Por alguns segundos fiquei meio atrapalhado com a situaçao e o rumo estranho de meus pensamentos. Recuperei, entretanto, meu habitual equilibrio, ouvindo Carlos falando alto por cima do ruido do liquidificador em atividade.
- Bom dia, brother _ ele gritou, cortando duas bananas e jogando dentro da mistura rosa do liquidificador _ Biel, fala bom dia para o tio Paulo. Moleque mal educado...
"Tio?", pensei, um tanto incomodado. O fato de haver vinte anos de diferença entre o garoto e eu talvez permitisse aquele tratamento respeitoso, talvez...
- Bom dia, tio Paulo! _ disse o menino me olhando; voltou a atençao dele para o celular.
O cafe da manha foi servido e tomado em meio a uma certa discussao entre os dois irmaos. Carlos aceitou que Biel passasse aquele final de semana no ape, desde que nao nos atrapalhasse com molecagens; o garoto reclamava, dizia que nao era mais criança e que queria ver televisao ate tarde e folhear a coleçao da G Magazine do irmao.
- Nem pensar! _ Carlos foi categorico _ Sei que fica vendo foto de pau na internet, mas nao vai ver isso por minhas maos tao cedo. Voce esta na idade de brincar, jogar videogame e estudar. Pode ate paquerar os meninos por ai, mas sexo ainda nao.
- Se depender de voce eu morro virgem! _ replicava Biel, tomando a vitamina de canudinho.
Carlos era um irmao ciumento, mas evidentemente nao conseguiria segurar o fogo do caçula por muito tempo. So' de pensar naquilo, e ainda ouvir aquela conversa, eu era tomado por uma sensaçao estranha, uma excitaçao nervosa. Sentado perto do Biel eu notava seu cheiro de sabonete Johnson e cafe'; quando ele levantou do banquinho, notei que devia medir cerca de um metro e sessenta, bundudo e de coxas volumosas. Usava um shorts azul de moletom, um tanto curto, e camiseta do Ben 10.
Reparei durante a conversa que ele preferia estar entre pessoas mais velhas. Disse que odiava o papo heterossexual dos garotos do colegio dele, e ficar com os pais, em casa, tambem era chato: eles nao deixavam que ele ficasse ate tarde na internet.
- Biel, voce tome cuidado nessa merda de internet, estou falando... _ Carlos avisava _ Està cheio de velho tarado nesses chats por ai...
- Eu nao entro em chats, nao _ ele se defendia _ Fico jogando a noite inteira.
- E vendo porno tambem, que eu sei.
Na academia do condominio onde o Carlos morava, passamos duas horas, malhando antes do almoço. Mesmo nao sendo bombadinho como meu amigo, conseguia manter um corpo legal com dieta e exercicios. Ainda nao tinha cabelo branco, com trinta e tres anos nas costas, era alto, de cabelos castanhos e uma barba cerrada, junto de pelos bem aparados pelo corpo. Sendo modesto, eu curtia minha aparencia, para mim estava tudo bem por enquanto.
Biel ficou jogando no celular enquanto malhavamos e as vezes, sem querer, eu me pegava olhando para ele, que percebia e me encarava de volta. E' estranho o modo como algumas coisas na vida da gente se sucedem, parece um buraco negro nos sugando contra nossa vontade; alguem, em algum lugar, determina as situaçoes que vao nos envolver, nao perguntam nossa opiniao sobre isso nem se importam com nossa vontade, apenas nos afogam nos fatos.
Carlos queria fazer um macarrao à bolonhesa para o almoço, ou seja, fugiriamos da dieta por um dia. Sendo o prato preferido do Biel, ele quis prepara-lo para agradar o menino; nao havia mais carne moida no congelador, o cara saiu para comprar, enquanto Biel ligou o computador do irmao e me chamou para jogar com ele. Nisso eu era um desastre e ele ria, me vencendo facilmente. Depois começou a baixar para o celular algumas musicas, enquanto conversavamos.
- O Carlos e' um chato, nao me deixa fazer nada _ reclamava ele _ Semana passada ele surtou quando contei que tinha beijado um garoto lá da escola. O que ele pensa? Que vou casar virgem?
- Ele e' um pouco ciumento com voce, mas pensa bem, Biel: e' so' um jeito dele cuidar de voce _ falei, olhando muito para sua boca, procurando ser racional _ O mundo ainda e' hostil para os gays, e voce e' tao jovem... Nao e' justo que sofra agora.
- Sofrer como? _ ele suspirou _ Nossa, eu tenho tanta vontade de experimentar, sabe... de transar.
Como braseiro, meu rosto esquentou, e evitei olhar para ele. De fato, a nova geraçao tinha seu proprio ritmo, nao eram mais como os gays dos anos 80 ou 90. Estes eram muito mais rapidos, precoces mesmo; quisera Deus que fossem mais espertos, quisera Deus que encontrassem um mundo melhor quando tivessem a nossa idade. Para isso lutavamos.
- Hum, estava procurando essa aqui mesmo _ disse Biel, clicando no link da musica _ Escuta como e' bonita, Paulo.
Era "Last Night I Dreamt That Somebody Loved Me". Da minha epoca! Pelo visto o gosto do Biel era diferente mesmo, ele tinha baixado bastante velharias, coisas do tempo em que eu era criança e tinha um mundo inteiro para mudar e melhorar. Ouvimos em silencio aquela bela melodia depressiva:
"Na noite passada eu sonhei
Que alguem me amava
Nenhuma esperança, nenhum dano
Apenas outro alarme falso"
- Quando lançaram "The World Won't Listen", comprei o LP. Ainda o tenho, se um dia voce quiser ouvir ... _ disse, olhando para ele.
- Ah, Paulo... Claro que quero! _ ele abriu um sorriso _ Puxa, nao creio que gostamos das mesmas coisas. Esta vendo? Por isso gosto das pessoas mais velhas. Sao mais refinadas. Os garotos sao tao idiotas, e ate mesmo o Carlos que so' ouve musica eletronica, o babaca.
Ele continuou a baixar mais musicas. Tambem gostava de Mozart, o que me surpreendeu. Era inevitavel nao olhar para ele e admira-lo por isso e por outras coisas; ele parecia sentir meu olhar, as vezes corava, respirava fundo, ficava inquieto. Num certo momento chegou a cadeira mais para perto da minha, querendo me mostrar outra musica baixada no celular, e o cheiro seco e agreste de seus cabelos ondeou, penetrando-me inteiro como o fluido de um veneno, de uma condenaçao.
Nao sei ao certo como ocorreu, nem porque, mas fui tomado pelo toque quente da mao dele na minha. Algo singelo, porem intenso: ele apenas segurou meus dedos nos seus sobre a mesa, os fitando em silencio, respirando fundo.
- Achei voce muito bonito, Paulo _ falou, vermelhissimo, sem me olhar _ O tipo de homem que me atrai. Sabe, os garotos me irritam, acho que sao bobos, futeis, infantis... Sempre gostei de homens mais velhos, mas o Carlos nunca poderá saber disso...
Isso era tao comum. Na Grecia Antiga era regra, na atualidade era crime. Eu poderia ser preso se fizesse com ele o que meu corpo pedia. Nao poderiamos fazer, nao mesmo.
- Voce ainda tem muito o que viver, muito tempo para aprimorar seu gosto _ eu disse, afastando nossas maos, recobrando a razao _ Agora acho melhor voce terminar isso dai. Seu irmao esta para chegar.
Deixei-o no quarto e sai com a cabeça a mil. Pensava ate mesmo em pegar minhas coisas e ir embora mais cedo, contudo Carlos acharia estranho essa minha saida brusca. Logo ele chegou da rua com a carne moida, Coca Cola e um pote de sorvete de chocolate. Começou a preparar o almoço todo alegre, falando sem parar como era de seu costume, atiçado por seu tema favorito: o ativismo LGBT. Criticou as lesbicas outra vez, caçoou da demanda de dois travestis que queriam entrar para o grupo e se mostrou irado com um partido politico que intencionava trabalhar com o Diversidade.
- Se esses socialistas de merda entrarem para o grupo eu saio, Paulo. Saio como um foguete _ dizia ele, refogando a carne moida _ O Cleiton que os aceite! Ate hoje vivemos bem sem sigla de partido nenhum, fazendo o ativismo por nossas proprias maos, presentes nas discussoes de temas que nos afetam, mas sem babar ovo de politico... E agora esses putos querem entrar na nossa toca, colar sobre nos o rotulo de esquerdistas, capachos de partido? Nao mesmo! Bando de filhos da puta. Vao ser veados socialistas em Cuba pra verem o que acontece! Eu saio, estou falando, saio e levo a ajuda financeira do Rui e minha ajuda como advogado.
Se referia ao amigo dele, Rui, um empresario que auxiliava financeiramente nosso grupo, apesar de nao participar das reunioes. Era dono de uma rede de sorveterias na capital, mais um gay bem sucedido, porem o unico que se dispunha a investir com vontade na causa; o restante dos empresarios que faturavam milhoes com o publico gay agiam como se tivessem uma ratoeira nos bolsos. Se Carlos chantageasse Cleiton e Vagner por conta dos travestis e dos caras do partido, afastando depois Rui da causa, aquela generosa contribuiçao financeira iria fazer muita falta, e talvez vivessemos como antes, de vaquinhas para tudo.
Um dia estranho. Foi essa a impressao que tive por todas as horas daquele sabado, tentando ignorar as olhadelas rapidas e disfarçadas do Biel, enchendo os ouvidos com a verborragia ativista do Carlos, e segurando a vontade de ir embora. Bem que pensamos em ir à boate naquela noite, mas com o Biel ali nao deu. Mais tarde ele acabou dormindo no tapete da sala, assistindo "Madagascar", e Carlos o pegou no colo, levando-o para o quarto. Perto de uma da manha, deixei o Carlos assistindo o resto daquele filme longuissimo e lento, "Arvore da Vida", dei boa noite e me enfiei na cama, custando um pouco a dormir. Os sonhos vinham como fragmentos ligeiros, imagens em quadros intensos e sensaçoes desconexas, sempre com a impressao de que eu caia no escuro, mas nunca atingia o chao. Quando acordei, assustado, puxavam meu cobertor e me empurravam suavemente para o canto da parede. Era bizarro, surreal, uma maciez criminosamente quente, era Biel se deitando em minha cama, na penumbra, vestido apenas num calçao curto de algodao.
- Achei algumas do Chopin no celular _ sussurrou, tomando lugar a meu lado _ Voce gosta, Paulo?
Colocou o celular entre nos e um dos fones no meu ouvido. Paralisado, atonito, respirei com esforço fazendo que ia me levantar, mas ele segurou meu braço, me obrigando a ouvir as doces notas do Noturno. Biel puxou sobre nos o cobertor, cobrindo nossas cabeças e tornando a escuridao uma coisa vaporizada, pelas respiraçoes tao de perto que eram como se fosse uma unica. Comecei a tremer, de medo e expectativa.
- Saia daqui! _ susurrei.
No entanto ele se colou mais a mim, apertando o aparelho celular entre nos, fazendo o fone de ouvido sair de minha orelha, e num toque molhado, febril e escandalosamente macio, os làbios dele procuraram os meus e se juntaram, uma coisa breve, nao muito profunda. Ele tornou a colocar o fone de ouvido em mim, aconchegou-se em meu peito e ficou ouvindo a musica. Um suspiro profundo em meio à escuridao umida debaixo das cobertas, seu peso morno e silencioso, e afinal o sono, nos vencendo com suavidade.
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Thanks a todos!
Opinem à vontade. Bj!! :)