"Lembra e vê
Que o caminho é um só"
(Legião Urbana)
No longinquo verao de 1986, quando eu contava apenas nove anos de idade, nao se falava muito em gays na TV, nas revistas ou nos livros. O pouco que aparecia sobre nos na midia era relativo à uma doença terrivel que nao tinha cura e matava de modo longo e doloroso. Digo "nos" porque, com apenas nove anos, eu já começava a perceber que era "diferente", que era um menino que achava outros meninos bonitos e tinha vontade de beija-los.
Quase sempre, apos nossa autodescoberta, vivemos o choque da revelaçao em silencio. Aprendemos a nos compreender e nos aceitar sozinhos, com a cruel certeza de que as pessoas á nossa volta nao estarao abertas para nos receber como somos. Eu achava o Marlon Brando um tesao nas fotos das revistas velhas de minha mae, mas nunca poderia dizer isso a ela; tambem nao poderia contar que tinha vontade de beijar o Yuri da minha sala, nem que, aos treze, me masturbava pensando no filho do vizinho, um universitario louro de vinte anos. Ela nunca entenderia. A caminhada era àrdua e solitaria demais para um menino.
De certo modo so' fui sair do armario mesmo na universidade. Fazia arquitetura no Mackenzie, e em algumas festas, outro como eu, no nosso famoso "gaydar" nos identificamos. Meu primeiro beijo e sexo aconteceu tudo na mesma noite, com um cara de dezoito anos, experiente apesar da idade; tinha uma bunda fenomenal, cor de cafe-com-leite, e onde despejei o tesao de anos a fio, acumulado, aprendendo o ritmo depressa, porque esse era um tipo de sabedoria que vinha entranhada em todo homem, fosse ele o que fosse: nascemos para transar.
Ricardo era de classe baixa, filho de mae costureira e pai mecanico. Ganhou uma bolsa do Mackenzie e se esforçava nos estudos. Gostava dele: era inteligente, interessado nos assuntos do mundo, fogoso e tambem sensivel. Nao foi bem um namoro, mas passamos a ficar juntos desde entao. Atraves dele tomei contato com os outros gays da faculdade, e me apaixonei pela militancia que, àquela epoca, era como uma criança engatinhando aos tropeços no conservadorismo da sociedade brasileira de 1996.
O grupo se chamava Diversidade Paulista, encabeçado por um casal, Cleiton e Vagner. Hà dois anos eles tinham sido espancados no estacionamento da universidade por cinco caras, a instituiçao nao fez nada e os dois, revoltados, fundaram o grupo na tentativa de coibir novas agressoes e levar informaçao aos preconceituosos alienados. Jà era o seculo XX, a ditadura tinha acabado, nao morriamos mais de Aids, estavamos saindo de nossos armarios aos poucos, entao nao fazia sentido sermos hostilizados.
- O que aprendemos com os pioneiros de Stonewall?_ dizia Cleiton nas reunioes do grupo na casa que ele dividia com Vagner _ Que nao devemos abaixar a cabeça. Se abaixarmos, eles nos engolem.
Ricardo era assumido, mas eu so' me assumi no inverno de 1999, quando resolvi morar sozinho num ape minusculo em Moema. Meu pai foi claro: para ele eu tinha morrido; minhas irmas mais novas e minha mae aos poucos foram entendendo, acho que sempre desconfiaram de minha timidez, reserva e a falta obvia de namoradas.
- Nao era exatamente o que eu esperava, Paulo..._ dizia minha mae nas eventuais visitas a meu ape _ Mas agora eu apenas peço a Deus que voce nao sofra a maldade dos outros por ser assim, e que arranje um bom companheiro...
Esse companheiro nao seria o Ricardo. Nesse mesmo ano paramos de transar: foi aos poucos, sem crise, sem lagrimas, quando nos demos conta a amizade estava maior do que qualquer coisa, e ele estava bem interessado num novato do nosso grupo, um catarinense de olhos verdes, carinha de moleque. Passaram logo a namorar, enquanto eu me enrolei com um vizinho meu, o Saulo, um cara muito guardadinho no armàrio, caladao, insaciavel na cama. Fiquei com ele por muitos anos, suportando seu "closet" de aço, as namoradas de fachada, o teatro perante os pais ultracatolicos, sua culpa e dependencia sexual e sentimental. Seu armario inviolavel me sufocava por tabela, era como se eu lá estivesse com ele, pois namorar alguem nao assumido e' como voltar voce mesmo para seu proprio "closet" mofado, como tornar a usar uma roupa velha. Nao tolerei mais, em 2007 dei fim a tudo, deixando Saulo curtir suas familiares traças sozinho.
Nosso grupo cresceu. Contàvamos com vinte membros, quinze gays e cinco lesbicas. Depois de formados, transferimos as reunioes para uma sala do escritorio de Cleiton. Quase uma decada do novo seculo XXI tinha se passado e ainda nao possuiamos qualquer direito sob o sol do Brasil.
- Projetos a nosso favor adormecem nas gavetas do Congresso Nacional _ dizia Cleiton, inflamado, nos olhando _ As Paradas trazem visibilidade por um dia ou dois, mas depois tudo retorna ao ponto inicial. Nao somos vistos, nao somos ouvidos, nosso amor nao consta na Constituiçao Brasileira. Isso nao pode continuar.
Vagner achava que os gays nao se importavam com temas politicos na Parada, queriam apenas dançar e beijar na boca. Dizia que eram alienados.
- Jà fomos mais fortes ao longo da historia _ argumentava ele _ Formamos um batalhao invencivel em Tebas, eramos livres na Grecia antiga, comandamos o Imperio Romano pelas maos de Adriano, sobrevivemos ao nazismo, nos rebelamos em Stonewall e a Aids nao nos venceu... Ou nos fortalecemos outra vez, ou os conservadores nos silenciarao antes mesmo que pensemos em nos mexer.
Ele e Cleiton haviam entrado na justiça com um pedido de reconhecimento de uniao civil para os dois. Obvio que o juiz recorreu à Constituiçao e negou a demanda, apesar de o casal recorrer. Ainda estavamos em 2009, e o casamento so' viria em 2011; naquela epoca a sensaçao era a de patinar e nao sair do lugar.
Alem do casal e de Ricardo, minha maior afinidade ali no grupo era com Carlos, um tipo forte, gatinho, advogado num escritorio e ativista furioso, um gay ultraconservador, por mais maluco que isso pudesse ser. Misogino, gostava de discutir com as lesbicas do grupo aos gritos.
- Creio que deviam ter um grupo separado _ dizia _ O Diversidade trabalha com e para homens gays. Somos a linha de frente do movimento, os que mais apanham, o alvo preferencial dos fundamentalistas religiosos. Dizem sempre: "Com homem nao te deitaras...".
- Sabemos dessa merda toda _ replicava a Jessica, o desafiando _ Nos condenam igual, voce que nao quer enxergar. Quer separar o grupo, Carlos, enfraquecer o movimento ao nos colocar uns contra os outros. Nossos rivais se fortalecem na nossa fraqueza.
- Nao e' verdade! _ berrava ele _ Suas demandas sao diferentes das nossas, misturam a porra do feminismo em tudo e isso realmente nao nos interessa. Olhem para esses gays jovens de hoje: nao se importam com nada a nao ser a musica da diva pop ou o proximo pau. Odeiam politica, militancia, sem saber que isso tudo e' feito para eles, para sua cidadania. Essa alienaçao e' seria demais e nao pode continuar.
- As lesbicas sao muito mais conscientes _ Jessica o fitava com desprezo _ Nao pensamos em pau o dia todo.
- Chega, meninas! _ Cleiton cortava a discussao _ Ninguem vai sair do grupo. Esta decidido.
As reunioes sempre deixavam Carlos nos nervos, acabava indo embora furioso com todo mundo, mandando o grupo à puta que pariu. Eu seguia com ele para seu apartamento, nao para transar como alguns achavam, mas porque sendo ele meu amigo eu sentia necessidade de acalma-lo e fazer-lhe companhia.
- Poxa, fique aqui comigo esse final de semana, Paulo _ pediu ele, me entregando uma latinha de cerveja e ligando a TV; esparramou-se todo cansado no sofá _ Vou ficar sozinho aqui, aquele filho da puta do Renan vai viajar com a namorada...
- Nunca mais namoro com cara no armàrio _ falei, engolindo a cerveja gelada _ O que eu passei com o Saulo... Nunca mais!
- Eu sei, eu sei... _ ele suspirou, afrouxando a gravata; deu uma risada _ O carinha nao vale nada, mas meu amigo aqui embaixo curte ele pra caramba, ne'... Faze o que?
Rimos por um tempo, lembrando de nossos ex namorados. Depois o assunto ficou serio e Carlos disse que estava preocupado pois o irmaozinho de treze anos, o Gabriel, tinha contado para ele que era gay. Carlos tinha medo dos pais saberem e o acusarem de "influenciar" o garoto.
- Bem, a geraçao de agora se descobre cedo, amigo _ falei, refletindo _ Se eu me descobri aos nove anos, em 86, imagine os moleques de hoje... Porque nao aconselha o garoto a se assumir com quinze ou dezesseis? Assim passarà aos pais uma impressao de "certeza", sabe?
- Foi o que eu disse _ ele sorriu _ Quando ele for maior, quero coloca-lo para militar com a gente. Precisamos de mais homens là, aquelas lesbicas vadias nao tem que vir com essa onda de "machismo", nao. Nao somos um grupo de feministas, caramba.
Cortei o assunto antes que outro discurso nervoso se iniciasse. Mais calmo ele riu outra vez, contando que o irmaozinho revelara que batia punheta com o dedinho socado na bunda, olhando porno na internet. Gozava e lambia a propria porra.
- Que putinho safado, Paulo _ ele ria com vontade _ Passivo desde novinho.
Mais tarde busquei em casa uma mochila com algumas coisas para passar o final de semana lá com ele. Voltei, ele pediu uma pizza e ficamos entretidos com filmes ate tarde; cada um foi para seu quarto, e quando acordei no dia seguinte, às dez horas, ouvi um som de conversa na sala. Era o Carlos falando com mais alguem, e pelo "Biel", que ouvi no meio de uma frase, deduzi que se tratava do irmao dele, que eu ainda nao conhecia.
- Pode ficar entao! _ dizia Carlos, irritado _ Mas se encher o saco, te levo de volta!
Passei uma agua no rosto, urinei, ajeitei o cabelo e vesti uma camiseta, pois estava apenas de samba cançao. Chegando na cozinha observei Carlos batendo uma vitamina cor-de-rosa no liquidificador e, sentado á bancada, mexendo no celular com o fone de ouvido, aquele lolito de coxas grossas, cabelo escuro liso e boquinha vermelha. Ele me olhou, reparou na minha samba cançao amarela e sorriu consigo, as bochechas formando covinhas. Senti uma fisgada mais embaixo, e me odiei visceralmente por isso: "Seu tarado filho da puta".
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Ola! Como vao?
Vou tentar fazer poucos capitulos,,nao quero estender muito.
Opinem. Bj em todos!!
aline.lopez844@gmail.com