Quando cheguei na garagem estava trêmulo. Muita coisa passava por minha cabeça naquele momento. Era difícil aceitar a ideia de que uma grande amigo, um garoto que sempre esteve a meu lado e que me ajudou muito na minha adolescência, estava morto. Eu tive medo que o pensamento começasse a se formar em minha mente... João Carlos.
_ Não Guto, não pensa isso raca... Claro que foi assalto. Só pode ter sido isso... A onda de violência que cada vez mais tomava conta da cidade era a única coisa aceitável num momento como esse...
Eu dei partida no carro e antes de engatar a marcha meu celular chamou...
_ Alô... Foi tudo o que consegui dizer.
_ Olá Guto... Tô ligando porque estou indo dormir e tava roxo de saudade.
Eu não tinha como manter essa conversa no âmbito do normal e disparei...
_ Jonas meu querido desculpa por não poder de dar atenção... Tô sindo de casa nesse momento. Na verdade já estou com o carro ligado...
_ Sua voz não tá normal. Posso saber o que tá acontecendo?
_ Um grande amigo ligou avisando há poucos minutos que um outro grande amigo, na verdade um irmão, foi assassinado no final da tarde de hoje. Vamos nos reunir na casa de um deles e ver o que pode ser feito. Por favor não pensa que não fiquei feliz com o seu telefonema... As lágrimas e a voz totalmente embargada me fizeram parar e chorar enquanto esse lindo garoto esperava eu me acalmar pra poder seguir em frente, coisa que sabia fazer muito bem e a bastante tempo.
_ Você quer que eu vá junto? Posso pegar minha moto e voar pra aí...
_ Não meu garoto lindo... Obrigado por estar aí, viu? Eu já estou melhor... Só em saber que não tô mais sozinho já me deixa mais tranquilo.
Nos falamos por mais dez minutos e finalmente saí da garagem com destino a casa do Raul e da Heloisa.
Minha cabeça tava doendo e enquanto corria pelas ruas e avenidas da cidade muitas lembranças vieram a minha mente. O primeiro dia de aula no colégio, as aulas de natação no clube que frequentávamos, as tentativas de namorar alguma menina sem sucesso da minha parte, as vezes em que conversamos papo de homem ais 14 anos de idade, ele um ano mais novo...
_ Meu Deus que pesadelo é esse?
Quando estacionei em frente a casa do Capitão Teles vi os carros do Pedro e do Guilherme estacionados. Manobrei e deixei o meu ao lado do carro d Pedro e toquei a campainha da casa. O próprio Raul Teles atendeu a porta e ao vê-lo notei que ele também chorava. Nos abraçamos no portão de sua casa e foi inevitável a emoção que me fez chorar novamente.
Pelo que Raul nos contou, Marcelo havia saído do seu escritório localizado na Avenida Santos Dumont e tinha ido direto pra casa. Ele queria deixar sua mala já pronta por conta de uma viagem que faria a Belo Horizonte no dia seguinte e iria correr na Avenida Beira mar.
_ E quando ele desceu do carro em frente a cabine vazia da PM foi agredido violentamente por dois homens bem fortes, segundo testemunhas, que após mandarem ele ajoelhar, apontaram cada um deles uma pistola em direção a sua cabeça e o mandaram implorar pela vida... A gente sabe que o Marcelão jamais implorou nada a ninguém... Só que dessa vez ele pediu, implorou, prometeu que daria o que eles quisessem... Aí os dois riram e começaram a atirar... Doze tiros de pistolas em seu rosto... Algum de vocês consegue imaginar tamanha crueldade para com alguém totalmente indefeso?
Pedro cobriu o rosto com as mãos e Guilherme baixou a cabeça já chorando. Eu não acreditava no que ouvia... Era loco demais tudo isso...
_ Sabe Brancão, ele tinha me dito que tava conseguindo te conquistar... Ele me disse inclusive que falou pra você sobre as coisas que ele tava sentindo...
O funeral foi realizado no começo da tarde do dia seguinte. Muitas foram as pessoas que lá compareceram e ao ver sua família depois de tanto tempo senti o quanto que o meu amigo marcelão deve ter sido amado por eles.
Mais uma vez seguimos em direções opostas e quase um mês depois me senti mais confiante pra fazer uma visita ao meu amigo João Carlos.
Enquanto dirigia por toda a extensão do muro do presídio, um certo nervosismo começou a tomar conta de mim. Muito tempo havia passado e vê-lo pela primeira vez depois de tantos anos me fez temer sua reação. Quem era o cara que estava guardado atrás daqueles muros? Será que João Carlos, o meu Moreno, ainda sonhava com coisas impossíveis quando cheio de confiança me contava o que estava em sua mente? Será que me aceitaria como um amigo, mesmo eu tendo ido embora e deixado tudo pra trás? Estacionei numa grande área aberta e me dirigi ao portão de entrada.
Antes de entrar propriamente no lugar, fui virado praticamente do avesso e isso devo confessar foi bastante constrangedor.
_ O Senhor pode seguir em frete após se vestir e aguarde em frente ao portão... Foi tudo o que um dos Agentes Penitenciários me disse de modo impessoal.
Finalmente entrei acompanhado por mais dez pessoas.
Me mandaram sentar numa cadeira comum e aguardar enquanto o detento era trazido. Por conta da espera minhas mãos começaram a suar. Finalmente ele veio com seu passo largo e com a cabeça baixa. Tinha crescido mais um pouco, a pele estava queimada de sol, tinha o cabelo raspado e assim que vi seus olhos soube que não estava diante do meu amigo, ali só havia um estranho e esse estranho tinha ódio em seu olhar...
Me levantei assim que ele parou ao lado da mesa e ao estender a mão para poder cumprimentá-lo ele sentou e ficou olhando para o outro lado do grande salão que estava completamente lotado.
_ Moreno, eu...
_ Do que você me chamou? Moreno? Foi isso mesmo que ouvi?
_ Pelo menos era assim que eu chamava um garoto que num tempo meio distante era o meu melhor amigo. Acho que confundi, né?
_ Não, não confundiu. É como você falou, isso foi há muito tempo. E você cara, quem é você? Ta mais alto, tá mais pálido, forte... Mas juro que também não sei quem é você.
_ Você me odeia tanto assim, João...
_ Boca, porra... Meu nome aqui é Boca, sacou? Você fala em ódio e eu fico olhando essa sua carinha de bebê chorão e sinto vontade de vomitar. Ta com pena de mim, é isso? Ou você tá apenas surpreso? Aposto que aqui é bem diferente dos lugares em que você anda, né Otávio Augusto?
_ Será que preciso responder a essa pergunta? Será que você não lembra o ambiente em que eu sempre andei e ainda ando? Juro que humilhá-lo não estava em meus planos, pelo contrário... Só que ser provocado me fez revelar um lado defensivo que chegou a me surpreender...
_ Tudo muda, cara... Olha onde um brilhante aluno de Engenharia veio parar... Uma coisa eu aprendi, num dia a gente tem tudo e num outro, tá perdido pra sempre...
_ Por que Boca? Você tinha prometido que iria ser diferente, cara... Eu só queria entender tudo isso.
_ Sobrevivência playboy, pura sobrevivência. Você foi embora, meu pai saiu de casa de vez após espancar minha mãe pela milésima vez e com a morte do meu irmão pelas mão do dono do tráfico lá no morro em que morava tudo ficou sem controle. Você me mostrou um mundo e juro que queria demais esse mundo pra mim... Com sua saída de cena aqueles amigos que eu pensava que tinha foram me isolando cada vez mais... Você era a minha luz. Você tratou de apagar essa luz quando acatou a vontade da tua mãe, aquela vaca...
Ouvi-lo chamar minha mãe de vaca foi pesado demais pra mim. respirei fundo e disse olhando em seus olhos:
_ Deixa os meus fora disso, Boca.
_ É fácil né playboy deixar as coisas de lado quando se tem tudo e o mundo é o limite?
Fiquei em completo silêncio e após uns dez minutos ele disse:
_ Você me deixou sozinho, cara... Eu me perdi completamente e suas cartas fodidas e cheias de mentiras e ilusões jamais conseguiram matar o ódio que passei a sentir por você ao longo dos anos...As últimas que você mandou jamais li... Eu passei a ser respeitado e temido, o que fazia com que me sentisse muito maior que qualquer um de vocês...Tráfico, mortes, assaltos, sequestros, cara você não tem noção de como tudo isso pode ser excitante e fascinante... E eu era o dono do pedaço, era Deus na minha comunidade... Até o dia em que matamos um político filho da puta e seu garotinho de estimação num motel de periferia... Aí eu soube que tava fodido de uma vez por todas pois o filho da puta era irmão de um grandão da Polícia Federal que já tava na minha cola, aí com certeza ele somou dois mais dois e eu vim parar aqui com a ajuda do Dr. Marcelo Novaes... Eu só vim entender tudo isso depois que ouvi aquele maldito Juiz ler a sentença como se tivesse orgulhoso em bater em gato morto...
_ Você soube da morte do Marcelo?
O que ele me disse como resposta me fez ficar em alerta...
_ Claro que soube, ele já estava na minha lista e pode estar certo de que não vai parar por aqui...
_ Então foi...
_ Agora você sabe o tamanho do poder que eu tenho... Não quero te ver nunca mais na minha vida. Não esquece playboy que você ta na minha mira... E avisa aquele garotinho que você anda fodendo por aí que se eu souber que vocês estão juntos alguém terá que pagar...
_ Não João Carlos... Você não tem esse direito... Você não...
_ Você ta drogado playboy? Enlouqueceu? Quem é você pra dizer o que eu posso ou deixo de poder? Você fala em direitos? Os meus eu já sei... Permanecer em silêncio e o que eu falar será usado contra mim... Minha sorte é que só estamos nós dois aqui... Não me provoque Otávio Augusto Nobrega de Castro... Você não tem noção do quanto que eu posso.
João Carlos levantou e saiu dessa vez com a cabeça erguida e um cínico sorriso nos lábios. Deu tudo errado e dessa vez toda a ilusão que eu tinha em poder retomar nossa amizade foi por água abaixo... Moreno me odiava e pela primeira vez eu fiquei aliviado por saber que não tinha nada a ver com sua prisão.
Minha cabeça estava latejando furiosamente e assim que me vi fora daqueles muros repletos de arame farpado e guaritas para os policiais da vigilância, consegui finalmente deixar o passado pra trás... Jonas era o meu agora. Sem ele a coisa não teria sentido nenhum. Boca veria o que eu seria capaz de fazer para ter esse lindo garoto na minha vida e se Deus quisesse, para sempre.
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Meus queridos e queridas...
Desculpem pela hora. O que importa é que consegui postar. Um grande e fraterno abraço a cada um de vocês que sempre serão razão mais que suficiente para que eu continue... Nando Mota.