No meu sonho era tudo muito fora de lugar, um pouco porque eu tinha ido dormir mais bêbado que um jogador de futebol depois de vencer o campeonato brasileiro, e um pouco porque eu estava abrindo os olhos de cinco em cinco minutos querendo já conseguir levantar, mas sem ser capaz de vencer o sono ainda. Queria estar acordado, queria fazer alguma coisa, queria virar meu rosto que estava na direção da parede e volta-lo para a outra direção, a do rosto do Wiliam, que roncava alto atrás de mim e era até divertido de ouvir. Aí eu pensava, vou dormir mais um pouquinho, quando eu acordar de novo eu tomo coragem e me viro. Dormia, acordava, mas a coragem não vinha. Ele se revirou outra vez, tirando o braço de cima de mim, toda vez que ele se mexia soltava um som grave da garganta, como se estivesse falando no seu sonho. Devia ter ficado mais bêbado do que eu. E em algum momento eu senti que não podia mais dormir, a fome estava vencendo a batalha contra o sono, o que era a única razão que me fez despertar de vez. Esperei até ouvir seu ronco para ter certeza que ele ainda estava dormindo (não queria me virar na sua direção e dar de cara com seus olhos focados nos meus, pego em flagrante delito, querendo espiar o amigo dormindo) e quando ouvi foi meu sinal, eu estava de barriga para baixo na cama e só precisei virar a cabeça para dar de cara com ele. Dormindo, parecia tão inocente quanto nunca o vi acordado, mesmo quando o vi pela primeira vez e éramos novos, ele já não tinha nada de inocente. No sonho meio fora de lugar que eu estava tendo pouco antes, lembrava daquele sorriso malandro dele depois de entender o que eu falava sobre minha amiga querer esquema. Sorriso safado. Para não dizer sorriso puto. Não tenho nada contra palavrões quando postos na hora certa, as vezes valem mais que o mais honroso dos elogios. Sorriso puto: eu lembro que arrepiou ate os pelos da minha nuca naquele dia. Sorriso puto: eu lembro da festa quando ele disse "agora eu cresci" e abriu o mesmo sorriso e meu pau endureceu na hora. Sorriso filho da puta, eu tinha uma ereção que podia ser matinal ou podia ser por estar olhando para ele assim logo cedo.
Cedo o caramba, o relógio da parede marcava quatro horas. Mas como não adiantava me apressar agora, continuei deitado. William estava de barriga para cima, sua mão direita no travesseiro, sua mão esquerda em cima da barriga. Ele cortava o cabelo bem baixo, algo militar, o que era um gosto raro para alguém da nossa idade, mas que lhe dava ainda mais um ar masculino fechado, como um jovem segurança de terno e gravata. Mas estava sem camisa, pelo visto gostava de tomar sol sem camisa, não havia nenhuma diferença de tom da pele entre o rosto e os braços, entre os braços e o peito, talvez, entre o peito e as pernas, pena, estava de calça comprida. Dormiu num jeans apertado e desconfortável, como eu também. Barriga definida, mais que a minha, que nao importava o quanto eu me exercitasse nunca ficaria naquele aspecto de músculos perfeitamente alinhados como se fosse paralelepípedos numa rua de cidade antiga. Minha barriga se dividia, mas era só isso, nada tão bem feito, um pouco porque eu me negava a comer batata doce e afins. Wiliam devia comer essas coisas, ninguém fica com o corpo daquele jeito do nada. Meu pau até doía, aprisionado naquele jeans, eu o apertava mais contra o colchão. A cada minuto perto dele eu parecia capaz de ir mais longe, minha cabeça se permitia fantasiar mais ousadamente. Ele sem roupa, com essa cara de homem sério, os olhos em mim, o sorriso-safado-puto-filhodaputa na minha direção, as pernas para cima, frango-assado, meu. E eu comendo ele.
Bem na hora, como se vislumbrasse meus pensamentos, Wiliam se mexeu outra vez na cama, se revirando com o corpo de lado, do meu lado. Seu cheiro viajava com a corrente de ar e parecia sempre vir na direção das minhas narinas. Agora não havia mais nem o perfume nem o shampoo suave, era o seu cheiro apenas, era o cheiro dos seus poros, dos pelos do seu braço, da sua pele em tom ensolarado que lhe dava a imagem perfeita de "um rapaz saudável", estilo modelo de outdoors vendendo produtos esportivos.
Eu tinha que me levantar ou então acorda-lo para beija-lo. Mas eu não tinha coragem de fazer a segunda opção, então tomei cuidado para não balançar demais o colchão quando saí da cama, ele se revirou outra vez como se seu corpo percebesse a minha ausência.
Fora do quarto, nem me dei ao trabalho de trançar a porta, ele disse que ja nao havia mais ninguém na casa (e eu lembro que ontem, quando falávamos na frente da Marina ele disse que "uma galera" dormiria aqui, mais uma vez a sensação de estar enredado num plano dele, mas isso não me assustava) a casa estava tão bagunçada que eu dei um salto e nadei de peito num mar de latinhas de cerveja vazias e vasos quebrados e móveis jogados para chegar ate o banheiro no fim do corredor. Meu rosto no espelho nunca me pareceu tão sonolento. Barba de dois dias por fazer, aquela sombra no queixo e no maxilar dos pelos crescendo afiados, mas nao usaria a gilete dele, pelo menos nao sem pedir antes. Lavei o rosto com a água gelada da pia, e parece que so depois de lavado é que consegui encontrar outra vez meus olhos, verdes como os do meu pai, grandes como os da minha mãe. Foguetes em algum lugar próximo, era domingo e provavelmente alguém fez gol no jogo da tv. Eu parecia mais magro e mais pálido do que me lembrava, mas logo percebi que isso era só porque eu estava me comparando com ele, mais bronzeado, mais encorpado. Minha pele muito branca, meu cabelo muito preto e despenteado gritando que ja era hora de ser cortado, a camisa marcava meu corpo, os músculos, os relevos (eu lembro o quanto hesitei para entrar na academia, fazia letras, escrevia muito, ficava meio sem logica ter o corpo definido, mas ao mesmo tempo queria melhorar, queria ser de tudo um pouco, escrever e depois fazer flexões, um conto, uma abdominal, um poema, peito e braço) . Lavei o rosto outra vez, estava meio tonto de toda aquela bebida mas não com dor de cabeça. Lavei a nuca, molhei o cabelo, água fria pra me tirar um pouco daquele ambiente superaquecido do quarto dele, da cama dele, dele. Ao tirar o pau da calça para mijar, aquele esforço todo em mirar com o pau duro, aquelas historias todas que só homens sabem, eu sei, ele tambem, um segredo que se compartilhasse com alguém como Marina não faria o mesmo sentido. Ele era igual a mim. E EU NÃO CONSEGUIA FORMULAR UM PENSAMENTO EM QUE ELE NÃO ESTIVESSE NO MEIO.
Quando ele acordou ja começava a anoitecer, era inverno e seis horas o sol já não existia mais, eu até poderia ir embora antes, mas por que faria isso? Não havia um motivo para não ficar. E estava sentado na mesa da casa dele, do lado de fora perto da churrasqueira tentando entender como fazer música com um violão que achei bisbilhotando suas coisas, quando ele saiu do quarto me chamando.
- Aqui - gritei e ele farejou a minha voz. Apareceu com um sorriso de sono, ainda sem camisa mas com uma calça de moletom mais confortável, coçava a parte de trás da cabeça sorrindo, nao sei se para me mostrar os músculos do braço ou a maneira que seu mamilo se exibia. Podia ser qualquer coisa, menos uma simples coceira na nuca.
- Bom dia, Tiago.
- Boa noite, Wiliam.
Se sentou na cadeira em frente a minha, sobre a mesa salgados meio mordidos e vasilhas de Duritos moles, o cheiro do chão era cerveja e cigarros pisados, mais ou menos como o cheiro das baladas quando voce é o ultimo a ir embora. Eu arranhava as cordas do violão em vez de toca-las, parecia mais o miado de um gato velho com câncer na garganta do que música aquilo que eu estava propagando no ar. Wiliam me interrompeu com a mão na testa, fingindo ressaca (ou tendo mesmo uma ressaca), rindo "Cara, cara, por que você quer me torturar?" e só porque ele disse aquilo eu cantava bem alto Smells like a teen Spirit quando o violão parecia querer tocar Rebolation versão buzina de carro.
Ele tomou o violão da minha mão. "Eu te adoro cara, mas você não nasceu pra isso". Foi até la dentro, voltou com agua e chocolate em barra, almoço de domingo. Pelo menos dividiu comigo.
- Então toca alguma coisa aí, senhor engenheiro/Jimi Hendrix.
E nao é que o filho da mãe sabia tocar. Ele pensava música, eu pensava letras, talvez fosse por isso que nos dávamos tão bem. Reconheci a letra logo de cara, era Conversa de Botas Batidas, do Los hermanos, mas que, só no violão surgia mais intima que a versão original do disco, assim acústica, só a voz e as cordas, mais focado naquela letra linda que nos instrumentos. E me olhava e nem disfarçava que me olhava e soltava "Veja você, onde é que o barco foi desaguar A gente só queria um amor Deus parece às vezes se esquecer Ai, não fala isso, por favor Esse é só o começo do fim da nossa vida Deixa chegar o sonho, prepara uma avenida Que a gente vai passar..."
E quando acabou houve silêncio. Eu estava com um quadrado de chocolate na boca desde que ele começou e tao embasbacado com a sua maneira de cantar e tocar e de olhar eu ainda não tinha voltado a mim para morder a barrinha por isso que agora derretia, espalhando seu gosto bom.
- E é assim que se toca violão - falou, mostrando os dedos como se estivessem em carne viva. Viva como a chama nos seus olhos. Viva como os dragões de eletricidade voando entre nós e que eu so veria se tivesse fumado no narguilé mas mesmo sem ver sabia que estavam ali, lançando chamas no meu rosto e me deixando corado, passando suas escamas pelo meu braço e arrepiando os pelos; e não importavam os foguetes ao longe a bagunça da casa a voz do apresentador de tv depois do jogo, o que importava era nós dois e aquela mesa que nos separava.
- Exibido pra cacete - falei, em falsete
- Sou mesmo - respondeu em meio-tom convencido. - Fica por aí pra me ajudar a arrumar a casa?
Olhei ao redor, não queria nem pensar o que eram algumas manchas na calçada, com moscas girando ao redor. - Nós e mais quantos?
- Nós temos quatro braços, é mais que o suficiente. E sério, eu ja vi essa casa em estado pior. Mas como meus pais só chegam amanhã a noite, não precisamos ter pressa.
Dormir aqui de novo? Não aguentaria mais uma noite de sonhos fora de lugar, meio febris, meio eróticos.
- Eu tenho faculdade amanhã.
- Cara, eu sei que o teu curso é só a noite, não vem com desculpinha pra não ajudar - disse cheirando o Duritos e depois o pondo de volta na vasilha. - Eu peço uma pizza pra gente não morrer de fome.
- Sabia que tu é dramático demais pra um engenheiro? - brinquei com ele, comendo o ultimo pedaço de chocolate.
- Eu sei, eu sei. Depois de me formar vou construir prédios em formato de lágrimas.
Eu ri. A gente havia conseguido, agora os assuntos fluíam, éramos amigos, nunca mais voltaria aquele ponto em que só nos cumprimentávamos com gestos de cabeça.
- E ae, tu fica? Até amanha só. Quando eu for pra facul de manhã eu te deixo em casa.
Quando pedia alguma coisa seus olhos pequenos e castanhos eram um brilho úmido que comovia, ele era esperto, sabia usar da beleza que sabia que tinha pra pedir coisas a pessoas que sabia que fariam. Eu, uma dessas pessoas. Mas cobraria os favores que lhe fizesse, era bom que ele soubesse disso, eu cobraria aqueles favores todos. - Eu fico, cara.
- Valeu - seu sorriso de agradecimento so nao era mais bonito que seu sorriso safado. - Eu até te ensinaria algumas noções de violão, mas não, a humanidade não merece isso, beleza?
- Otârio, você.
Ele riu alto - Só sou otário com meus amigos.
Pegou seu telefone para ligar pra pizzaria, e assim tirando a densidade da frase que acabara de deixar escapar. Eu peguei o meu também, para avisar lá em casa que ainda não voltaria hoje. Ele falava os sabores que queria. Eu lia as mensagem que Marina me deixara: bom dia, boa tarde, você já tá acordado?, boa noite amor, quando acordar me avisa, ei? Não acordou ainda? - e por aí vai.
Queria mandar um boa noite, ela veria que fiquei online e se chatearia se eu nao mandasse a mensagem, mas ao mesmo tempo parecia tão errado. Estar ali na casa do Wiliam, com vontade de Wiliam, e mandar uma mensagem para ela como se tudo estivesse absolutamente normal, não era algo que eu diria respeitoso. Mas ao mesmo tempo, ele era meu amigo, só isso, o resto é historia, o resto é especulação da minha cabeça. Quando caras fazem novos amigos eles sao mais educados e atenciosos mesmo, Wiliam podia estar fazendo isso e eu vinha entendendo tudo errado. Mandei um boa noite pra ela, disse que minha bateria estava acabando (e estava mesmo, mas eu nao iria nem perguntar pro Wiliam se ele tinha um carregador que se encaixasse, com medo que a resposta fosse sim) e disse também que mandaria mais mensagens quando recarregasse. Avisei lá em casa e desliguei o celular. Bem na hora que ele fechou o pedido da pizza e desligou o seu também.
- Cara, mas antes de começar eu queria tomar um banho, fazer a barba sei lá, não gosto desse estilo mendigo. Pode ir começando sem mim.
Ele ria porque percebia que eu só estava querendo fugir da faxina, mas também era verdade que precisava do banho, ainda havia resquícios da festa de ontem na minha cara amassada.
- Beleza, cara, acho que as minhas roupas servem em você, pode ir e, daqui a pouco eu levo uma peça, e tem gilete nova no espelho do banheiro.
Tomei banho em água quente. Fervendo, enfumaçando todo o boxe. O sabonete que ele usava tinha um cheiro quase neutro, eu imaginava que seria assim, caso contrario o cheiro de sua pele nao seria tao latente em todas vezes que eu estava perto dele. Lavei as coxas, esbranquiçando os poucos pelos com a espuma, o corpo todo, sem pressa, sem medo. Me preparando para o que provavelmente não aconteceria. Ele era másculo demais para o que eu vinha fantasiando, sabia disso, mas eu tambem era, e la estava tomando banho pensando nele, torcia para que a reciproca fosse verdadeira. Ele, a exceção na minha masculinidade. Eu, a exceção na sua. A exceção que confirma a regra? Não saberia dizer, mas talvez fosse, eu pelo menos só me sentia assim com ele, nenhum outro.
Vinte minutos de banho. Bateu na porta. - Tá encostada.
Foi entrando lentamente, eu via sua silhueta borrada através do vidro deixando uma peça de roupa ali no boxe para mim. Mas não saiu do banheiro. Desliguei o chuveiro, se a fumaça evaporasse daquele vidro, me veria completamente nu. Eu também não conseguia ver o que estava fazendo do outro lado, talvez só me esperando. Peguei a roupa, ele nao estava brincando, era literalmente só uma peça: so um calção estilo surfista (mais uma jogada no plano dele que havia começado ontem, ou era eu que estava ficando paranóico?). Vesti, sem a cueca por baixo aquilo dava uma gigantesca sensação de liberdade, mas ao mesmo tempo de prisão, porque se ficasse de pau duro ate um cientista da NASA em expedição no espaço sideral conseguiria ver a minha barraca armada. Eu fazia Letras, tinha o direito de ser exagerado.
Saí do boxe, Wiliam na frente do espelho, a metade inferior do rosto coberta de creme para barbear, ia dar a primeira ceifada quando parou, me olhou pelo reflexo, passou para mim uma gilete nova e o potinho de creme.
Lado a lado, nossos rostos brancos sendo raspados com movimentos longos e retos. Ja eramos homens, já fazíamos aquilo há muito tempo, ja não nos cortávamos quase nunca, eu nao me cortava nem quando perdia a atenção e olhava para o reflexo dele em vez do meu. E as vezes ele fazendo o mesmo movimento com os olhos espiando meu rosto. Por ter começado antes, terminou primeiro, passou a toalha quando meu rosto ainda tinha espuma entre o maxilar e o pescoço.
- E ae, cara, como ficou?
Eu me virei para ele, seu rosto ja nao estava com muita barba antes, ele era mais novo, não podia esquecer, dois anos, mesmo sendo nós dois de um metro e setenta. O rosto que ja estava próximo do liso agora parecia capaz de deslizar a um contato da minha mão. Dei um passo a frente. Ainda havia fumaça no banheiro. Ele me olhava, não recuava, não se assustava, não perguntava, só me olhava. Toquei seu rosto, meus dedos por onde deveria estar a barba, liso, liso, liso, mas meus olhos nem procuravam por pelos, só encaravam os seus, e quando ele piscava eu podia ver em câmera lenta, seus cílios subindo e descendo, para me revelar aqueles pequenos olhos outra vez, ainda me olhando.
- William?
- Oi?
- Me perdoa se eu fizer uma coisa errada?
Ele podia dizer sim, eu esperava que dissesse sim. Mas ele não disse. Ele veio e fez ele mesmo a "coisa errada". Ele me beijou e quase quebrou o boxe quando me empurrou para trás com o seu beijo. Sorte que depois eu o empurrei para frente e passamos pela porta ainda aberta do banheiro e fomos parar na parede contrária do corredor, eu ainda o beijando. Mais forte. Eu mandava naquele beijo. Eu pressionava seu corpo contra a parede. E a "coisa errada" nunca pareceu tão certa.
Mas aí ele me afastou, nao o corpo todo, so meu rosto, nossos corpos ainda grudados, olhei para ele, a espuma do meu pescoço na sua bochecha, na ponta do seu nariz, como foi parar ali? E a gente arfava, mas nem tive tempo de respirar, ele so afastou o rosto por um segundo para girar os nossos corpos a 180 graus, fortinho o moleque, me pressionando contra a parede do mesmo jeito que eu estava fazendo com ele até agora e, um segundo antes de voltar agarrar minha boca com a sua, mais profundamente e ardentemente do que o beijara antes só pra demonstrar que era tão forte quanto eu, soltou só uma palavra, que de um jeito meio louco, traduzia tudo:
- Caralho!
Viu o que eu disse sobre palavrões na hora certa?
-
-
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Continua...
Cara, adorando os comentários de vocês! Assim que o próximo capitulo ficar pronto ja posto aqui.