"De vez em quando eu posso ser ator, e um pouquinho te enganar, Pra não ficar sentindo tanta dor, e eu também poder te machucar..." (Me Sinto Só, Pimenta NativaBem-vindo à vida real!
Acordei do transe e uma voz feminina relatava a funcionalidade do aplicativo, enquanto os convidados olhavam interessados para o vídeo no telão.
- O Imagine Plus vai te levar a uma nova dimensão do famoso jogo onde você comanda a realidade, de um modo jamais visto – a narração prosseguia.
Juliana estava do outro lado da mesa, sem esconder a alegria por tudo estar funcionando perfeitamente bem até ali. O sucesso daquela reunião poderia levar a nossa empresa a um novo patamar em investimentos. Tudo indicava que daria certo. Alguns gráficos depois, as luzes se acenderam e escutamos alguns aplausos.
- Que bom que gostaram – minha sócia agradeceu, se levantando – Alguma dúvida?
- Vocês não acham que lembra um pouco The Sims? – um acionista indagou.
- Na verdade, tudo começou com um desejo de unir The Sims a uma definição mais próxima de Sin City – respondi calmamente – Não basta ficar preso à sua vida social. É preciso extrapolar e buscar as suas conquistas, como nas nossas vivências.
- O que essa expansão do Imagine faz é justamente ampliar essa noção de aquisição – Juliana completou – Aumentamos a gama de possibilidades e cruzamento de dados com outros jogadores, e a versão mobile do jogo também agrega essa inovação.
Alguns participantes continuaram os questionamentos, sobre expectativa de faturamento, plataformas disponíveis e previsão do número de downloads. Findadas as dúvidas, todos pareceram satisfeitos e começaram a se retirar. Ficamos os dois a sós, nos entreolhando sorrindo, antes de começar a comemorar. O semestre na nossa empresa prometia.
...
Começou como uma brincadeira. Jamais imaginaria que a odisseia da minha vida universitária em São Paulo pudesse render tantos frutos. Desde que ingressei para o curso de Ciências da Computação, criei um vínculo com Juliana que mantinha forte até hoje. Parecia um pouco irreal no começo, afinal ela era bastante comunicativa e falastrona, com um talento que ia além da beleza arrebatadora. A típica garota popular da turma chocando-se com o clássico nerd que quer ganhar o mundo. Tudo bem, não era tão nerd assim, mas vivíamos grudados. Não me recordo ao certo em que ponto a amizade floresceu. Por uma desconfiança imatura e boba, sempre deixei claro para ela a minha orientação, resolvendo qualquer possível mal-entendido. O nosso apreço, porém, extrapolava qualquer interesse amoroso, era algo genuíno.
Comandávamos trabalhos em grupos, sempre com os pensamentos alinhados, como telepatas. Conhecia sua família e a tratava como se fosse minha também. Quando não passava os feriados ou festas de fim de ano com os meus tios, estava na sua presença, viajando para o interior do estado para fazer companhia à sua mãe e ao seu irmão, Gustavo. “Você é de casa!”, alardeava Dona Helena, a matriarca, ao me escutar pedindo algo.
Era natural, então, que seguíssemos unidos mesmo com o término do curso. A ideia de abrir uma empresa surgiu quando comentei que queria levar um dos trabalhos de conclusão de semestre a um novo estágio, tornando-o mais comercial. Criamos uma base para um aplicativo - o Imagine - onde as pessoas criavam suas versões digitais e precisavam fazê-las sobreviver, como no mundo real. Quer morar sozinho? Trabalhe, ganhe dinheiro e faça acontecer. Quer conhecer alguém? Saia de casa para ver gente. Não era nada absurdamente original, mas estava obstinado em evoluir o nosso projeto.
Foi dela a ideia de injetar o fator empreendedorismo ao game, onde a versão profissional do avatar poderia aplicar o seu conhecimento ao cotidiano. O engenheiro digital poderia construir prédios, o corretor, vender imóveis e por aí vai. Dessa forma, cada jogador criaria um cenário único e funcional à sua volta. As possibilidades de interação eram infinitas, e a nossa empolgação também. Não era um algoritmo fácil de programar, mas sabíamos que poderia dar certo. E deu. Com um pouco do dinheiro que mantinha guardado para futuras aplicações, e um marketing esperto, o nosso jogo fez um imenso sucesso.
Por mérito próprio, saímos do campo virtual, inauguramos um espaço físico e começamos a ganhar bem fazendo o que realmente amávamos. O Imagine abriu muitas portas, e crescemos rapidamente, ampliando a nossa participação de mercado, desenvolvendo softwares, sites, e diversos aplicativos para vários clientes, inclusive da América Latina. Não dava para reclamar.
Independente disso, mais do que uma simples colega e sócia, Juliana era uma irmã para mim. Era dela o ombro onde encontrava refúgio sempre que batia uma solidão nos primeiros anos em que morava sozinho. Fui eu o cupido do seu namoro, quando a apresentei ao seu futuro marido, Marcos, um colega boa pinta dos tempos de estágio em uma multinacional. Os dois pareciam perfeitos um para o outro, e sempre estávamos nos reunindo em saídas para bares e restaurantes. O enlace foi uma questão de tempo e presenciar a união como um dos padrinhos de casamento foi um momento especial na nossa trajetória, dentre tantos outros. Éramos parceiros nas mais diversas áreas da vida, alimentados por confiança, respeito e cumplicidadePrecisamos celebrar! – Juliana me abraçava, empolgada.
- Vamos sim! Marca aí com o pessoal.
- Aliás, alguém vai fazer aniversário depois de amanhã, hein? Poderíamos unir as duas coisas.
- Não devo fazer nada, Ju. Animação zero.
-Porque isso? Só porque vai passar dos trinta? Aceite Guto, não tem volta – ela sorriu.
- Engraçadinha... Não planejei nada realmente.
- Pois se anime. Não precisa chamar todo mundo. Avisa aos mais chegados...
- Você e Marcão. Fim, esses são os mais chegados – ri.
- O Guga vem pra cá também, vou pedir pra ele ir com a gente.
- Nossa, deve ter anos que não vejo o seu irmão.
- Tem mesmo. Se tudo der certo, na próxima semana ele vem de mala e cuia, atormentando o meu juízo.
- Ele vai se mudar pra cá? – indaguei surpreso com a novidade.
- Vai sim, conseguiu a transferência do curso. Aí tem que dar entrada na matrícula, ver quais matérias consegue eliminar... Essas coisas burocráticas.
- Finalmente, né? Você me disse que ele tava tentando há meses.
- Pois é... Minha mãe que está agoniada com essa história, mas acho que vai aceitar bem.
- Claro, logo ela se acostuma.
Um designer pediu licença e entrou na sala de reuniões, solicitando uma opinião sobre a animação de um projeto novo. Era hora de voltar ao batente. Encerramos a conversa e levantei em direção à porta, me despedindo. A semana estava começando com todo gás.
...
Cheguei ao apartamento contente com o dia proveitoso, e só então percebi que não tinha desfeito a minha mala. Abri a bagagem e comecei a separar as roupas sujas, organizando o restante. Despi-me e juntei o que estava usando ao monte de tecido que seguiria para a máquina de lavar.
Silêncio reconfortante e andar pelado sem preocupações: para mim, esses eram os maiores benefícios de morar só. Habitava um duplex amplo e alto, moldado ao longo do tempo aos meus gostos e particularidades, ou seja, todo tipo de engenhoca geek desnecessária para muita gente, mas essencial para mim. As pessoas não conseguiam entender ao certo a minha personalidade, um colecionador de revistas em quadrinhos que escuta axé, um viciado em séries que não nega uma balada. “Sou eclético”, era a minha resposta padrão quando alardeavam a confusão de estilos. Não tinha culpa se gostava de tanta coisa ao mesmo tempo.
Tomei um banho demorado, vesti uma cueca confortável e voltei ao quarto. Guardei a bagagem embaixo da cama e notei um aromatizador em cima do criado-mudo, com uma mensagem atada a um laço que envolvia o objeto.
“Lembrança do Batizado de Pedro”, li relembrando uma cena mostrada pelo meu amigo na ocasião. Sorri e abri a embalagem, pegando no sono enquanto um cheiro de bebê invadia o ambientedias antes:
Queria faltar, mas não podia fazer essa desfeita com um velho colega. Arrumei-me cheio de preguiça e expliquei para Marcela onde estava indo.
- Vixe, boa sorte... Tô fora!
Pedi o carro emprestado novamente e segui para o meu compromisso. Não dava para acreditar que estava trocando um dia ensolarado por uma visita à igreja. “Vamos lá, é por uma boa causa...”, concluí. Quando cheguei, a cerimônia já tinha começado, por isso me sentei um pouco mais afastado. Assim que acabou, caminhei para cumprimentar os pais do bebê no altar:
- Quem diria... Beto povoando o planeta – apertei o seu ombro.
- Puta merda, Guto! Você veio!
- Claro, precisava saber se era mesmo verdade.
- Seu sacana, você se lembra de Sílvia, né? Minha esposa – ele a trouxe para a conversa.
- Lógico! Tudo bem com você? – troquei dois beijos no seu rosto.
- Tudo ótimo – ela respondeu – Não sabia se você viria porque avisamos muito em cima, me desculpe.
- Que nada, estava na cidade para curtir o carnaval e resolvi prolongar a minha visita.
- Que bom! – Beto prosseguiu – Vai rolar um almoço lá em casa agora, você está convidado. Segue nosso carro que é aqui pertinho.
- Beleza, pode deixar.
Beto era um antigo colega da faculdade. Assim que se formou, decidiu voltar para Salvador, onde também passou a atuar em uma corporação local. Mantínhamos contato constantemente, indicando clientes, trocando ideias ou fortalecendo a nossa parceria. Conheci sua esposa em reuniões esporádicas da turma e a notícia de que seria pai foi uma surpresa para mim, já que ele nunca demonstrou planos para tal, sempre se desvencilhando do assunto com o seu jeito brincalhão.
O salão de festas do edifício estava cheio e pequenos grupos mantinham a conversa animada nas suas mesas. Como não conhecia praticamente ninguém além dos pais, mantive-me distante, observando a movimentação. Pouco tempo depois, Sílvia veio me apresentar o filho, que dormia tranquilamente em seus braços:
- Augusto, esse é o Pedro, o anfitrião do dia.
O bebê descansava, alheio a todo o barulho.
- Ele é muito bonito, se parece com você. Parabéns!
- Obrigada, todo mundo fala isso – sorriu – Vou aproveitar e mostra-lo para o resto do pessoal. Se precisar de alguma coisa pode me falar, tá?
- Fique tranquila – respondi apontando a quantidade de doces que já tinha roubado – Eu já estou bem abastecido! – sorri.
A tarde seguia agradável e alguns convidados começaram a se despedir. Comecei a pensar em fazer o mesmo, já que ainda precisava arrumar a minha bagagem. Após alguns minutos, um jovem sentou-se numa mesa próxima, ninando Pedro em seu ombro. “Deve ser o padrinho...”, supus. Percebi outro homem se acercar para lhe fazer companhia e fiquei observando aquela cena.
- Tá vendo aqueles dois? – Beto me pegou no flagra, puxando uma cadeira ao meu lado.
- Nessa mesa aqui em frente? – disfarcei.
- Isso – ele sorriu – Você também é responsável por eles estarem juntos.
- Como assim? – indaguei ao intuir que se tratava de um casal de namorados.
- Lembra que te pedi uma ajuda para invadir um e-mail e quebrar o código de um iphone? – ele falou baixo, próximo a mim – Então, uma pessoa estava tentando impedir que eles ficassem unidos, mas agora estão numa boa.
- Nossa... - estava surpreso - Que bom que deu tudo certo então.
- Deu certo até demais, agora só vivem assim grudados – gargalhou – Valeu pela ajuda, cara!
- Que nada, estamos aí para o que você precisar.
Não tenho o costume de alardear meus conhecimentos em algumas técnicas ilegais, mas sempre procuro ajudar amigos em possíveis enrascadas virtuais. Beto prosseguiu o papo, querendo saber sobre a minha vida e como andava a empresa. Mantivemos o diálogo com outras amenidades, e logo ele saiu para dar atenção aos demais presentes. Continuei espiando o casal, dois homens altos que pareciam trocar olhares cúmplices e sorrisos apaixonados. Jamais imaginaria que pudesse ser um pouco causador da felicidade de alguém.
...
Entendi que gostava de garotos quando completei dezessete anos. As conversas com os colegas de sala nos intervalos das aulas não me pareciam animadoras. Todos comentavam sobre os atributos das meninas, querendo combinar quem iria pegar quem, avaliando qual era a mais gostosa ou a mais feia. Tudo aquilo me soava desinteressante. Por outro lado, à medida que os nossos corpos se desenvolviam, denotando músculos e contornos até então imperceptíveis, era impossível desviar a atenção. As aulas de natação constantemente atraíam meu olhar aos volumes cada vez mais consideráveis nas sungas dos meus amigos e frequentemente me masturbava pensando nessas situações. Não foi difícil compreender o que estava acontecendo.
Com a revelação e a aceitação, precisava vencer um obstáculo ainda maior: saber paquerar. Não tinha traquejo, malícia ou nenhuma intenção mais arrojada nas conversas que desenvolvia com possíveis pretendentes. As coisas só começaram a deslanchar após a maioridade e a mudança de cidade. O trote na universidade me possibilitou o primeiro beijo em outro homem - apesar de bastante desajeitado - e logo já tinha perdido a virgindade, praticando sempre em todas as festinhas que apareciam.
Com dezenove anos, já estava (enfim) namorando. Leonardo era um estudante de Economia, dois anos mais velho que eu, e partiu dele a iniciativa de um compromisso depois de tantos encontros. Eu estava realmente apaixonado. Aproveitava todos os momentos para alimentar nossa intimidade e afeto. O fato de já morar sozinho (em uma pequena quitinete na época) era um simples pretexto para transar a todo instante, querendo aprimorar o que tinha descoberto tão tardiamente. A ideia de possuir uma pessoa, abraçar a sua entrega e receber prazer em troca, me parecia transformadora. Apesar de algumas investidas de Leonardo, não conseguia fazer o mesmo. Achava que dar essa abertura era ser demasiadamente submisso a ele, e gostava da noção de ter o controle sobre tudo. Meu tio me ensinara isso sobre a vida, e era assim que eu aplicava essa teoria. Constantemente reafirmava à minha mente que era ativo, e apenas isso. Minha noção do ato sexual em si era um pouco limitada e não queria passar pelas mesmas situações de gemidos e dor para apenas lhe dar uma satisfação física momentânea. Ainda assim, admirava quem o fizesse e procurava retribuir com o que podia. Não tinha problemas em praticar sexo oral, por exemplo, ou masturbar o meu parceiro. “Todos têm suas preferências”, pensava, “e eu aceito muito bem as minhas”.
Nosso namoro durou inacreditáveis seis anos. Digo isso porque nem os amigos mais próximos acreditavam nessa possibilidade. Leonardo era ciumento, criava caso com situações ínfimas e discutíamos por pequenas bobagens. Convence-lo a brincar o carnaval comigo todos os anos era um enorme sacrifício e ele sempre me acompanhava a contragosto, mais para me vigiar do que para aproveitar. Essa atenção exagerada inflava um pouco o meu ego e sempre relevava as brigas em prol do meu sentimento verdadeiro por ele. O tempo não aplacou a sua personalidade possessiva, apesar do respeito às nossas individualidades. Eu procurava suprir tudo isso da melhor forma possível. O nosso relacionamento era uma doação constante da minha parte.
A caridade se encerrou quando participei de uma discussão homérica com Juliana, que colocou em xeque a nossa amizade pela primeira (e última) vez. Sem dar o braço a torcer, a sua teimosia me levou a descobrir o que eu não conseguia enxergar: Leonardo estava me traindo com um de seus colegas de curso. A calmaria repentina, os ciúmes cessados e às vezes encenados, o sexo inconstante... Demorei a perceber o que já estava gritante. Seis anos jogados no lixo. Seis anos de tempo perdido, preso a uma pessoa que não valia a pena.
Ele insistiu na ideia de que ela não gostava dele e que era tudo uma armação, mas as provas falavam por si, e traição era uma atitude inadmissível para mim. A nossa última discussão foi recheada de pequenas humilhações e acusações, mas ambos seguiram os seus caminhos. Sem muito esforço, agradeci à minha amiga pela paciência e atitude corajosa. Acima de tudo, fui humilde e me desculpei por duvidar da sua intenção. Se para alguns amigos aquela notícia era digna de comemoração, para mim era um sinal de que estava no fundo do poço. “Namorar é um droga, e amar é uma perda de tempo”, era o que pensava a todo instante.
O fracasso amoroso foi a deixa para eu trabalhar em mim uma nova perspectiva: era hora de aproveitar. Sexo passou a ser um passatempo divertido e nunca mais me permiti mergulhar em algo mais sério. Parei de contar o número de parceiros e transas alucinadas, e procurava curtir a vida como se não houvesse amanhã. Não me achava um total libertino, mas me sentia bem assim. Com o tempo passei a ser mais seletivo e diminuir (só um pouco) o ritmo, mas namorar definitivamente não me fazia falta. Talvez esse fosse o meu destino.
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Agradeci mais uma vez o convite e Sílvia me entregou uma lembrancinha do batizado. Beto me convidou para um jogo de vôlei com os amigos na manhã seguinte, mas declinei por ter que retornar para São Paulo. Rever um integrante da turma formando uma família foi interessante, apesar das nossas diferentes trajetórias.
Voltei para casa e a todo instante pensava no casal feliz. Ajudei um amigo e o bem prevaleceu, como deveria ser. Não demorou muito e Marcela apareceu para me ajudar com as roupas e resolvi dar vazão aos questionamentos que me ocorriam:
-Prima, você cometeria uma injustiça por achar que seria o justo?
- Hein? Que conversa maluca é essa? – ela gargalhou.
Acompanhei a sua reação, encabulado. Resolvi ser um pouco mais objetivo:
- Tipo, se alguém roubasse algo que é seu, você também faria o mesmo com a pessoa, para ela aprender?
- Hum... – ela parecia ponderar – Acho que eu tentaria provar o crime e fazer valer a quantidade de leis que a gente tem.
“Porra Marcela, você não tá colaborando...”, divaguei:
- E se fosse impossível comprovar? – prossegui.
- Ai... Sei lá. A depender do crime acho que iria dar o troco sim.
Sorri satisfeito. Era o que eu precisava ouvir.
- Mas saiba que seu amigo Clark Kent jamais faria isso – ela devolveu.
- Eu sei – ri da sua astúcia – Mas já te disse que às vezes o Superman não passa de um extraterrestre mané.
- Cada vez que você fala isso, cinco fãs de super-heróis crescem traumatizados.
Ela continuava se divertindo com o assunto, mas a minha mente estava cada vez mais longe dali. “Talvez esteja na hora de estudar outro tipo de justiça...”.
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No domingo à noite, assim que pisei no apartamento, fui tomado por uma sensação de calma, como se adentrasse a minha fortaleza da solidão. Larguei os meus pertences no meio do quarto e me joguei na cama, cansado. Tirei os sapatos com os pés e me aconcheguei nos travesseiros. Meu celular vibrou com uma mensagem de Juliana, lembrando que a reunião do dia seguinte estava confirmada, e eu não podia faltar. Programei o alarme para não perder a hora e recebi uma notificação de redes sociais.
Abri o aviso e notei que Marcela havia me marcado em uma foto no Instagram, postando um registro antigo de nós dois ainda crianças, fantasiados para o carnaval. Não tinha certeza da nossa idade, mas as roupas de She-Ra e He-Man que usávamos denunciava o peso dos anos. “Desde que me entendo por gente, uma parceria inseparável. A folia sempre fica melhor com ele. Te amo, primo!”, dizia a legenda. Sorri para a tela e logo mandei uma mensagem agradecendo a declaração e a hospitalidade.
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A calmaria aparente do começo da semana logo se dissipou na terça-feira. Projetos que não estavam funcionando como deveriam, reuniões sequenciais que pareciam não ter fim... O tempo estava bastante corrido e não dava qualquer brecha para respirar. A movimentação na empresa era aparente, mas todos estavam focados nos seus deveres. Apesar da atribulação, sobrevivemos a mais um dia de trabalho.
Eram quase oito horas da noite quando me despedi do segurança do edifício onde a firma estava sediada. Exausto, desisti da aula de natação, passei em um restaurante chinês e segui para casa. Meu corpo pedia por um descanso, mas a mente seguia inquieta. Deixei a chave do carro na mesa, tirei a camisa, e segui para o meu refúgio com a embalagem de yakissoba nas mãos.
Mantinha um escritório bem equipado no apartamento, quase uma extensão da minha sala na companhia. Quando acordava afoito no meio da noite, ou se tinha alguma ideia inovadora, seguia para lá. Era um espaço amplo, com uma mesa grande que comportava um computador com múltiplos monitores e uma parede adjacente tomada por um imenso vidro sobreposto, onde escrevia fórmulas, conceitos e possibilidades da minha imaginação. Logo em frente, um futton me permitia ficar contemplando essas divagações e poderia ficar horas perdido em pensamentos. Essa inquietação já me manteve desperto por longos dias, mas ao mesmo tempo me relaxava, como se tivesse liberando espaço na memória.
Abri a janela, deixei o jantar em um carrinho bar ao lado do frigobar e acoplei meu celular a um cabo ligado à impressora. Algum tempo depois escutei o som do aparelho funcionando, expondo uma imagem na bandeja de saída. Sentei-me compenetrado no meio das almofadas, enquanto saboreava pedaços de camarão do meu prato, e fiquei analisando a foto daquela lista.
Cinco nomes, cinco números de identidade e uma localização. Seria um trabalho instigante e que levaria tempo. Olhei para o painel de vidro e me levantei, pegando um apagador para limpar todas as informações ali contidas. Dividi a extensão em cinco grandes espaços e comecei a escrever os dados que tinha em mãos. “Alexandre. Adriano. César. Cláudio. Júlio...”, repetia mentalmente. Meu reduto criativo logo daria lugar à concepção de outros tipos de ideias.
Voltei ao futton, dando outra garfada na comida, e fiquei encarando os nomes escritos logo à minha frente. Seria ali onde alimentaria o meu desejo de fazer valer o que achava correto:
- Se todos eles moram em São Paulo, eu vou descobrir onde estão... – pensei em voz alta, de boca cheia.
Seria como tirar a sorte grande, mas conseguir ao menos mapear um deles poderia abrir as portas para levar a todos os outros. Não estava pensando em medidas drásticas para obter seus paradeiros, mas não descartaria qualquer possibilidade. O trabalho, enfim, estava começando.
...
Acordei na quarta-feira com uma ligação de minha tia Rita, parabenizando-me. Ainda não pensava em abrir os olhos ou espreguiçar-me e ela disparava a falar, afirmando que queria me ver, reunir todos o quanto antes, que sentia minha falta, essas coisas de forte apelo familiar. Prometi uma visita em breve, agradecendo o carinho, e com muito esforço para fazê-la entender que ainda queria dormir, finalizei a ligação. As dezenas de mensagens de felicitações, porém, não me deixaram ampliar a soneca. Foi quando me dei conta que na verdade já era tarde, quase dez da manhã.
- Maldita idade! – sussurrei ao perceber que não tinha escutado o despertador.
Mandei uma mensagem para Juliana avisando que já estava a caminho, tomei um rápido banho e segui para o escritório com uma pequena garrafa térmica de café a tiracolo. Assim que o elevador abriu, uma imensa faixa me recepcionava. Era uma surpresa dos funcionários, reforçando a data importante. Fiquei desconcertado com os aplausos e gritos, enquanto alguns vinham me cumprimentar.
Logo em seguida, minha sócia surgiu com um chapéu de Mulher-Maravilha, desses de festas infantis, segurando um bolo com duas velas acesas: uma com o número três e a outra em formato de interrogação. Não escondi uma risada alta com a brincadeira, ao mesmo tempo em que acompanhava as palmas do coro entoando o bom e velho “Parabéns pra Você”. Apaguei as chamas seguindo o ritual da ocasião e agradeci a todos pela lembrança.
“Aceite, não tem mais volta...”, a chacota de Juliana me veio à cabeça, quando a abraçava. Não tinha nenhum problema com o fato de ter entrado de vez na “era dos trinta”. Pelo contrário, estava muito bem sucedido e estabelecido (com a ressalva da já citada área amorosa), por isso levava aquelas brincadeiras numa boa. No entanto, toda aquela comoção fazia-me lembrar do quão recluso era em alguns momentos, transmitindo-me uma sensação de falsa intimidade. Não generalizo essa questão, obviamente. Tinha poucos amigos, adorava-os, e procurava ser bastante comunicativo, mas não gostava muito da ideia de uma grande celebração com os holofotes voltados para mim, por mais contraditório que pudesse parecer.
Segui todos os protocolos, cortando o primeiro pedaço e fazendo um breve discurso. Pouco tempo após a euforia inicial, as pessoas começaram a se dispersar, voltando aos seus afazeres. Coloquei alguns salgados que estavam na cantina em um prato e segui para a minha sala. Era o meu aniversário, mas a agenda de trabalho prosseguiria normalmente.
Assim que me aproximei, notei um pequeno embrulho repousando na minha cadeira. Estranhei, imaginando se tratar de outra artimanha da minha velha amiga. Tirei o embrulho calmamente, até me surpreender com uma antiga edição de Batman emoldurada, em perfeito estado. Meus olhos brilhavam com aquela raridade em mãos e era impossível esconder um sorriso.
- E aí, gostou?
Assustei-me com uma presença atrás de mim, e me virei rapidamente. De braços cruzados, ao lado da porta, um rosto familiar com a barba por fazer - que parecia destacar ainda mais o sorriso perfeito - e os olhos fixos em minha direção, aguardava uma resposta. Levei um tempo até a ficha cair e compreender com exatidão a sua identidade:
- Gustavo?
(continua)
...
Oi pessoal! Fiquei de postar esse capítulo ontem, mas acabei ficando preso no trabalho. Bom, aqui está ele! Irish, sim, Augusto é muito determinado, mas ainda temos muito chão pela frente (não posso falar sem entregar muito, rs). Ah sim, a ajuda do ruivo é muito bem-vinda! A gente se diverte discutindo essa história! Kevina, os safados vão sofrer! Adorei te encontrar no wattpad! Trager, obrigado pelo elogio, espero não decepciona-lo mesmo! Ale.blm, ri muito com o seu comentário. É bem por aí, a caneta vermelha já está a postos. Jeff08, te adianto que ela vai começar em grande estilo (rs)! Drica Telles (VCMEDS), pois é, quase seu xará (aliás, o que significa VCMEDS?)! Essa parte do planejamento e estratégias de Augusto é a que eu mais gosto! O ruivo manda outro beijo também! Reece, que bom que está gostando! Fico muito feliz! Perley, pode deixar que ela virá com tudo! Mais uma vez, agradeço muito os comentários empolgados e votos de todos vocês. Aproveitando, também estou publicando essa história no wattpad! Quem quiser me adicionar por lá, meu perfil é @peuluciano. Domingo estou de volta com mais um capítulo. Abração!