Depois daquele flagra, eu fiquei completamente desnorteado. Óbvio que o Fernando devia ter percebido o que estava rolando ali, o que eu e o irmão mais velho dele devíamos estar aprontando na sala da casa deles. O que eu não sabia era o quanto ele conseguia desconfiar do que havia acontecido entre Marcos e eu.
Eu também não sabia quais tinham sido as repercussões daquele incidente. Se o Fernando havia confrontado o irmão, se o havia exposto para a família. Se isso tivesse acontecido, quais seriam as implicações disso na minha vida? Porra, eu só tinha quinze anos, estava por conta própria em uma cidade desconhecida, e não sabia bem o que fazer com toda aquela situação.
A minha vontade era de abrir um buraco no chão e entrar dentro. Como eu não conseguia fazer isso, eu cavei o meu próprio buraco na cama e fiquei um bom tempo sem sair de casa, apenas hibernando debaixo de um edredom. O melhor modo de fugir/negar um problema? Simples, durma.
Meus colegas da casa ficaram preocupados comigo, é claro. Tentavam saber o que estava acontecendo comigo, já que eu também estava matando aula para ficar dormindo em casa! A Emanuela, praticamente uma mãe e mais velha dentro da casa, tentava conversar comigo e passava um bom tempo tentando me animar, mas eu simplesmente não conseguia me abrir com ela, não conseguia falar sobre o ocorrido, porque falar sobre isso seria reconhecer, para mim mesmo mais do que para os outros, o que eu realmente era: gay.
Ser gay hoje não é fácil, imagine há vinte anos!
Marcos também não me dava nenhuma resposta, nem ajuda, nem consolo, nem notícia. Em uma época em que celular e internet não eram acessíveis, o único modo de comunicação era por telefone fixo ou pessoalmente. Mas sequer uma ligação o calhorda me dava!
Contudo, estava se aproximando um grande evento na cidade, exposição de alguma coisa em que iria tocar uma banda que estava emplacando alguns sucessos naquela época, chamada Banda Eva (“me abraça, me beija, me chama de meu amor”), que tinha uma tal cantora chamada Ivete Sangalo (quem diria... rs).
E todos estavam enchendo o raio da paciência para eu ir nesse show. Nem gostar de axé eu gostava, mas já era hora de eu sair de casa e enfrentar a realidade.
Embora eu não estivesse tão preparado assim pra isso. Chegando no tal show, Ivete cantando aquelas músicas bregas que todos conhecemos (“alô paixão, alô doçura...”), e eu, nervoso e com medo de encontrar Marcos ou alguém da família dele (as entranhas chegavam a doer), me agarrei ao primeiro caneco de cerveja que encontrei.
Depois de um tempo lá estava eu, um tanto embriagado, com aquele passo leve e sorriso fácil no rosto, flertando com todos a minha volta, dando risadas no meio da galera, puxando mais um copo para beber. Uma ou duas garotas tentaram ficar comigo, e eu não me fiz de difícil.
Tudo ia muito bem, até que eu o vi. Não Marcos, mas Fernando. Estava relativamente próximo de mim, com dois ou três amigos ao lado. Estava de jeans e jaqueta. Os cabelos muito pretos repartidos de forma bagunçada no meio da cabeça. E olhava de soslaio pra mim.
Pra que? Senti minhas pernas amolecerem, minhas entranhas pesando, minha cabeça girar. Perdi toda a minha confiança e crença em mim mesmo. Precisei me apoiar em uma banquinha de drinks para não cair. Nem era tanto a bebida, mas sim a visão daquele cara.
Podia piorar? Sim! Ele percebeu a minha situação e se aproximou de mim, a maioria dos meus colegas estava entretida demais para perceber que eu havia me afastado. Ele me segurou, me ajudou a levantar, me pôs de pé de frente a ele.
- Tudo bem com você?
- Tudo tranquilo e você? - respondi automaticamente.
- Achei que estivesse passando mal...
- Nada, tô bem, sério... só me desequilibrei mesmo agora, mas já passou - respondi, tentando ser convincente, mas sem conseguir enganar ninguém.
- Acho melhor sairmos do meio dessa multidão, você realmente não parece legal.
- Não precisa, mesmo! Que isso...
- Deixa eu te levar para casa. Tô de carro, te levo até lá - disse Fernando, praticamente me arrastando no meio da multidão.
E assim ele foi me conduzindo pelo braço para fora do local do show, em direção ao estacionamento. Eu não conseguia falar nada, apenas seguia aquele cara até o carro, um Ford F1000 enorme. Tive de me levantar alto para entrar na caminhonete, ocupando a poltrona do passageiro.
Observei o carro deslizando pela estrada abaixo, era uma noite fria e escura. Não falávamos nada.
- Eu vou te levar para sua casa - começou Fernando, rompendo o silêncio - Mas, preste bem atenção...
Ele fez uma pausa, suspirou e olhou para mim. Eu estava afundado na poltrona, imóvel, os olhos fixos no para-brisa.
- Deixa eu te dizer... o que você está tentando fazer? Tentando ficar com um homem? Com o meu irmão? Você está fazendo isso errado.
Eu não sabia o que responder. Percebi que estávamos praticamente passeando pela cidade. Ele não seguia o caminho direto para a minha casa, parecia tentar sair da cidade.
- Está ficando tarde - consegui dizer - É melhor me deixar aqui mesmo.
- Espera aí, vou te levar de volta pra sua casa.
- Você é do tipo de garoto que adora bagunçar, não é mesmo? Te vi bebendo com os seus colegas, pegando as menininhas - Fernando tentou continuar a conversa, piscando pra mim.
Não respondi nada, estava impaciente com aquela conversa sem sentido. O que ele estava tentando fazer? Me dar uma bronca? Me passar um sermão? Me dizer o que era certo e errado para a minha vida? Ele que me poupasse de sua pretensa preocupação, mal nos conhecíamos e ele era poucos anos mais velho que eu (dezenove anos).
Quando chegamos na porta da minha casa, tudo estava apagado. O pessoal ainda estava para o show, eu era o primeiro a chegar.
- Obrigado - eu disse, tirando o cinto e tentando abrir a porta do carro.
- Espera aí, chega aqui, chega aqui - disse Fernando, me puxando para perto de si, colando a mão áspera em meu rosto, virando o meu rosto, murmurando meus ouvidos - Vou te dar amor de verdade...
E inesperadamente ele me beijou. Um beijo apressado, urgente, curto, grosso, violento. Suas mãos me envolveram em seus braços e me apertou contra ele. Obviamente não resisti e retribuí o beijo, o que fazer quando sentia aqueles braços fortes me segurando firme?
- Você é o garotinho mais doce que eu já vi - ofegou Fernando entre nossos beijos - Tive vontade de te provar desde que descobri o que o Marcos tava aprontando com você... Você não saiu dos meus pensamentos... Vou te dar muito mais...
Mas aquilo era o suficiente para a minha cabecinha confusa. Eu me desvencilhei dos braços dele, olhei uma última vez pra ele e saí desatado do carro, indo me refugiar novamente dentro de casa, de onde eu não deveria ter saído.
