Após aquele episódio no mínimo inusitado do restaurante o dia voltou a ser como deveria ser desde o princípio. Eu voltei pra cozinha, esperei minha mãe se despedir de todos os clientes, averiguar a louça, ajeitar todas as mesas e cadeiras e pegar o faturamento final do caixa junto com a proprietária. Isso tudo terminou lá pra cinco da tarde. Minha mãe levou pra casa super rápido porque ela já teria que voltar pra iniciar o turno da noite.
- Nesse depósito tem bastante comida. Suficiente pra você agora à noite. Não saia de casa, tranque as portas, recolha as plantas e não esqueça da ração do Fellow e do Muphin.
- Tá bom. Tem hora pra voltar?
- A de sempre... Lá pra meia noite. Não force a mão e nem tire a luva com a runa, hein?
- Tá ok.
Ela voltou pro restaurante e assim que abri a porta de casa os gatos vieram aos meus pés. Tanto por estarem me vendo como pelo cheiro da comida. Na cozinha eu alcancei com esforço o pote de ração encima do armário e coloquei no pratinho deles. A comida que trouxe do restaurante eu guardei na geladeira. Fui tomar um banho. Eu não sei bem o que eu parecia enquanto tomava banho com o braço esticado tentando evitar que a água batesse do cotovelo em diante. Aquelas 24h com problemas na mão me fez ficar imaginando como seria a vida de pessoas com deficiências. Rampas pela casa, suporte nas paredes... Como lavar louça com uma só não? E dirigir? Eu não conseguia nem mexer no celular direito!
Na sala os gatos já haviam comido e agora estavam na caminha deles. É um cesto feito de jornal enrolado artesanalmente lindo e pintado de laranja. Tem uma almofada no centro redonda. Como sempre, Fellow dormia enquanto Muphin fazia carinho e o limpava. Sentei no sofá e estiquei as pernas pra mesinha de centro cheia de pequenas estatuetas de deuses, anjos e bruxinhas que minha mãe tem. Liguei a nossa TV que só tinha uns cinco ou seis canais locais e passei por todos eles em dez segundos umas duas vezes. Todos os domingos eram assim.
Peguei meu notebook e conferi meus filmes. Eu não tinha nada que não já tivesse assistido e eu até tinha que pegar uns filmes com um amigo no pendrive mas eu sempre esquecia o pendrive em casa. Converti um filme qualquer e coloquei no pendrive. Conectei ao DVD e dei play. Não que eu fosse assistir de fato algo que estava passando alí mas o silêncio também me incomodava. O nome disso é tédio.
Aos poucos a noite chegou e eu fui no quintal fechar a porta dos fundos. Recolhi alguns jarros com plantas da minha mãe que estavam pegando sol e fiquei impressionado em como minha mãe conseguiu curar uma florzinha meio murcha que havia no jardim. Deu uma espécie de praga de bichinhos. Um monte de mosquitos detonaram a coitada. Minha mãe cuidou por alguns dias e agora ela parecia outra planta de tão linda. Coloquei essa planta no parapeito da janela do quarto da minha mãe e fiquei observando a cor indeciso se era vermelho ou vinho. Até que alguém bateu na porta.
- Já vai!
Terminei de fechar tudo. Grade e porta dos fundos. Depois fui pra sala. Pelo vidro da porta eu até conseguiria ver quem era mas como estava escuro e o pelo visto o poste da rua não estava ligado eu só definia que era um homem.
- Quem é?
- Foi aqui que pediram uma mochila pra entrega?
Eu passei a mão no cabelo e umedeci os lábios rapidamente na tentativa tola de parecer menos desleixado. Abri a porta.
- Rômulo!?
- Fala! Eu trouxe sua mochila. Aproveitei que ia sair de casa e coloquei ela no carro. Você tá ocupado?
- Eu? Ocupado? Não... Claro que não. - ri de uma maneira exagerada. Ora mais ocupado...
- Como sua mão tá?
- Da mesma forma que há 7 horas atrás. Tá bem. - isso soou rude, não? Espero que ele não tenha notado.
- Que bom... E você pode sair? Eu tava pensando de ir dar uma volta.
Umas pessoas estranhas passavam na rua. Aquilo não era bom.
- Acho que sim. Só preciso me trocar.
- Tudo bem. Eu espero.
- Entra...
Droga. Agora ele ia entrar na minha casa. Como eu ia explicar as coisas que ele ia ver? Eu disse "Entra" mas a intenção era "Vai pro carro que eu chego já" só que eu não podia dizer isso, né?
Passamos pela porta e o leve cheiro de incenso chegou. Só esperava que ele não notasse.
Eu fechei a porta e ele ficou estático olhando pras coisas.
- Gostei da decoração.
Óbvio que ele estava sendo educado. Mas foi uma frase de efeito melhor que o “Que casa eclética” que um amigo disse um dia.
- Você e sua mãe são budistas?
Eu não sei qual foi o Deus que mandou isso na cabeça dele mas de toda forma, obrigado!
- É... Isso. Budistas. - Olhei pro quadro de Ganesha na parede - Tipo isso.
- Legal. Eu tenho uma tia budista. Isso é bacana.
Os gatos imediatamente vieram aos meus pés e ficaram um de cada lado olhando Rômulo no meio da sala.
Ele os olhou e me devolveu um olhar confuso.
- São nossos. São Fellow e Muphin.
Ele prendeu o riso.
- São os nomes? Os nomes deles?
- São. - respondi cortando a graça. São nomes fofos gente, por favor! Fellow e Muphin, repitam e vocês vão ver!
- São muito bonitos. Os gatos. Nunca tinha visto um assim...
- É. Eu vou me trocar. Só um instante.
Eu fui pro quarto e escolhi a roupa mais nova que eu tinha. Ranquei a etiqueta da camiseta e vesti um jeans, calcei um tênis e saí pra sala em menos de 2 minutos. Passei um perfume que minha mãe fez com essência de frutas bem de leve, apenas pra tirar o cheiro de tecido novo. Era muito bom. Além disso eu morria de medo de atrair abelhas apesar da minha mãe dizer que isso não iria acontecer. Já sonhei com isso.
- Tô pronto.
Saí na sala e Rômulo estava sentado no sofá.
- Seus gatos são adestrados?
- A gente adestra gatos?
- É que eles se comportam como cães. Não param de me olhar. - ele falou com um sorriso nervoso.
Muphin e Fellow estavam imóveis na mesma posição que os deixei. Pareciam feitos de porcelana. Pés juntos e rabo ao lado do corpo olhando fixo para o Rômulo.
- Meninos? Vocês estão assustando ele... - eu fiz carinho e eles saíram pra cozinha.
Eles sempre fazem isso com visitas. Quem ensinou eu não sei. Nem minha mãe sabe. Eles só são super preocupados e analisam todo mundo que entra em casa. Minha mãe diz que animais veem nossa áurea, nossa energia com mais facilidade. Por isso as vezes um animal de rua gosta tanto de você do nada e outros por mais que você demonstre carinho não gostam. Talvez a sua energia esteja em desequilíbrio. Mas esse não é o papo que você tem com caras que você tá a fim.
Saímos de casa e ele estava usando um outro carro.
- Você trocou de carro? - eu falei impressionado.
- Não. É que aquele é do César. Ele me emprestou porque o meu tá na revisão desde semana passada esperando vaga. Esse aqui é do meu pai..,
Era uma Range Rover branca em um modelo bem grande.
- Ah...
Claro. Três carros, gente! Quem não tem três carros de luxo? Super comum em toda as famílias brasileiras, certo? Quantos carros eu tinha mesmo?
Entrei no carro que era uns dez metros acima do chão de tão alto. Eu não queria nem saber a velocidade que um carro daquele conseguiria fazer. Todo o interior era feito de couro claro com toques de madeira. Macio. Até o cheiro era bom. Era um carro de luxo, claro, mas era bem cuidado também. O banco me abraçava praticamente. O cinto não fazia pressão na minha barriga, que é o que mais me incomoda. Era suave. A chave era diferente, eu notei. Rômulo me olhou e sorriu ao ligar o carro.
Peguei o celular e liguei pra minha mãe avisando que estava saindo de casa mas não demoraria.
- Sua mãe só chega tarde?
- Bem tarde. Todos os dias.
- Eu adoro aquele restaurante, sabia? Mas foi a primeira vez que falei com sua mãe. Ela é muito simpática.
- É. Todos os clientes gostam dela.
- Ela é muito bonita também. Ela nunca mais casou?
- Não. Vez ou outra eu vejo ela trocando mensagens com algum cara mas nunca passam disso. Eu já até disse pra ela namorar alguém mas até agora nada.
- Meu pai também nunca mais namorou ninguém depois da morte da minha mãe. Se bem que o César é super contra...
- Por quê?
- Porque ele diz que pessoas como o papai atraem muita gente interesseira. Gente que só quer dinheiro, sabe?
- É... Eu já vi isso em novela das oito.
Ele riu.
- Eu também queria que ele namorasse alguém, saísse e tudo mais mas ele não faz isso. As férias do meu pai se resumem a basicamente viajar pra algum lugar do Brasil ou do mundo, visitar alguns parentes ou recebê-los em nossa casa e... Só.
- Quem dera se eu pudesse viajar nas férias... O máximo que faço é viajar pra casa da minha avó numa cidade vizinha.
- Eu já conheci vários lugares. Eu e César na verdade. Depois eu te mostro umas fotos. Já fiz inglês por 6 meses em Nova York. Lá eu viajei pra Los Angeles. Las Vegas. Seattle... Já fui pra Vancouver e quase morro de frio. - ele parou pra pensar em mais lugares - Já fui pra Inglaterra. Londres. Paris. Roma. Já fui pra Lisboa... Hum... Ah Já fui pro feirão de compras em Orlando e depois Miami que fica pertinho.
- Claro. Fica bem pertinho. Eu conheço. Dá pra ir a pé. - ironizei e ri.
- Desculpa. - ele riu. - É que eu começo a falar e perdo a conta... Desculpa.
- Tudo bem.
- Você não sonha em conhecer nenhum desses lugares?
- Todos eles talvez... Mas isso é uma coisa muito distante pra mim.
- Não é não. As pessoas se assustam muito quando se fala em viagem internacional.
- Porque é internacional.
- Pela distância. Não precisa ter medo. É só pensar que é logo alí. Basta...
- Ter dinheiro.
- Eu ia dizer querer ir. Basta querer ir.
- Então tô pronto, porque vontade não me falta.
Ele riu.
- Eu digo sobre trabalhar, ter um objetivo e então ir.
- Hum... Então ainda falta muito pra eu ir.
- Uma das coisas que meu pai mais se orgulha é do trabalho dele. Você não tem noção de como ele é apaixonado pelo o que faz.
- Isso é muito bom. Tem tanto médico mal encarado por aí.
- A medicina é uma profissão que deixa as pessoas meio amargas. As condições públicas de trabalho não são as melhores aqui. Além disso se você decide atuar particularmente se acostuma ao dinheiro rápido e acaba esquecendo do que realmente importa que são os pacientes.
- Dinheiro rápido?
- Sim. Muito rápido. As pessoas sempre precisam de médico então sempre tem paciente na clínica.
- Seu pai é médico de quê?
- Urologista.
- Legal.
- Pra onde você que ir?
- Eu? Sei lá! Você que me pegou. Pensei que já tinha um plano.
Ele riu. Clicou em algumas coisas na tela de comando touch do carro. Depois clicou em mais algumas coisas no celular. Aquele mesmo tom de chamada da noite do assalto começou. No começo alto demais. Ele se preocupou em abaixar.
- Hermano! - alguém disse do outro lado.
- Tá em casa?
- Não não. Tô na casa da Gabi. Acho que vou dormir aqui hoje. A gente alugou uns filmes que você não tem noção. A gente vai fazer igual!
Eu o olhei sem entender. Rômulo se adiantou.
- Ok. Eu só queria confirmar... Até amanhã!
- Não. Espera. Você não sabe da maior.
- O que foi?
- O papai não volta mais amanhã. Só depois!
- Ah. Que legal. Até amanhã.
- Espera! Que pressa é essa? Aconteceu algo?
- Não.
- Tá falando baixo por que? Não consigo te escutar direito. Tá com a gatinha no carro, não tá? - seguido de uma risada safada.
- Valeu César! Eu te ligo amanhã.
Ele desligou.
Eu ri meio sem graça.
- Ele é assim mesmo. Não liga não. - ele se explicou.
- Ele comentou algo sobre mim com você?
Rômulo me lançou um olhar assustado.
- Não. Por quê?
- Talvez tenha sido impressão minha... Deixa pra lá.
- O que foi?
- Notei uns olhares estranhos durante o almoço.
- O César é mais... Fechado que eu. Acho que posso dizer assim.
- Não tem muitos amigos?
- Tem. Tem sim. Só não é tão aberto a conhecer mais pessoas, sair com gente desconhecida, fazer novos amigos... Ele tem o círculo de amizades dele e pronto. Mas ele é um bom amigo. Daqueles pra qualquer coisa mesmo com todos que ele gosta.
- Vocês se dão bem.
- A gente discute vez ou outra... Mas sim. Nos damos muito bem. Nossa mãe faleceu quando eu tinha 7 anos e ele 5 anos. O papai sempre nos quis unidos. Brigas não eram toleradas de forma alguma.
- Isso é bom.
- Você não tem irmãos?
- Sim. Dois. Mais novos.
- Sério?
- Fellow e Muphin.
Nós rimos.
- Cadê minha mochila afinal? - eu perguntei.
- Tá em minha casa. A gente tá indo lá pegar.
Quando um cara te chama pra sair e te leva pra casa dele, sem o pai e o irmão, ele quer algo não? Pensar nisso me fez ficar nervoso. Muito nervoso.
Mais um pouco de rodovia e finalmente entramos na mesma rua de calçamento até o casarão com seu majestoso portão. Assim que nos aproximamos o portão começou a subir. Entramos no jardim e saímos do carro. Naquela noite tudo parecia diferente. Na noite do acidente... Digo, do assalto. Digo, do assalto e do acidente tudo eram borrões.
Agora eu via um gramado bem espaçoso com enfeites feitos de porcelana. O caminho até a porta com talas de madeiras estava lá, disso eu lembro bem. A garagem estava aberta apesar de não ter nenhum carro. Era enorme e ainda tinha uma moto vermelha lá dentro de algum modelo que eu não sabia, mas só de olhar já dava pra definir ser cara. A piscina era em formato de L azul e uma pequena cascata ligada. Ao fundo uma área pra churrasco toda com tijolos expostos, duas mesas e cadeiras de metal. Do lado direito da piscina cadeiras de sol brancas feitas de madeira. Era um sonho. Na lateral da casa pequenos refletores, não muito fortes, apostavam pra dentro da piscina fazendo a água ficar azul mas ao mesmo tempo bem cristalina.
Eu nunca tinha visto aquilo. Não tinha como não ficar impressionado com tanto charme numa casa só.
- Vem. Eu deixei a mochila no sofá da sala.
Entramos e mais uma surpresa. Todo aquele visual lá de fora não se perde dentro da casa já que toda a parede direita da sala era feita de vidro. Na noite em que estive lá estava coberta com uma cortina branca. Por conta dessa parede de vidro, era possível mesmo sem luzes acesas ter uma sala bem iluminada graças aos refletores da piscina. O reflexo das ondas deve no teto da sala e causava um efeito muito bonito. A TV ficava encima de um móvel pequeno. Era enorme, muitas polegadas, eu asseguro. E fina como uma folha de papel. Nunca tinha visto uma TV tão fina!
- Que bacana... - eu disse abismado com a transparência do vidro unindo a sala ao jardim.
- Ideia do meu pai. Eu acho um exagero. Me sinto sem privacidade.
- Sem privacidade? Mas o que tem do lado de fora também é seu!
- É mas... Não posso vir na cozinha no meio da noite sem roupa senão me sinto no meio do jardim sem roupa, entendeu?
Eu ri e fiquei imaginando a cena. Deve ser constrangedor...
Não. Não deve não. Eu passaria por esse "sofrimento".
- Tá aqui. - ele apontou pra mochila. - Eu tomei a liberdade de abrir pra pegar seu número caso ele tivesse anotado em algum lugar mas eu não encontrei... Daí eu fui na sua casa. Espero que não se importe.
- Tudo bem. Já fico feliz de ter me devolvido a mochila.
- O que? Mas é sua.
- É. Mas já esqueci coisas nas casas dos outros e não me devolveram então...
Ele riu.
- Letra bonita, aliás.
- Um ano de caligrafia.
- Deus me livre...
Ele avançou pra cozinha que ficava do lado da sala porém um pouco acima já que pra chegar lá se precisava subir 3 pequenos e largos degraus. Eu o segui.
- Você tem a letra feia, eu suponho. Vai até ser médico.
Ele riu e me olhou como se aquilo fosse uma afronta.
- Não senhor! Minha letra é muito bonita! Vou fazer a diferença nos médicos. - ele disse abrindo uma das portas do freezer que fazia a geladeira da minha casa, mesmo com 490 litros, parecer uma coisa de museu.
- A gente pode ficar aqui ou a gente pode sair. – ele quis saber.
Sair significava gastar dinheiro.
- A gente pode ficar aqui mesmo.
- Tem sorvete aqui e umas outros besteiras minhas. Coco?
- Pode ser.
Ele tirou um pote e colocou na mesa do centro. Pegou duas colheres e me entregou uma. Eu olhei estranho...
- Vai dizer que você prefere uma tacinha e tudo mais... Qual a graça de tomar sorvete se não for direto no pote? É que nem... Que nem comer brigadeiro sem ser na panela!
- Tudo bem então.
Encostamos no balcão de mármore onde estavam acoplados o forno, pia, fogão... Aquilo era um fogão, certo? Não tinha bocas tradicionais mas eu já vi aquilo no shopping.
- Cara, eu adoro sorvete de coco. - ele disse.
- É. Eu também.
Mentira. Eu adoro sorvete, ora essa! Quem não gosta de sorvete? Ficamos papeando sobre coisas aleatórias como por exemplo a decoração da minha casa...
- Minha mãe tem as crenças dela, sabe?
- Não são as suas também?
- Não sei se são. Eu até acredito em muita coisa do que ela fala... Só não gosto quando ela diz que pressente coisas, sonha com coisas, prevê o futuro...
- PREVÊ O FUTURO?
- Acho que sim... Mais ou menos.
- Tá de brincadeira!
- Não é assim tão certeiro e eu vou logo avisando que ela não brinca com isso...
- Deve ser demais.
- Não é. Minha mãe dorme e acorda falando que pressentiu algo e blá blá blá... Não é demais.
- Claro que é!
- Eu não gosto. Sempre peço pra quando ela souber algo sobre mim não me contar, só que essa semana...
- Ela viu?
- Teve um sonho. Disse que eu iria receber algo mas não viu o que era.
- A luva!
Eu ri.
- A luva?
- É. Meu pai te deu!
Fazia sentido...
- Faz sentido...
- Tá vendo! O que mais ela faz?
- Seu "faz" parece um super poder.
- Tipo isso...
- Não. Nada... Aquela coisa de incenso, velas e tudo mais são... É difícil de explicar.
- Fala! Isso é muito interessante!
- São representações dos elementais.
Eu o olhei e ele continuou me observando feito uma criança quando vê um peça de fantoches.
- Continua.
- São como representações de cada um dos elementos. Água, Ar, Terra e Fogo.
Ele terminou falando Terra e Fogo junto comigo.
- Pois é... Daí pra que o universo continue em equilíbrio, você viva em equilíbrio, as coisas deem certo, todo um ciclo precisa ser seguido. Daí você respeita a natureza, faz o bem, segue as estações, respeita o próximo... E por próximo é qualquer um. Animal, planta... O que for.
- Sabia que isso daria um filme? Mas vai, fala!
- Ela diz que todos nós temos um pedaço da divindade dentro de nós mesmo. Como se um pedaço de Deus estivesse conosco como um DNA dos seus pais, já que você é filho dele. Então quando você faz "coisas ruins" você se distancia desse DNA, você deixa isso morrer dentro de você... É aí que tudo se desequilibra em sua vida.
- Sua mãe é uma bruxa então? Com todo respeito.
- É. Os que seguem essa tradição são chamados assim. Por falar em equilíbrio, minha mãe sempre sabe de tudo, nunca se atrasa, chega no local certo na hora certa... Poucas coisas ruins acontecem com ela. Ela tenta me ensinar isso.
- Isso é muito... Bacana, que nem você fala.
Nós rimos.
- Sabe... Sábado que vem vai ter uns parentes meus aqui em casa. Uns primos. Eles vão passar o fim de semana aqui na capital e voltam pra cidade deles na segunda. Meu pai vai dar um almoço e tudo mais... Quer vir?
- Não sei... Não é meio coisa de família?
- Mas o César vai trazer amigos e eu também já convidei umas pessoas. É bom que eu te apresento pra alguns amigos meus, a gente pode sair todo mundo junto depois... Vai ser legal.
- Eu topo se você for me buscar.
- Claro! Tudo bem.
- Tá ok.
- Eu já volto... - ele disse e saiu.
Eu fiquei alí quieto observando a cozinha como se pudesse imaginá-lo durante o dia a dia em casa. Meu celular tocou.
- Oi mãe.
- Victor, você sabe que horas são? Onde você tá?
- Eu já vou... Tô na casa do Rômulo.
- Não demore. Sabe como são perigosas as ruas aqui nesse horário.
- Tudo bem.
Desliguei o telefone e quando olhei pra minha mão com a luva os meus dedos estavam pintados de preto. Como se... Como se um vírus mortal tivesse me infectado daí ele começa a tomar de conta do meu corpo lentamente e fazendo pedaços do meu corpo morrerem e daí eu viraria um personagem do The Walking Dead comendo o céreb...
- Ai meu Deus... AI meu Deus... – eu joguei a colher na pia.
Rômulo voltou.
- Onde fica o banheiro? - eu perguntei apressado.
- Só ir pro corredor aqui... O que houve? O que é isso? - ele perguntou assustado olhando pra minha mão.
- Não é nada... Só preciso limpar. - corri pro corredor. Ele veio atrás de mim.
Entrei e bati a porta do banheiro. O banheiro era tão lindo que quase tira a minha atenção da mão suja. Tirei a luva e a minha suspeita se confirmou. A tinta do papel com a runa diluiu com o suor da mão e sujou meus dedos. Meu Deus, minha mãe escreveu aquilo com o que? Graxa?
Lavei a mão e a tinta escorreu. O papel estava todo sujinho. Minha mão não tinha mais nada de roxo. Completamente normal, sem dor e apesar de ainda não conseguir movimentar os dedos rápido não parecia que iria demorar voltar ao normal.
- Victor? Tá tudo bem? – Rômulo bateu na porta.
- Tá sim... - abri a porta.
Rômulo olhou pra minha mão e riu.
- Nossa! Já? Sua mão tá novinha em folha! Como pode?
- É... A luva do seu pai... Ela é muito boa.
- Não foi a luva. O que você fez? Saiu todo o roxo! Não dói?
- Quase nada. - ignorei a primeira pergunta.
Repus a luva e saímos de volta pra sala.
- Então você vem no sábado que vem, certo?
- Venho sim.
- Me dá seu número.
Eu passei o número.
- Pela hora é melhor eu ir pra casa. Minha mãe já tá ligando.
- Vamo lá.
Assim que ele disse isso o barulho do portão elétrico ecoou lá fora.
Rômulo correu apressado pra parede de vidro.
- Vamo logo. - ele disse.
Eu peguei a mochila do sofá e Rômulo já estava na porta me esperando.
- Ei, você me empresta suas caixas de som? - César disse se aproximando. - Tá com quem aí?
Assim que ele me viu ficou mais sério.
- Boa noite. - eu disse.
- Boa... Boa noite. - César disse olhando pro Rômulo e de volta pra mim.
- Vamo Victor. Pode pegar as caixas, estão embaixo da mesa do meu quarto.
- Ok. - César passou por nós e sumiu no corredor.
Eu e Rômulo saímos pro jardim e fomos pro carro.
- Algum problema?
- Não. Nenhum.
- Ele pareceu que não gostou de me ver...
- Impressão sua... Nada disso. Ele só tá com um problema esses dias.
Rômulo me levou pra casa calado.
- Posso abrir a janela? É que o ar tá muito gelado. - eu pedi.
- Ah... Desculpa... Eu não notei. Pode sim.
Foi a única coisa que conversamos.
- Boa noite. - ela disse ao chegarmos em minha casa.
- Boa noite. - eu destravei o cinto.
- Eu te ligo e a gente combina o horário do sábado.
- Tá bom.
Eu saí do carro e ele foi embora. Que clima estranho que ficou...
Entrei em casa e minha mãe estava na sala vendo TV.
- Que horas hein...
- Obrigado pela tinta derreter em minha mão. Foi lindo. A senhora já assistiu The Walking Dead?
- Eu falei pra voltar cedo. Se tivesse em casa não teria acontecido isso. Se eu já assisti o que? Mas você saiu todo produzido assim pra ir na casa do Rômulo?
- A senhora já viu as roupas dele?
- Sim. Desde pequeno teve roupas boas. Também pudera né... Só que você não precisa se vestir como ele. Se ele quer ser seu amigo tem que saber que você não tem a mesma condição que ele. Ele tem que gostar de você, não das suas roupas.
- Hum... Mãe, a senhora escreveu aquilo com que pincel afinal? Foi um horror!
- Pincel? - ela riu - Aquilo era carvão. - ela riu mais alto.
Até eu comecei a rir. Minha mãe não existia.
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Oi oi gente!
Hoje o conto é mais longo pra compensar por amanhã já que não vou poder postar. Então adiantei. Espero que estejam gostando do desenrolar da história. Vamos a algumas explicações sobre alguns emails que recebi.
Pessoal, a personagem da mãe do Victor é totalmente criada por mim. Não há uma pessoa específica por trás, não conheço nenhuma bruxa, não sou bruxo, minha mãe não é bruxa. Ela é fruto de pesquisas apenas porque acho o tema interessante e decidi abordar aqui. Não espere feitiços detalhados e coisas mirabolantes sendo ensinadas porque esse não é o foco do site e nem do meu conto. Mas de toda forma é bom saber que o tema chamou atenção.
Segundo, não é de forma alguma a minha intenção falar de determinado culto ou religião em um site de contos eróticos como forma de denegrir ou ridicularizar. Longe de mim. Eu respeito toda e qualquer filosofia.
Terceiro, o personagem do Rômulo não é inspirado no Kaio. Não é! O Kaio é só do Igor e pronto. De ninguém mais nesse mundo pro infinito e além, amém! Assim como os outros personagens não são baseados em mim. Meus personagens nascem de amigos, de conversas, de experiências, de memórias, até de emails de leitores... Não há nada específico. Bernardo e Lucas de "Um estranho" existem de verdade e eu não acrescentei muita coisa neles. Já Victor e Rômulo são sim fictícios se levarmos em consideração pessoas específicas, mas eles tem elementos de várias pessoas do meu dia a dia como falei.
Relendo o conto como sempre faço eu percebi que talvez eu não tenha deixado claro a forma física de cada personagem então vou citar alguns nomes pra que eles criem formas dentro da cabeça de vocês assim como eles tem dentro da minha. O nome Victor vem de um cara gente fina do meu trabalho e fisicamente eu o imagino como o ator Troy Sivan, que só pra curiosidade de vocês, também era o modelo pro Iago do conto cancelado "Demais pra mim". Rômulo tem o nome de um cara da faculdade que eu já fui a fim mas fisicamente é baseado num cara amigo meu lindo de morrer que o Kaio morre de ciúmes todas as vezes que ele me dá boa noite, se fosse real seria como... Não sei. Vou procurar e indico aqui. César vem de um filme e fisicamente ele se parece com o ator Felipe Simas. É isso.
Monster: Já tem surpresa no próximo capítulo se não me engano...
eulucas: kkkk Tem que aguentar!
Jãozinho: O César? Como assim? Me explica.
Tozzi: Flui de maneira diferente quando a gente gosta. Quando eu compro livros e eles são muito bons eu leito o dia todo sem perceber. Do nada acaba.
Higor Gonçalves: Como sempre muito gentil nos comentários. Ótimo pra eu me exibir pro Kaio no meu horário de almoço que é quando eu mostro os comentários pra ele.
Drica Telles(VCMEDS): Ai tomara... Sinto falta dos 20 e tantos comentários de antes. Mas tudo bem. Eu já esperava pelo número menor por ser um por semana e não atingir muita gente porque o site é atualizado o tempo todo.
alvorada: Aqui no Piauí muitas das mulheres que hoje rondam os 40 anos antigamente eram domésticas. Há muitos anos atrás adolescentes já eram enviadas a casas de pessoas ricas para que fossem domésticas. Não era diarista. Era domésticas mesmo. Só que sem as leis trabalhistas de hoje tudo era muito pior. Graça a Deus tudo mudou. Mas a mãe do Victor pode muito bem ter sido apenas mais uma.
Ru/Ruanito: Empolgação!
Obrigado a todos.
Abraço.
Igor.
kazevedocdc@gmail.com