui andando até a casa de minha prima Milena. O que será que estaria rolando ali?
Do lado de dentro, vinham algumas vozes. Logo eu as segui. Eles estavam conversando várias bobagens. Consegui identificar três vozes: Oliver, Caio e Neto. Ainda bem que o insuportável do Matheus não se encontrava. Mas teve uma hora que a conversa ficou mais... interessante.
- Desde quando aquele menino primo da gente? Nem conhecia ele. - perguntou Caio.
- Ele morava em outra cidade, também conheci ele a pouco tempo. - disse Oliver
- Hm... Ok. - respondeu Caio em desinteresse.
Caio não chegava a ser o mais bonito da família, nem de longe. Era um pouco parecido com Oliver, só que mais escuro e maior. Ele não era feio, o que eu achava estranho nele era a falta de um dos dentes da frente. Um tempo depois eu descobri como ele o perdeu. Bem trágico.
- O que tu acha dele? - perguntou Neto.
- Ah, eu gosto muito dele, ele me entende e sempre me defende quando eu entro numa briga... - disse Oliver.
O infeliz adorava criar confusão, e quem era a Maria Aparadeira? EuEle também é muito legal. Ele é o meu...
Nesse momento, eu tropecei em um entulho, me denunciando.
- Bu-ce-ta! - sibilei.
- QUEM É QUE TA AÍ? - perguntou Caio.
Merda. Ia ser pego no flagra bisbilhotando a conversa alheia.
- Será que alguém ouviu o que a gente tava conversando? - perguntou Caio.
- Não sei... - disse Neto.
- Vô... você que ta... tava ai pri... primo? - gaguejou Oliver.
- Que foi menino? parece que viu fantasma! - exclamei.
Pelo menos nao estavam falando mal de mim, se nao eu teria descoberto.
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Fui pro meu canto predileto, precisava pensar um pouco... Logo as lembranças de alguns momentos anteriores voltaram a tona.
"Eu gosto muito dele" - Será que gosta mesmo?
"Ele me entende e sempre me defende quando eu entro numa briga" - Pois é? Quantos dentes você ainda teria na boca se nao fosse por mim?
"Ele também é muito legal" - Apenas ajo naturalmente...
"Ele é o meu..." - Queria ter ouvido o resto da frase.
O que será que ele iria falar? Agora eu fiquei curioso de verdade.
Parece que nossos pensamentos estavam conectados. No exato momento que eu estava pensando nele, ele aparece. Estranho, até demais por sinal.
- Porque você sempre vem pra cá quanto tá aqui? - perguntou ele.
- Eu gosto desse lugar... bate uma brisa bem refrescante... e é longe de todo aquele movimento de pessoas... não sei direito... mas eu sei que eu gosto daqui.
- Posso ficar com você? - disse com aquela voz dengosa que eu amava.
- Não sei... Porquê não vai dar atenção a seus outros primos?
- Porque eu não quero. - disse ele já se aninhando em meu colo. Moleque ousado, não?
Enquanto olhava para o horizonte, fazia cafuné em sua orelha, ele amava aquilo, e eu amava fazer isso nele.
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Por volta das 16h, o carro da funerária apareceu. Foi ai que a choradeira começou de verdade. O corpo de meu tio seria levado.
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Assim que cheguei no cemitério, fui andar um pouco para espairecer. Gostava, e não gostava dali ao mesmo tempo. Era um lugar sagrado, de descanso. Os mortos jaz ali, em paz e do lado de fora, os vivos se matam pelo que os mortos deixaram pra trás, para se matarem também. Estranho, não?
- PRIMO! PRA ONDE VOCÊ VAI? ME ESPERAAAA! - gritou Oliver.
- Não sei, queria andar um pouco.
- Eu posso ir com você?
- Aham, vamos...
Saímos andando pelo cemitério, o lugar estava bem calmo, por sinal. Quero dizer, nunca vi um cemitério movimentado. Parece que os defuntos escolhem horário pra morrer sem causar tumulto.
- Olha lá! - disse Oliver apontando pra um tumulo cheio de objetos.
- Não mexe em nada! Pelo amor de Deus...
Foi o mesmo de ter falado com o defunto.
- Deixa isso aí... Depois o morto volta pra puxar seu pé eu não estarei lá pra te ajudar!
O pior é que ele acreditou, nem quis mexer mais em nada.
Continuamos a vasculhar as covas. Sentamos numa lápide de mármore bem grande. Estávamos olhando pro nada. Mas estávamos ali, juntos. Era o que importava.
- Primo?
- Oi?
- E se eu morresse?
- Se eu morresse? O que tu faria? - refiz a pergunta.
- Não sei... Eu acho que sentiria muito sua falta... Sabe? Você é a melhor pessoa que eu já conheci... Mas, e se eu morresse?
- Bem, eu acho que eu morreria junto.