Era final de outubro de 2013. Eu havia acabado de voltar das férias. Universidade pública tem disso. As greves modificam os semestres, e o que deveria começar num dito mês, inicia 3 ou 4 depois. Após 2 anos naquela universidade, eu nunca havia começado um período tão triste. Já estava na metade do curso, e dias antes eu havia conhecido Cibely pessoalmente. A volta dela pra SP congelou meu mundo. A aula de ética se arrastava pela manhã. Gastava a maior parte do tempo riscando um caderno que havia comprado especialmente pra escrever pra ela.
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Os feras invadiram a universidade, todo mundo empolgado com o curso, nem sabiam o que os esperavam. Coitados! Todo início de período era de praxe ir à sala do P1 pra dar as boas-vindas e tocar o terror com o trote. Mas nem isso me animou pra sair da sala. Sentava na última cadeira, da última fila, do lado esquerdo da sala. Tinha visão privilegiada do lado de fora, se afastasse a persiana uns 2cm. Embora as salas tivessem uma acústica boa, e o ar-condicionado ajudasse a preservar o som que era feito do lado dentro, ouvi um algazarra do lado de fora. Os feras estavam tumultuando e um idiota havia ligado o som no estacionamento superior (do lado da sala que eu estava). O Professor levantou do birô zangado. Pesava uns 140kg, tranquilamente. Subiu a calça, que tinha o péssimo hábito de estar sempre baixa, expondo seu “cofrinho”, puxou a barba ridícula que deveria ter uns 5cm abaixo do queixo e disse: Ninguém sai da sala! Abriu a porta, e uns 20 segundos depois o som parou. Quando ele retornou, meu desejo era que ele continuasse por lá umas 2h mais. Cocei os olhos, risquei algumas retas sem direção exata e olhei pela janela. Os feras ainda estavam se divertindo no corredor. Boa parte deles tinha aquela carinha de quem acabou de sair do Ensino Médio. Uma das meninas era tão magra, mas tão magra, que se virasse de lado, só a enxergaria de óculos. E no meio daqueles tantos, havia uma moça sorridente. Ela era pequena, tinha curvas definidas, embora não fosse magra. Biotipo normal, de brasileira com corpinho violão, só que mais pra cavaquinho de tão pequena, rs... Ela deveria estar falando algo bem engraçado, porque todos estavam ouvindo com atenção e rindo descontroladamente. Não dava pra ouvir. Despertei do transe com o professor me chamando.
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Respondi: Eu
Prof°: Você ainda está conosco?
Eu: Sim, estou sim.
Ele: Fez a atividade.
Eu: Então, não fiz o fichamento, mas havia grifado algumas coisas na minha própria apostila.
Ele: Então você leu.
Eu: Li sim.
Ele: E você entendeu o que você leu?
Eu: Rs... bom, aí já é outra história. (Todo mundo riu)
Ele: Tá lembrada que esse é só o primeiro dos 5 livros que irão cair na prova, neh?
Eu: Estou sim.
Ele: Mas leia alguma das coisas que você grifou aí.
Eu: Gostei de uma frase dele, e de uma citação que ele faz do Hesíodo.
Ele: Leia pra gente.
Eu: Bom, a primeira está na página 18, e diz:
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“Sua própria vida é aprazível por si mesma. Com efeito, o prazer é um estado da alma, e para cada homem é agradável aquilo que ele ama [...]”.
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E a outra é uma frase de Hesíodo, em que ele cita na página 9:
“Ótimo é aquele que de si mesmo conhece todas as coisas; Bom, o que escuta os conselhos dos homens judiciosos. Mas o que por si não pensa, nem acolhe a sabedoria alheia, esse é, em verdade, uma criatura inútil”.
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Ele: E por que essas frases lhe chamaram atenção?
Eu: A primeira porque por mais problemas que tive, sempre amei viver. Acho que muitas vezes concentramos nossa atenção em problemas tão supérfluos, e esquecemo-nos de nos alegrar das coisas mais simples. Viver é dom! A vida em si mesma é aprazível. A segunda porque acho que sempre fui uma pessoa muito introspectiva, e que demoro muito pra decidir algo. Penso muito sempre. Fora isso, tenho hábito de me consultar com dois ou três amigos pra saber a opinião deles. Não que ela vá determinar minha decisão, mas quem tá de fora as vezes enxerga coisas que quem tá do lado de dentro não consegue ver.
Ele: Hum. E você Thiago?
Respirei de alívio quando ele chamou o outro menino. Nem sei se respondi certo, mas queria mesmo era me livrar daquele interrogatório. Voltei a olhar pela janela e a moça, junto com os outros feras, haviam desaparecido. Não tornei a vê-los por muito tempo. Acho que também vivia tão concentrada nos meus pensamentos, que nem tinha vontade de me relacionar com outras pessoas.
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O ano virou, e chegamos em 2014. Minha relação com Ci estava relativamente conturbada. Ela passou a alta-estação trabalhando muito, e eu sofria com a ausência dela. Na verdade, depois de um tempo me dei conta de que havia me afastado de praticamente todos os meus amigos. Eu vivia em função de Ci, e a parte ruim disso é que me faltava alguém pra falar da minha relação com ela, que não fosse ela. Deu pra entender?
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Na volta às aulas o Centro Acadêmico criou um grupo de Whats App pra integrar os feras de vez. Eu estava com um tempo tão ocioso, que não me incomodei quando me colocaram sem minha permissão. Papo vai, papo vem, e a galera só falava besteira. Um dia lá, decidi das um "oi", de boa. A galera começou a conversar, e me perguntaram sobre alguns professores. Falei da minha experiência com eles, nunca tive muito problema. Alguns me perguntaram como eu havia me tornado bolsista. Expliquei dos procedimentos da pesquisa e da seleção. Até que eles começaram a mandar fotos. Me dei conta de que mal conhecia as pessoas do meu curso, eu nem andava mais pelos corredores. Nesse meio de gente todo, me dei conta de olhar quem de fato estava no grupo. Quando abri as informações, vi a foto da menina que havia visto ano passado pela janela. O nick: Thy. Ela havia visualizado algumas horas atrás. Tinha curiosidade de saber quem ela era, nada demais. Me pareceu uma pessoa bacana. Mas ela quase não falava mesmo. Quem tagarelava o tempo todo comigo era outra menina da turma dela, a Ana. Quando vi a Ana a primeira vez, soube que ela era lésbica. Tava na cara, tipo aquelas meninas meio másculas e que se vestem mal pra chuchu. Fico na dúvida se é homem ou mulher, sei lá. Num dos papos lá pelo grupo, a galera insistir pra eu mandar uma foto, Na época meu whats tinha um desenho no lugar. Falei que só mandaria no privado. Até que a Thy me chamou no privado:
Ela: Pois me manda uma foto. Quero ver se já te vi lá pela universidade.
Eu: Rs.. Pera, vou mandar uma.
Enviei.
Ela: Huuuum, andava por onde? Porque eu nunca te vi.
Eu: Rs... ando pelos subsolos da universidade.
Ela: kkkkkkkkk
Embora a conversa não tenha sido nada de extraordinário, ela me pareceu boa pessoa. Mas até então, eu nunca a havia conhecido pessoalmente.
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Era uma terça pela manhã, por volta das 10h da manhã. Eu estava saindo do laboratório quando esbarrei na Ana.
Ela: Oi Mah. Tudo bem?
Eu: Oi Ana. Tudo jóia, e com você?
Ela: Estou bem. Finalmente estou te vendo por aqui.
Eu: Rs... então, sou meio na minha mesmo. E a Thy? Nunca vi essa menina na vida.
Ela: Eita, ela tá na sala. Vamos lá.
Ela saiu me arrastando até o corredor. Falei que ia esperar do lado de fora. Eu tava usando uma bermudinha preta, uma pólo azul e uma havaianas azul também. Sempre fui pra universidade bem à vontade mesmo. Eu estava distraída com meu celular na mão, quando vi a Ana sair rebocando a Thy pelo braço. Ela tava com cara de assustada, e a Ana com cara de doida, rs... Numa fração de segundos, nos olhamos de uma maneira estranha, tipo como se já nos conhecêssemos. Chegou a ser incômodo.
A Ana iniciou as apresentações.
Ana: Thy essa é a Mah.
Eu estendi a mão e disse: Prazer, sou eu, a menina do subsolo.
Nossos olhos se ligaram quase que instantaneamente. Ela parecia ter olhos mutantes, que mudavam de cor. Embora de longe me parecessem escuros, de perto eles ficavam mais claros. Qual foi a parte engraçada? Ela levantou a sobrancelha, tipo aquele emotion do whats, com cara de sacana, rs... Me olhou de baixo acima. Fiquei tão sem graça que desviei o olhar.
Ela: Oi... é... desculpa a correria e te ver assim. Mas tô com pressa.
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Nisso chegou outra menina puxando ela pelo braço: Vamos logo.
Eu: Ah, tudo bem. Sem problemas.
A menina saiu arrastando ela pelo corredor, e ela continuou a me olhar até que a parede tapou nossa visão.
Ana: Ela é gente fina. Só tava com pressa.
Eu: Rs... sem pró. Vou lá, Ana. Bom encontrar você.
Nos despedimos e fui embora. Quando cheguei em casa, notei ela havia me deixado uma mensagem no meu whats.
Thy: Desculpa a correria. Queria ter ficado um pouco mais contigo, mas eu precisava resolver umas coisas. Por isso saí daquele jeito.
Dei risada olhando. Respondi que não tinha problema.
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Embora pudesse ser coisa da minha cabeça, senti que ela havia de fato me olhado de uma maneira diferente. Mas de toda forma não me importava. Eu amava Ci tanto, que não enxergaria outra pessoa nem que essa chegasse num cavalo branco, com buquê de flores, me pedindo em casamento, ao som de Iris, do Goo Goo Dolls. Quando ela me adicionou no Facebook, vi que ela namorava um rapaz. Então conclui que de fato havia sido impressão minha mesmo.
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Alguns dias depois, eu estava saindo da lanchonete com uma amiga, quando ela me disse que precisava falar alguma coisa com alguém na sala do P1, ou seja, na sala dos feras. Fui com ela. Lá chegando, havia apenas 3 pessoas na sala: A ana, uma amiga dela, e a Thy, lá num cantinho, na primeira fila, bem na frente do birô. Quando minha amiga viu que a pessoa que ela tava procurando não estava, quis voltar. Mas a Ana já havia me visto.
Ana: Mah, tudo bem?
Entrei na sala.
Eu: Oi Ana, tudo jóia.
Falei com a outra moça que tava junto dela e olhei pro outro lado da sala. A Thy tava toda introspectiva. Me dei um tchauzinho sem graça. Depois a vi falar no telefone meio alterada. Parecia com raiva. Fiquei ali falando com a Ana, mas prestava atenção nela o tempo todo. Queria perguntar se tava tudo bem, acontece que não sabia nem como começar. Então voltei pra minha sala. Olhei o whats, e ela estava on line.
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Eu: Hey, tá tudo bem com você?
Ela: Oi. Tá sim.
Eu: Aparece lá, mas você mal falou. Achei estranho.
Ela: Tá tudo bem, sério.
Eu: Sem problemas, queria pelo menos ter lhe dado um abraço. Mas fica pra próxima.
Ela: Não por isso.
Eu: Hãm?
Ela ficou off, e a professora entrou na sala. Droga, pensei.
O celular vibrou sinalizando nova mensagem no whats. Olhei e era dela.
Thy: Sai. Tô na frente da sua sala. Vim cobrar meu abraço.
Gente, por hoje é isso. Se cuidem!
Beijos
Mah
Sankofa
