"Pra te encontrar, Eu dou a volta no seu muro, Eu pulo seu muro...” (Selva Branca, Chiclete com Banana).
...
Olhei-me no espelho retrovisor. Não estava nervoso. Ainda não. Uma onda de confiança me levou até ali e já tinha fixado na mente que aquele seria um dia decisivo. Não importava o que aconteceria a seguir, o filho da puta seria o meu pontapé inicial para que cada um deles entendesse que mexeu com a pessoa errada. Liguei o carro. Era o momento de agir.
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Os cinco dias que mudaram o rumo do jogo:
Terça-feira:
Não consegui esboçar uma reação imediata. O desabafo de Gustavo me surpreendeu e precisava dar uma resposta que lhe transmitisse alguma segurança:
- Bom, pra começar... Bem-vindo ao time! – sorri.
Escutei uma risada acanhada escapar em meio ao choro, fazendo-o prosseguir com mais confiança:
- Eu ainda não sei o que pensar sobre isso. Digo, em assumir para todos – disse com timidez.
- Ei, não há o que pensar – procurava tranquiliza-lo – Nós somos o que somos. Simples assim!
Ele mantinha o olhar atento, como se me desafiasse a convence-lo:
- Coloque uma coisa na sua cabeça, Gustavo. Se você se descobriu gay, é sinal que tinha alguma coisa aí dentro impedindo que enxergasse com mais clareza. Todos nós passamos por alguma fase de indefinição na vida, e isso mostra que você está amadurecendo, se conhecendo melhor. Não tem porque sentir vergonha. Aliás, nunca deixe ninguém julga-lo por isso.
O meu ouvinte suspirou, ainda cabisbaixo.
- Quanto à morte de sua mãe, pare de se culpar! – continuei – Aconteceu o que era pra acontecer. O pessoal lá de cima às vezes surpreende com umas turbulências fortes na nossa viagem. Tenho certeza que em algum lugar ela está sorrindo de felicidade por ter educado um jovem tão íntegro como você. Quer melhor ocasião pra falar do que agora? Ela está te ouvindo em todos os lugares, cara!
Ficamos em silêncio por alguns minutos, mas procurei não dar espaço para a sua mente entrar em curto circuito:
- Ei, Dona Helena! – gritei, assustando-o – O Guga quer falar um negócio com você!
Ele sorriu e não resisti em acompanhar. Incentivei-o a dizer algo, gesticulando para que libertasse algo da sua boca.
- Eu... Sou gay – balbuciou, quase gaguejando.
- Fala sério, não me decepcione! Nem o melhor dos espíritos conseguiu escutar isso...
- Mãe, eu sou gay! – bradou alto no aposento.
Olhamos para cima, como a esperar alguma resposta.
- Bom, acho que o máximo que vai acontecer é ela puxar o seu pé de noite por não ter contado antes.
Gargalhamos e puxei-o para um abraço apertado:
- Acredite, ela ficaria orgulhosa – disse bagunçando o seu cabelo.
- Espero que sim.
- Ah, e acho que o medo da sua irmã nem merece uma resposta. A Ju sabe que eu sou gay desde sempre!
- Eu sei, mas sei lá, é diferente...
- Não tem porque ser. Mas fica tranquilo, ela vai escutar isso de você, não de mim.
Comecei a me afastar em direção ao meu quarto, e avisei que deixaria a porta aberta, caso ele carecesse de alguma coisa.
- Guto... – ele parecia encontrar as palavras certas para dizer – Obrigado por tudo!
Concordei em silêncio, desliguei as luzes e segui mais calmo para a cama.
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Quarta-feira:
- E aí? – Juliana entrou na minha sala apressada – Como ele tá?
Girei o assento para prosseguir a conversa:
- Pode ficar sossegada. Seu irmão só precisa espairecer um pouco, arejar a mente. Ontem a gente ficou conversando um tempão.
- Você jura que ele tá bem?
- Não mentiria sobre isso, Ju. O Guga vai melhorar, dê tempo ao tempo. Disse a ele que não poderia se fechar, que conversasse com você também... Basta colocar as ideias em ordem.
- Isso é bom, fico mais tranquila – ela parecia aliviada.
A verdade é que eu não sabia ao certo como proceder. Passei a madrugada inteira imaginando como ela iria reagir à constatação de Gustavo sobre a sua sexualidade. Em família o assunto costumava tomar outra dimensão, mas acreditava ser amigo de uma pessoa mais evoluída, com conceitos bem estabelecidos.
O dia na empresa estava mais quieto que o normal. No campo virtual, o meu plano também seguia empacado, e isso me irritava. O pequeno progresso com o meu novo hóspede me deu a carta branca necessária para voltar a correr atrás do meu objetivo principal desde o fim do carnaval. Olhava os celulares a todo instante, mas ambos não denotavam alguma movimentação importante. Precisava de uma fonte de informações mais ágil e, acima de tudo, de extrema confiança. Observei através da parede de vidro e logo encontrei aquela figura conhecida, hipnotizada pelo monitor do computador. “Flavinho, é claro!”, esbocei um sorriso. Ansioso, saí do gabinete em busca de uma ajuda mais especializada.
- Posso falar com você rapidinho? – alcancei o seu ombro, tirando-lhe a concentração.
-Opa – ele se surpreendeu com a minha presença repentina – Para o chefe a gente tá sempre livre!
Flávio comandava um grupo de programadores para softwares mais complexos e era um dos profissionais mais antigos da casa. Havia ali certa intimidade pelos anos de serviços prestados. Sua homossexualidade sempre ficou clara nas conversas esporádicas em happy hours e festinhas com a turma da firma, mas ele parecia ser muito seguro quanto a isso. Não sabia se a beleza nórdica que esbanjava (leia-se loiro dos olhos verdes) contribuía para essa firmeza na sua personalidade, apesar de ser muito reservado com os seus relacionamentos. Algumas possibilidades, inclusive, já passearam pela minha mente, mas sempre mantive intacta a postura ética sobre investidas casuais em empregados.
A disponibilidade era uma das suas maiores qualidades, além de um grande conhecimento na área. A alma geek aflorava quando ele não hesitava em comprar qualquer desafio, sempre com um empenho assustador. Parecia se divertir em busca de uma constante superação. Se trabalhássemos exaltando o funcionário do mês, ele certamente teria um quadro fixo no corredor. Era o meu braço direito.
- Preciso de um favorzão seu – puxei uma cadeira, aproximando-me para falar sobre o assunto – Mas é algo extraoficial.
- Claro, você manda!
- Tem como a gente descobrir os dados de uma pessoa pela placa do carro?
- Hum... – ele semicerrou os olhos e pensou por um instante – Depende do que você queira. Com o número do Renavam, o site do Detran te passa todas as informações completas. Com a placa, só o básico.
- Esse é o problema. Quero o máximo, com o mínimo que tenho em mãos – ri.
- Eu posso dar um jeito. Me passa o que você tem aí.
- Anota o número da placa – mostrei a tela de celular, com o bloco de anotações aberto.
Ele pegou uma folha de rascunho e começou a escrever.
- Certo, amanhã até o fim do dia eu te envio tudo.
- Valeu, fico te devendo uma.
Era o empurrão que faltava para começar a formalizar uma ideia nascida ainda naquela manhã, durante o desjejum. Com o devido estímulo, minha imaginação poderia ser incrivelmente mordaz. Estava decidido a definir os próximos passos e pratica-los de uma forma menos amadora.
À noite, fiquei conversando um pouco com Gustavo e notei que ele ainda estava um pouco acanhado com a situação exposta no dia anterior. Evitava a todo custo o clima pesado, sabia que o tempo abrandaria a sua vergonha em se abrir aos familiares. Deixei-o no quarto e voltei à Sala da Justiça. Esqueci temporariamente os outros quatro integrantes e procurei focar em quem estava mais próximo da minha mira: César. Já tinha alguns dados mais concretos e me obriguei a raciocinar o que poderia fazer com o que estava ao meu alcance.
Usei o espaço restante no quadro de vidro para traçar alguns cenários, independente dos critérios estabelecidos. Quanto mais esvaziava a mente, maior a chance de ser tomado por novas ideias. Invadir o apartamento? Encurrala-lo na faculdade? Expor a minha identidade? Dos trágicos aos práticos, deixava um mar de pensamentos tomarem forma.
A cada perspectiva, desenhava um desdobramento e como deveria agir caso viesse a acontecer de fato. Logo o meu painel estava tomado por um imenso mapa estratégico, que se conectava com a probabilidade de pequenas ações, ou grandes consequências. Sentia-me o professor de “Uma Mente Brilhante” escrevendo na janela sem parar.
Ao mesmo tempo, olhava a tela do computador seguidas vezes, com as redes sociais do falso perfil abertas, também almejando uma grande inspiração. Poucas horas depois, ela chegou como todas as outras concepções: um clarão na cabeça, sorrateiro e sorridente, anunciando uma solução. Era o elo para todas as minhas ações futuras. Alessandro Silva deveria tornar-se um ser humano real. E ele faria isso em grande estilo. Comecei a entender que não bastava ter um disfarce, era necessário sê-lo.
...
Quinta-feira:
- Ah, que bom que você tá aqui também – entrei ligeiro.
Marta interrompeu a conversa com Juliana, olhando-me curiosa, enquanto eu fechava a porta da sala de reuniões.
- Preciso da ajuda de vocês, mas sem piadinhas, ok?
- Ai meu deus... Lá vem – minha sócia estava mais disposta e alegre, arrancando risos da funcionária.
- Tenho uma festa à fantasia para ir, e queria aparecer bem diferente para impressionar uma pessoa - ensaiei toda a história a caminho do trabalho.
- Diferente como? – Marta se ajeitou na cadeira, atenta ao que eu dizia.
- Hum... De um jeito que inicialmente ela não percebesse quem sou eu.
- Super-herói! Usa uma máscara e depois tira – minha amiga começou – Aproveita que é especialista no assunto.
- Não, muito óbvio. Quero confundir a pessoa com algo realista!
- Ai que difícil...
- Se é realista, usa uma profissão bem estereotipada. Tipo, um médico... – Marta se esforçava para colaborar.
- Muito simples. Se fantasiar com um jaleco é preguiçoso demais, e a pessoa reconheceria facilmente.
- Gente, esse aí deve valer a pena mesmo, hein? Quanto esforço!
- Vale muito – insisti.
- Ó, pensa em algum fetiche bem sexy. Um bombeiro, ou um policial...
- E tira essa barba, coloca uma peruca, usa um óculos espelhado – Juliana caçoava - Se você quer algo tão impactante, ousa de vez!
“Policial... Nada mal!”, analisei a proposta, estudando em silêncio a minha outra personalidade.
- Peruca não. Eu te proíbo! – Marta censurou – Seu cabelo é lindo, Guto!
A ideia de mexer com os meus fios negros não era tão absurda. Poderia ser um fator importante para me camuflar.
- Tem uma loja de fantasias ótima que eu conheço. Te passo o endereço se quiser – completou.
- Quero sim, manda por mensagem!
- E em troca, nós duas queremos imagens desse momento histórico! – deixou escapulir uma chantagem emocional.
Sabia que elas ficariam me zoando por um bom tempo, mas era por uma boa causa. Quer dizer, para mim era uma causa excepcional. Acatei a sugestão final e me despedi, deixando-as sozinhas.
No intervalo do almoço, após fazer uma rápida refeição, visitei o estabelecimento indicado pela minha funcionária e me espantei com a variedade de vestimentas disponíveis. Uma atendente veio me ajudar e expliquei o que estava procurando. No começo, me desanimei um pouco com os uniformes caricaturais que recebia e pedi por algo mais verossímil. Precisava me atentar mais aos detalhes do que ao conjunto em si.
Após algumas tentativas encontrei o modelo ideal. As algemas funcionavam de verdade (mas não ficavam trancadas, o que era uma pena), o distintivo brilhava e o cassetete impunha respeito, apesar de não fazer muita questão desse último item. “Ok, vai ser melhor do que falsificar um”, sorri satisfeito. Vitoriosa com a persistência, a vendedora explicou que se tratava de uma linha “premium” de fantasias, e que o aluguel custaria um pouco mais.
- E se eu quiser comprar? – retruquei.
- Aí eu tenho que falar com o gerente. Não sei se posso vendê-la.
- Tudo bem, é o tempo que experimento a roupa – não queria demonstrar o intuito para outros fins.
No provador, já vestido, abafei uma risada quando me olhei no espelho. “Como você está ridículo!”, observei a camisa um pouco justa e a calça que marcava a bunda de um jeito exagerado. “Ok, já chega...”, coloquei o quepe, tirei uma foto para cumprir a promessa com as garotas e comecei a me despir. Logo em seguida, a lojista me avisou que eu poderia me dirigir ao caixa, informando o valor passado pelo superior. O preço era um pouco salgado, mas não perderia mais tempo procurando por algo similar. A aquisição se revelaria um bom investimento posteriormente.
...
Vislumbrei a minha segunda parada, expliquei na recepção o meu desejo e uma profissional foi solicitada. A mulher um pouco mais velha se apresentou e eu emendei a conversa:
- Preciso cortar e pintar o cabelo – disse decidido - Quero um visual totalmente original.
- Mas pintar de que cor? Porque a sua barba pode ficar contrastando com o resultado final – ela se mostrou preocupada, analisando os meus fios.
- É para um evento, uma brincadeira que participarei. Vou tirar a barba também. E prometo que no dia seguinte volto aqui pra você me deixar exatamente como era!
Ela riu, e por um breve momento pensei que estudava o quão suspeita era aquela situação:
- Então vamos lá! Barba, cabelo e bigode! – me chamou com uma mão para o salão.
Com os pés, ajustou o assento para que minha cabeça alcançasse o seu campo de visão. Ela era bem baixinha, as nossas alturas com certeza não ajudariam a sua tarefa. Elisângela, a cabeleireira simpática, colocou uma toalha no meu pescoço, luvas na mão e pediu licença por um instante. Olhava-me no reflexo do espelho, apreensivo com risco do resultado final. Em seguida, ela surgiu acompanhada de um barbeiro, explicando como seria a divisão do tempo – algo que eu não compreendi muito bem. Com o acordo interno feito, recebi uma revista aberta no colo, enquanto ela me encarava atenta.
- O que é isso? – indaguei.
- É o que vamos fazer. Igual a esse modelo aqui! – indicou – Seu cabelo é bem cuidado, vou tirar o mínimo possível e investir em um penteado mais atual. Também não vou carregar na química, já que é algo temporário.
- Certo, mas... Loiro?
- Querido... – ela girou a cadeira, se aproximando do meu ouvido – Tá vendo aquela criatura ali? – e apontou para um homem afetadíssimo que alisava a juba de uma dessas típicas madames de salão presentes no recinto.
Respondi com a cabeça, já entendendo um pouco o seu ponto de vista.
- Você não acha mesmo que vou te deixar com aquela cor de cobre horrorosa, né? Eu me recuso! Vermelho também vai ficar artificial demais. Vai por mim, essa tonalidade vai combinar perfeitamente com o tom de sua pele.
Concordei, sem ter qualquer outra justificativa. Percebendo o meu nervosismo, ela não me deixou acompanhar todo o processo. Subiu em um pequeno caixote para alavancar a sua estatura e iniciou o ofício, totalmente compenetrada. Senti algumas tesouradas repicarem pequenos fios que caiam no meu colo, sobre o avental.
Mais adiante, no meio da empreitada, Elisângela deixou a tintura descansando, e acenou para o outro funcionário voltar, avisando que eu já estava a postos. Munido de alguns objetos, se aproximou e pediu para eu inclinar a cabeça para trás. Era a hora de dar um fim à barba por fazer.
- Aproveita e relaxa! Tira um cochilo se quiser – ele sorriu preparando a navalha.
Era impossível. A lâmina passeava pelo meu pescoço cheio de espuma e eu viajava nas possibilidades que a nova aparência poderia trazer. Lembrei que também estava sem pelos no rosto na ocasião do incidente carnavalesco e torcia para que esse detalhe passasse despercebido. Respirei fundo, lutando para convencer a mim mesmo de que não estava indo longe demais.
Algumas horas depois, com a lavagem e um secador trabalhando incessantemente para finalizar a transformação, a cabelereira anunciou:
- Prontinho! – ela estava bastante empolgada.
Antes que pudesse esboçar qualquer reação, girou-me em direção ao espelho. O resultado era chocante. Não era eu. Jamais imaginaria um penteado naquele estilo, com um longo topete que lembrava James Dean e os fios loiros que pareciam deixar meu rosto limpo ainda mais claro. Estava surpreso, e sabia que seria azucrinado pelo resto da vida. Ainda assim, estava muito bem feito. Não dava pra dizer que não era natural.
- Elisângela... Ficou show!
- Você pediu algo bem distinto. Que bom que gostou – ela parecia aliviada – Mas depois volte mesmo, porque eu prefiro seu cabelo natural.
Aos risos, parabenizei o serviço, atraindo olhares curiosos. Anotei o número do salão, paguei e me despedi de todos. Só então me dei conta de que a tarde já avançava para o fim. Mandei uma mensagem para Juliana dizendo que estava terminando de resolver alguns problemas e não retornaria. Seria um dia a menos de brincadeiras no escritório.
Voltei para casa e Gustavo assistia disperso a um filme na televisão. Assim que joguei a chave do carro na mesa, ele se virou notando a minha chegada, e arregalou os olhos.
- O que você fez? – disse pasmo.
Ri desconcertado.
- Está tão inconcebível assim?
- Você tá loiro! – ele se aproximou estupefato.
- É uma brincadeira para uma festa – sustentei a trama – E aí, aprova?
- Tá muito diferente!
- Isso significa que tá muito feio?
- Não é isso, só achei... Estranho.
- Ok, você odiou – já imaginava a reação dos demais.
- Não, não tá feio – ele sorriu – Mas eu prefiro moreno – e ficou me encarando.
Fiquei sem jeito com aquela frase aparentemente inofensiva e resolvi não dar brecha para nenhum constrangimento:
- Sim, mas chega de avaliar a minha beleza, temos um compromisso.
- Como assim? Não tínhamos marcado nada...
- Pois então já deixe suas noites de terça e quinta sempre reservadas – alertei - Anda, já estamos atrasados. Pega sua sunga e vamos pra natação. Chega de ficar enfurnado em casa!
...
Sexta-feira:
- Ai meu deus! – Juliana quase gritou no corredor, atraindo a atenção de todos – O que é isso?
Não resisti em revirar os olhos, já prevendo que aquilo aconteceria exatamente daquela forma:
- Só resolvi seguir os seus conselhos.
- Você enlouqueceu? Eu disse peruca! Pe-ru-ca!
- Peruca é sem graça, assim fica mais verdadeiro.
- Sério, não é você! Nem quero olhar. Resolva isso e me avise quando Augusto voltar – se recusou a ficar conversando e saiu bloqueando os olhos.
As risadinhas e os olhares indiscretos tomaram conta do ambiente. Sabia que precisava levar a situação na esportiva, seria recompensador. A caminho da minha sala, notei que Flávio me mostrava um envelope, e fiz um sinal com a cabeça para que me seguisse. Aguardei a sua chegada e fechei a porta, prezando pela privacidade do assunto.
- Prontinho – ele colocou o documento em cima da mesa – Já estava comigo desde ontem, mas como você não voltou, preferi entregar hoje pela manhã.
- Queria evitar o alvoroço em cima disso – apontei para a cabeça, fazendo-o rir.
- É, acho melhor nem perguntar...
- Acredite, não é nada demais, e é temporário – insisti já abrindo o invólucro – Puxa uma cadeira, senta aí.
Li rapidamente o papel enquanto o meu convidado se acomodava e, intrigado, notei que o nome diferia do meu alvo:
- Sabe alguma coisa sobre esse cara? – inqueri.
- É um senhor, tem sessenta e três anos e é dono de uma rede de concessionárias no estado.
“Um senhor?”, me peguei confuso. Acessei as informações salvas da gangue no meu celular e comparei os sobrenomes. “É o pai dele...”, concluí.
- Deve ser cheio da grana, hein? – prossegui.
- Hum, não duvidaria se fosse um milionário. Ele tem outros quatro veículos no seu nome. A placa que você me deu é de um deles.
- Saquei – procurava refletir aquele novo fato.
- Bateu no seu carro e fugiu? – Flávio queria entender a motivação daquela estranha pesquisa – Tem o endereço dele aí também, se quiser.
Não que eu precisasse dar uma resposta, mas não queria suscitar suspeitas e entrei na história que ele mesmo elaborou:
- Pois é, o safado disse que não teve culpa e caiu fora. Só deu tempo de anotar a placa.
- Então acho que isso já vai te ajudar bastante!
- Vai servir sim...
- Bom, sendo assim... - ele se levantou, pretendendo se retirar.
- Flavinho, só mais uma coisa... – algo me ocorreu naquele instante e ponderei para encontrar a expressão correta - Qual seria a melhor forma de dar um flagra nesse indivíduo?
- Como assim? – ele parecia surpreso com a pergunta.
- Arrancar uma declaração dele, sem que soubesse. Tipo uma câmera escondida.
- Nossa, opções não faltam! Tem caneta espiã, relógio, chaveiro... O que você imaginar – desatou a falar – Um amigo meu tem uma loja de eletrônicos perto do Centro que é o paraíso. Posso te levar lá qualquer dia desses.
Permaneci em silêncio, estudando mentalmente os meus compromissos naquela data.
- Sua pauta tá muito cheia hoje? – perguntei, já emendando outro pedido antes da sua resposta – Vamos dar uma volta lá mais tarde?
...
Depois de uma tarde bastante produtiva (e não foi no escritório), voltei para casa. Gustavo estava na cozinha e me avisou que tinha pedido uma pizza para nós dois. Deixei as compras no quarto e voltei para lhe fazer companhia.
- E aí, tudo bem lá na empresa?
- Tirando sua irmã estressada com o meu cabelo, sim...
- Se eu conheço bem, ela vai infernizar até você mudar de novo.
- Eu imagino – ri enchendo um copo com refrigerante, após tirar a garrafa do congelador.
Chamei-o para continuar a conversa na varanda, enquanto o jantar não chegava, servindo-lhe um pouco do refresco também. A noite estava agradável e tranquila, o que poderia ser um sinal de calmaria antes da tempestade.
- Você tá mais sossegado? – questionei.
- Tô sim, me sentindo mais leve, eu acho.
- Isso é bom. Com o tempo você vai se permitir mais, ter novas experiências, descobertas...
- Eu não sei bem por onde começar – balbuciou em troca.
- Não existe uma cartilha Guga, é vivência. A universidade vai te proporcionar momentos únicos: conhecer pessoais legais, outras bem chatas, fazer amigos... – exemplifiquei – É o cotidiano que vai fazer com que você se conheça melhor. Aproveita, essa fase passa voando!
- Eu sei, lá na outra faculdade não era muito diferente. Não era próximo de muitas pessoas, mas tinha os meus ficantes escondidos, ia para algumas festinhas.
- Então não tem com o que se preocupar. Pega essa nova oportunidade e mergulha de cabeça! Você não vai se arrepender.
- Não é bem isso, Guto. É que...
O interfone tocou, assustando-o. Interrompi por um instante e fui atender, liberando o entregador de pizza logo em seguida. Paguei (não sem antes discutir com ele, que queria se responsabilizar pela demanda, já que havia feito o pedido), sentamos no meio da sala e continuamos o nosso papo, já enveredando por outros assuntos.
Mais tarde, quando Gustavo já estava repousando, juntei todas as sacolas com as minhas últimas aquisições daquela semana e parti para o escritório. Cuidadosamente, organizei item por item em cima da mesa e visualizei se seriam soluções práticas para cada estratégia esboçada no quadro de vidro. Existiam vários caminhos a serem explorados e estaria pronto para todos eles.
Abri com cuidado as embalagens adquiridas na loja de eletrônicos sugerida por Flávio. De dentro de um estojo, tirei um óculos com armação preta e falsas lentes, e testei a câmera embutida nele, vendo o resultado na tela do computador. “Que animal!”, me empolguei com a eficácia. Além de discreto, seria um artifício perfeito para o que eu pretendia. O nerd loiro projetado na tela parecia diferente o suficiente para mim.
De outra caixa, retirei uma segunda câmera, de tamanho também modesto. Só precisava imaginar como escondê-la, e alguns minutos bastaram para eu encontrar uma resposta. Com uma tesoura, abri uma pequena fenda na lateral de uma mochila, que também me serviria de bagagem para toda a parafernália. Ensaiei a posição ideal do objeto para que gravasse com perfeição e verifiquei novamente no monitor. Algemas, distintivo, filmadoras, novo visual, nova identidade: Alessandro, um astuto membro da polícia federal que se disfarça de estudante universitário, estava pronto para entrar em ação.
...
Sábado:
Acordei cedo, deixei um recado para Gustavo avisando que passaria o dia fora resolvendo algumas pendências, e segui para o meu ponto de partida. Do local onde estava estacionado enxergava perfeitamente a saída do edifício em que César residia. Seria um árduo e demorado exercício de paciência. Poderia ter sorte, ou passar um longo tempo plantado ali, sem sucesso. Mas era o que havia decidido levar adiante.
De tempos em tempos, repassava todas as minhas táticas e averiguava se tudo estava ali, das baterias extras e carregadores portáteis de eletrônicos ao lanche para as horas apertadas. Uma música no rádio ou um joguinho bobo no celular animavam o tédio. O relógio parecia bastante preguiçoso e a manhã se mostrou desastrosa. Nem uma brisa parecia movimentar aquela rua, o que era decepcionante.
Peguei um sanduíche para aplacar a fome que começava a incomodar, e escutei o barulho do portão da garagem se abrindo. Olhei atento para o motorista e verifiquei a placa do carro que saía. Não era ele. Esse mesmo alarme falso se repetiu outras três vezes e comecei a me perguntar se não estava sendo estúpido demais, já que ele poderia ter se ausentado mais cedo ou sequer dormido em casa.
Quase no meio da tarde, escutei uma buzina e, impaciente, segui o meu ritual de verificação. Foi quando uma onda de adrenalina atravessou o meu corpo e um rosto conhecido se revelou. “Finalmente!”, celebrei em silêncio. César acenou para o porteiro com um sorriso sedutor e deslocou-se para o asfalto. “Lindo, mas não vale nada!”, desdenhei. Liguei o carro, respirei fundo e comecei a segui-lo. Aonde quer que ele fosse, eu daria um jeito de intercepta-lo e mostrar que ele não era páreo para uma ira que não conseguia adormecer dentro de mim. A sorte enfim, tinha virado a meu favor.
(continua)
...
Oi pessoal! Peço desculpas pela demora em postar esse capítulo. Estava viajando a trabalho e não tinha como dar a devida atenção à história. Dioguinho2015, que bom que está acompanhando e gostando! GatoPEBR, prepare-se para mais confusão e gritaria (essa é só aponta do iceberg), rs... Drica Telles (VCMEDS), me alegra muito saber que continua seguindo o conto com afinco, :)! Jeff08, Augusto é muito legal, com certeza dará um suporte para Gustavo. Obrigado pelos elogios! Plutão, falou tudo! A vingança está longe de ser doce, muita água vai rolar! O ruivo também manda um abração! Trager, a partir de agora, é só tensão (rs)! Irish, o “Zé Sarda” também manda abraços! Acredite, não me importo com quantidade de votos, desde que vocês que estão acompanhando religiosamente estejam curtindo. Isso sim não tem preço, :)! Quarta-feira estou de volta. Obrigado por todos os comentários positivos! Um grande abraço!