Depois daquelas frases, eu parei de raciocinar mais uma vez. Seria possível que ela pudesse fazer isso comigo? Pior que eu sabia que sim. Ela já havia mentido tantas vezes, e sobre tantas coisas, que sim, havia grande possibilidade daquilo tudo ser uma grande mentira.
.
A Ruth continuou falando: Minha filha, escute essa mulher aqui. Meu marido dizia que a gente precisa ter malícia na vida. Vocês duas são muito bobas. Desde que eu olhei pra cara dessa menina que ela não me engana. Me explique por que ela não quer que ninguém a acompanhe a quimio? Me explique como uma pessoa que está se submetendo a um tratamento desses coloca uma gota de álcool na boca?
Thy: Outra coisa... Você ouviu o que o Mário tava falando na mesa, Mah?
Eu: Não prestei muita atenção.
Thy: Ele tava contando que semana passada eles saíram: Ci, ele, a cabelereira dela e mais alguém.
Eu: Acho que ouvi essa parte.
Ela: Então você não ouviu o resto... Ele disse que eles foram pra uma festa, e que Ci ficou a poucos metros de uma caixa de som estridente. Pelo que eu entendi da conversa, ela tava fumando maconha.
Ruth: Tá vendo? Eu sabia que tinha mais coisa aí. Agora ela vem com esse discurso de que vai ficar bem, claro que ela vai ficar bem. Ela não tem nada. Mas uma coisa eu sei, ela tá metida com coisas mais sérias.
Eu: O lema dela agora é viver a vida como se fosse o último dia.
Ruth: E isso é lema de quem quer se curar? Aliás, curar do que?
Eu: Mas como vamos descobrir isso?
Thy: Só se a gente falasse com o Guto.
Eu: Quem é Guto?
Ela: O Guto é um amigo meu de infância. Ele é químico do Hospital que ela diz estar se tratando. Logo, ninguém faz quimioterapia sem que ela saiba. Tudo passa por ele e outro rapaz. Podemos conseguir os dados dela e falarmos com ele, pra ver se ele descobre algo.
Eu: Cara, não pode ser possível. Ela não teria coragem de fazer algo assim. É muita maldade. Minha vó morreu de câncer, seu pai morreu de câncer, o tio da Malu morreu mês passado de câncer. Se isso for mentira, ela escolheu as três piores pessoas pra machucar com algo assim. É monstruoso.
Ruth: Minha filha, você não sabe do que as pessoas são capazes. Você conhece ela mesmo?
Fiquei em silêncio e depois respondi: Acho que sim.
Ruth: Ela já mentiu pra você?
Thy e eu nos olhamos.
Eu: Algumas vezes.
Ruth: E você ainda tem dúvidas de que isso pode ser mentira?
.
Ela saiu e Thy e eu ficamos em silêncio na mesa.
.
Eu: Meu... é surreal.
.
Disse isso indo para meu quarto. Tomei um banho, lavei o cabelo outra vez. Tava ficando Expert nisso.
Sai do banheiro e estava penteando os cabelos quando Thy bateu na porta do meu quarto. Abri, ela entrou e sentou.
.
Ela: E aí... como você tá?
Eu: Péssima.
Ela: Imagino. Odeio te ver assim.
.
Deitei no colo dela e ela ficou mexendo no meu cabelo.
.
Thy: Mah!
Eu: Oi.
Ela: Você lembra de alguma outra situação das coisas que ela te contava, que possa ser mentira.
Fiquei em silêncio e sentei.
Eu: Talvez. Não sei. Olha... Tem coisas que eu não entendo. Por exemplo: Ela me dizia que virou sócia do Japa no restaurante. Pra virar sócia, ela precisava de capital, certo?
Thy: Certo.
Eu: Mas quando a sociedade acabou e ela se demitiu, o certo seria que o japa devolvesse o dinheiro dela, certo?
Ela: Certo.
Eu: Embora pudesse ter uma cláusula que em caso de rescisão de contrato o dinheiro não fosse devolvido, ainda assim, ela não teria deixado isso pra lá. Acontece que eu nunca vi ela com esse dinheiro. Na verdade, quando ela chegou aqui em abril do ano passado, ela torrou um dinheiro em poucos dias. Mas não seria um dinheiro de capital, entende? Foi coisa de uns R$2.000,00, em uma semana. Comprou umas besteiras pra mãe, fez um churrasco, muita bebida e muita comida. Se exibiu, comprou presentes. Mas na hora de voltarmos pra casa, estava sem dinheiro até para as coisas básicas. Enfim... Fora isso, tem outra coisa que lembrando bem, no início eu nunca pensei. Mas agora eu duvido de tudo.
Ela: O que?
Eu: Então... assim que ela foi embora a primeira vez, algum tempo depois, era um domingo pela manhã. Eu havia acordado cedo, nem lembro a razão. Estava passando um café, quando o telefone tocou e era ela. Estava aos prantos. Fiquei super nervosa e perguntei o que havia acontecido. Me disse que o técnico havia ido lá, pegar o computador dela para concertar. Disse que estava só, e que ele entrou para pegar a CPU. Foi quando ele a agarrou e tentou abusar dela. A prendeu contra o balcão da cozinha, e ela alcançou uma faca. Conseguiu ainda cortar o braço dele. Ele saiu correndo da casa dela. Eu já estava chorando desde o primeiro instante que a ouvi. Fiquei arrasada. Disse que ela deveria dar queixa. Ela me disse que iria dar outro jeito. Perguntei qual, e ela falou que iria até uma comunidade, falar com o chefe do tráfico, que era um amigo dela. Nem me dei conta na conversa que raio de pessoa tem amizade com o chefe do tráfico. Tentei acalmá-la e no dia seguinte soube por ela que ele havia sido encontrado morto, amarrado numa árvore. Um carro foi de encontro ao corpo dele algumas vezes. Me disse ainda que saiu em todos os jornais de lá. Na época, revirei a internet, nunca achei nada.
Ela: O que você acha?
Eu: Thy, quando ela retornou, fui toda cuidados com ela. Eu não queria sequer tocá-la, com medo de trazer lembranças ruins. Ela me disse que nem lembrava mais, que era passado e pronto. Mas confesso que pensando em tudo, acho que nunca foi verdade essa história.
Ela: Qual a razão de alguém fazer algo assim?
Eu: Me manter perto dela. Ela sabe como sou sensível com essas coisas. Agora o que não entendo é que eu a amava e ela sabia disso. Qual a necessidade de inventar uma mentira assim?
Ficamos em silêncio.
Eu: E tem mais uma coisa.
Ela: Mais?
Eu: Sim. E essa talvez nos ajude a desvendar tudo que tá acontecendo agora.
Ela: Diga.
Eu: Ela conta uma história, que uns dois anos atrás foi diagnosticada com câncer. Que foi fazer uns exames, de "rotina", lá no Hospital de Barretos, referência no tratamento do câncer. E na hora do resultado dos exames, havia uma pessoa com o mesmo nome dela - Cibely Sousa Aguiar -, que estava com um tumor no cérebro. Assim sendo, os exames foram trocados, e o diagnóstico foi pra ela.
Thy: Mah, que conversa torta é essa? Você acha que um hospital como o de Barretos iria cometer um erro tão grotesco desses? Outra, por que ela não os processou então? Ela chegou a fazer o tratamento?
Eu: Conta que fez umas duas sessões ainda, até que o erro foi descoberto.
Ela balançou a cabeça.
Thy: Você é muito inocente mesmo. Ela deveria estar prestes a perder o emprego, coisa assim. Deve ter feito a mesma coisa para comover os outros lá. Cara, essa menina é muito mentirosa. Te prometo que a gente vai descobrir tudo, tudo mesmo. Agora dorme.
.