Era novembro quando ele chegou. Exatamente vinte de novembro de 1971. Eu estava com dezesseis anos e achava que o Junior seria o unico homem de toda a minha vida. Bobagem! O fato de estarmos transando havia um ano nao significava muito, e significou menos ainda quando o Rafa veio morar là em casa naquele novembro sufocante.
Longe do orfao choroso que eu esperava, vi chegar ate nossa casa um cara de dezoito anos, alourado, olhos castanhos, jeito de moleque levado. Para quem havia perdido os pais hà pouco tempo, ate que ele ria demais, ou talvez fosse tudo fachada, uma defesa esperta para sua dor ainda viva, jà que altas horas da noite pude ouvi-lo chorar abafado no quarto ao lado que minha mae (sua madrinha) arranjou para ele.
Eramos os dois filhos unicos, e agora seriamos como irmaos naquela casa. Esperavam meus pais que nos dessemos bem, falavam mesmo que costumavamos brincar juntos quando bem novinhos, em dois Natais que nossas familias partilharam. Eu nao me lembrava disso, devia ser novo demais para tal, so' sabia que depois que nos mudamos para Piracicaba, para o sitio que o papai comprou, os compadres perderam o contato. Infelizmente o acidente que vitimou os pais do Rafa veio nos juntar outra vez, de maneira dolorosa.
Ele gostava de me contar as coisas da cidade onde vivia. Ligava o tocador de discos e ouviamos os Beach Boys enquanto Rafa me falava da escola, dos amigos, do seu trabalho de meio expediente numa lojinha de calçados. Quase em silencio, eu me achava feio perto dele, magro demais, com aquele cabelo escuro e lambido caindo pelos olhos, um rosto que corava por qualquer coisinha. Com o tempo, Rafa conversava comigo deitado em minha cama, falando baixinho, calorento e sem camisa, um sorriso lento de quem se perdia nas proprias lembranças, como um homem jà velho.
- Voce jà viu o mar, Murilo? _ ele me perguntou um dia; o cheiro do seu suor invadia o quarto naquela tarde esbraseante e eu, deitado de bruços perto dele, sentia meu pau duro.
- Nunca. Voce sabe que jamais sai do Estado de S.Paulo _ respondi.
Os Beach Boys ainda rodavam na vitrolinha do Rafa. O som da decada passada era quase triste, evocava uma juventude americana bela, conservadora e heterossexual. Imaginei menininhas de vestidos com laços, apaixonadas por surfistas dourados ou almofadinhas de lambretas.
- Na primeira vez, quando a gente olha aquele cinza azulado todo, parece uma coisa quase asfixiante_ ele disse e sorriu, tao bonito; bagunçou meu cabelo_ Ainda vou morar perto do mar, voce vai ver.
Na amoreira velha de nosso sitio, Junior sempre me esperava à tarde, depois da escola e de nossas tarefas domesticas. Com dezessete anos, ele já tinha abandonado a escola para ajudar o pai no sitio deles, e tambem por preguiça, pois odiava estudar. Mais alto do que eu, os cabelos cor de cobre, a cara salpicada de sardas, ele era um moleque obtuso, irônico e com um apetite sexual gigantesco que chegava a me machucar. Seu pau nao era muito grande, mas ele queria meter em mim varias vezes seguidas, queria gozar ate nao aguentar mais, era um tipo de libido desesperada; transavamos numa joça, uma cabaninha de caça que o pai dele possuia na mata da propriedade, tudo no chão, em meio à sujeira, aos insetos e ao calor. Ele colocava um trapo no chão, um pedaço de lençol encardido, e já avançava como um louco sobre mim, beijando, mordendo, apertando, sôfrego.
- Ah, Murilo..._ ele arquejava enquanto me penetrava de frente, mais rubro do que nunca_ Ah, que apertadinho...
Ultimamente eu gostava de imaginar que era o Rafa me comendo assim. Com o som da mata ao fundo, eu fechava meus olhos e podia fantasiar que eram os beijos dele que eu recebia, que era seu suor misturando-se ao meu, que era seu pau dentro de mim. Arqueava o corpo e gozava com um prazer maior ainda, um tipo de prazer mental que depois se revelava frustrante. Junior tinha orgulho em me ver gozando, isso parecia acariciar seu ego de "macho".
Depois ele queria mais, e já nao havia para mim outra fantasia. As vezes tudo ficava doloroso e longo demais, eu nao gozava, ficava irritado, sentia-me usado e triste. De certo modo isso preocupava Junior que tentava mais tarde me agradar com um pedaço de bolo que ele buscava em sua casa, feito pela irmã mais nova. Ele sabia que eu era louco por bolo.
- Poxa, eu gosto de você_ ele dizia_ Só quero te ter sempre... Talvez eu exagere. Me desculpa, meu guri?
Desajeitadamente carinhoso, porem ele conseguia o meu perdao. A impressao era a de que eu nao gostava dele como antes. Perto do Rafa ele me parecia feio, esquisito, grosseiro, um garoto vulgar. Ambos nao se bicavam, chegaram a discutir um dia, quando houve um churrasco no sitio do pai do Junior. Em outra tarde, depois do Rafa ajudar meu pai com os cavalos, ele subiu comigo na amoreira para pegarmos algumas frutas para o refresco do jantar; Junior acabou vendo aquilo e ficou furioso, saiu em disparada dali. No outro dia veio tirar satisfaçao comigo.
- Voce esta se envolvendo com aquele panaca, Murilo? _ indagou, um tanto agressivo.
- Evidente que nao! Ele nem sabe sobre mim, seu tonto _ repliquei, irritado.
- Mas voce fica com ele na amoreira e lá eu nao quero! _ exclamou, muito nervoso _ Foi là que te beijei na primeira vez, foi là que voce aceitou meu pedido de namoro... Eu nao quero esse sujeito ali com voce!
Porem o Rafa tambem gostava da amoreira, o que eu poderia fazer? Impedir o garoto de ir ate là? Em nosso tempo livre, ele e eu subiamos na arvore, e nos galhos grossos là no alto ficavamos conversando por horas, olhando as pastagens ao longe, as matas, o gado que pastava aqui e ali. Um pouco mais adiante, o rio Piracicaba brilhava longe ao sol, um filete prateado que se movia veloz. Rafa me olhava com um sorriso.
- Se voce fosse uma menina, seria linda _ disse, me fazendo corar violentamente e enfiar às pressas na boca as amoras que eu tinha na mao.
Um elogio estranho, e que no final nos fez juntos. Naquele dia o sol estava bem forte, e era cortado pela ramagem da amoreira, formando desenhos moveis e luminosos sobre Rafa enquanto ele recolhia as amoras, colocando-as no cesto. Houve um momento em que um feixe de luz solar bateu nos meus olhos enquanto eu fitava Rafa, e por um instante foi como se eu o visse numa explosao de incandescencia, como uma breve imagem de outro mundo, algo jà longe, indo embora. Mas ele sorriu, tao jovem, um brilho puro no seu olhar alegre.
Em muitas noites a minha mae deixava que eu pusesse o colchao no quarto do Rafa, para assim ficarmos conversando ate altas horas. Nesse dia ele estava cansado, mesmo sendo um domingo de descanso, e acabou dormindo depressa. Acordei algumas horas depois com o choro dele, e sem pensar duas vezes passei para sua cama, abraçando-o apertado, deixando que ele chorasse à vontade, por longo tempo.
- Sinto tanto a falta deles _ sussurrou, sem que eu soubesse ao certo o que dizer para consolà-lo.
Eu nao poderia ter escolhido pior momento para tomar uma iniciativa. Contudo, sendo eu um garoto tolo e com pouca experiencia, nao calculei o risco, e olhando profundamente para o Rafa assim que ele se acalmou, me aproximei mais dele, tocando de leve nossos làbios, numa sensaçao quente, rapida e eletrizante.
Ele me empurrou, sentando na cama e esfregando a boca com a mao.
- Sai daqui, Murilo _ falou, perplexo e irritado.
- Rafa, desculpa... Eu...
- Sai daqui, seu veado! Quer que eu và falar para o seu pai? _ disse ele, abrindo a porta e me olhando; depois que sai com meu colchao e travesseiro, a porta bateu atras de mim, me fazendo sentir pessimo e envergonhado como nunca antes.
Depois dessa, o Rafa nem me olhava mais na cara. Foi horrivel, viviamos cada um no seu canto, em silencio, enquanto eu sentia uma falta monstruosa de nossas conversas, de suas piadas, do som do Beach Boys no quarto dele. Descontava minha frustraçao em Junior que, atormentado com minha frieza, pedia desculpas por coisas que sequer tinha feito, prometia "pegar leve" comigo, prometia todo um futuro brilhante de amor e respeito. Ele ainda fazia questao de me fazer gozar em nossas transas, mas agora tambem conseguia que eu me sentisse ainda mais triste, e de modo inconsciente eu as vezes o culpava por ele nao ser o Rafa.
Justamente em março, mes do meu aniversario, Rafa começou a adoecer. Reclamava de fraqueza e cansaço o dia todo, um pouco pàlido, e numa tarde em que ele ajudava meu pai no estàbulo, acabou desmaiando. A partir dai, os desmaios ficaram frequentes, bem como o sangramento nasal que durava horas. Olhando-o com pena, eu tinha um pressentimento ruim e ele, encontrando o meu olhar, desviava o seu com os olhos marejados. Meu pai o levou à cidade, e apos uns exames, o diagnostico de leucemia caiu como um raio là em casa.
Passei a chorar escondido quase que o dia todo. Sabia que ele nao ia conseguir, o medico havia dito que a doença estava em estagio avançado, alem de ser do tipo mais agressivo. Fizeram duas transfusoes de sangue nele, e no dia em que ele saiu do hospital, tao fraquinho, amparado por meu pai, fiz questao de ficar ao lado dele por algum tempo no quarto.
- Sei que voce me odeia, mas nao vou sair daqui _ falei, sentando na beirada da cama e segurando a mao dele; tinha emagrecido bastante nos ultimos meses, mas ainda estava bonito, agora com uma beleza palida, de uma vida que fugia depressa.
- Nao odeio voce, Murilo _ disse ele, respirando com cansaço _ Jà nao faz mais sentido para mim odiar alguem...
- Voce ainda vai viver, Rafa. Precisa acreditar nisso...
- Eu nao quero _ ele sussurrou _ Estou aliviado por estar morrendo, pois perdi a vontade de viver no dia em que meus pais se foram. Me sinto sozinho no mundo, mesmo tendo o apoio de voces... Pedi tanto para morrer que acho que Deus me atendeu.
- Nao, Rafa... _ comecei a chorar na frente dele.
- Menino bonito... _ ele sorriu, me olhando _ Eu nunca poderia corresponder... Sabe disso, nao sabe? Voce e' novo, tao gentil... e tem saude. Vai encontrar um garoto bacana. E eu vou em paz, vou por vontade propria. Levo voces todos no meu coraçao, Murilo.
Ele ainda aguentou umas duas semanas, depois nao houve tempo para mais nada, as transfusoes de sangue nao surtiram efeito e um provavel transplante se tornou algo inatingivel àquela altura. Num sabado de manha, de ceu muito azul e vento, o Rafa se foi.
Talvez a amoreira soubesse de minha dor. Era nela que eu chorava todas as tardes, enquanto o outono chegava com suas cores amareladas; era em seus galhos grossos e altos que eu me deitava e olhava para a ramagem movida pelo vento, para o sol repicado pela galhada e sentindo o cheiro enjoativo dos frutos se evolando no ar. Foi nela que pensei em me matar enforcado, para me encontrar com Rafa. E foi nela que Junior me consolou em silencio, e de um modo que ele nunca saberia, tirou aquela ideia da minha cabeça.
Acho que ele sempre desconfiou de meu amor pelo Rafa, embora nao tenha tornado a tocar no assunto, nem para me recriminar. No inverno, enquanto ele me abraçava no alto da arvore, embrenhados nos dois nos galhos mais fortes, sentindo o vento frio nos fustigando ali no alto, entendi que o garoto "bacana" ao qual Rafa se referiu antes de morrer era ele, o Junior. Parece que eu nao estava enxergando isso ate agora.
- Vamos là em casa? _ ele convidou, beijando meu rosto devagar _ A mana faz um cafe' quentinho pra gente. E com bolo, meu guri...
Descemos da arvore. Por ser longe de casa, seria dificil alguem nos flagrar ali, e nunca tinha acontecido. Mas quem sabe nao era aquele sardento que me dava sorte? Quem sabe eu ainda nao tornaria a amà-lo? Olhando para o alto enquanto seguia o Junior pela pastagem afora, o sol parecia brilhar muito mais, no ceu limpo cor de anil. Parecia ser o sorriso luminoso do Rafa, concordando comigo.
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Oi, gente! Saudade de escrever aqui!
Esse foi capitulo unico, acho mais facil.
Abraços em todos ;)