O celular do Biel deve ter passado a milimetros de distancia de minha cabeça, pois so' o ouvir passar zunindo, arremessado por Carlos, indo se espatifar na parede da cozinha atras de mim. Levantei da cadeira num desespero e Carlos já me segurou pelo colarinho da camiseta, louco, espumando de odio.
- Seu nojento, seu animal! O que voce fez com ele? _ berrou.
- Ele nao fez nada! _ Biel gritou, tentando segurar o irmao _ Solta ele, Carlos!
Carlos nem fez que tinha ouvido, me derrubou no chao e passou a socar minha cara sem piedade, e enquanto eu lutava e me defendia como podia, Biel chorava, tentando tirar o irmao de cima de mim. Já sentia gosto de sangue na boca, e numa tentativa desesperada de me defender, consegui reunir força suficiente e soca-lo com vontade na cara; ele enfraqueceu um pouco, entao o empurrei e consegui sair, usando a mesa como um tipo de obstaculo para ele. Agachado, ele me fitava com a furia de uma fera atingida no seu amago, no seu ponto mais sensivel, que no caso dele era a proteçao ao irmao mais novo.
- Verme imundo _ sentenciou, me olhando com um nojo infinito.
- Porque voce me julga sem saber o que aconteceu? _ exclamei, sentindo-me injustiçado _ Nao aconteceu absolutamente nada, Carlos!
- Fui eu quem fiquei atras dele! _ disse Biel, nervoso, tremendo _ Ele nunca respondeu minhas mensagens, nunca...
- Voce e' uma putinha, Biel. Desde novinho _ Carlos olhou-o com desprezo.
- Nao sou _ ele choramingou _ Eu amo o Paulo.
Carlos jà tinha se levantado, e ouvindo essa ultima frase, avançou com um tapa forte no rosto de Biel que se encolheu, chorando.
- Voce nem sabe o que e' amor, moleque! _ disse o mais velho, com irritaçao.
- Nao precisa bater nele _ falei, enfrentando-o _ Talvez tenha sido mesmo culpa minha, por nao ter comunicado isso a voce, por ter permitido que ele levasse isso adiante...
Por um momento que me pareceu longo demais, Carlos me fitou com uma frieza calculada, a expressao severa, os punhos cerrados. Esperei outra sessao de socos, outra chuva de xingamentos, porem ele pareceu se conter.
- Juro como nao sei ate que ponto isso tudo chegou entre voces. A minha vontade e' a de te levar à delegacia agora, trabalhar duro para que voce passasse pelo menos dez anos preso por, ao menos pensar por um segundo em tocar no meu irmao... Mas há o grupo, há essa calunia que pesa sobre nos, essa suspeita que os homofobicos lançam sobre a gente... Um caso desses seria uma bomba, seria a confirmaçao daquilo tudo que falam, que somos predadores de crianças...
- Mas nada aconteceu ..._ Biel choramingou.
- Se tivesse acontecido voces nunca iriam confessar! _ gritou Carlos, vermelho de odio _ Malditos, os dois. Ele e' uma criança, Paulo. Voce nao podia sequer pensar nele de outra maneira, era sua responsabilidade cortar com qualquer coisa, me falar se ele tentasse algo. Porque escondeu? Porque queria se divertir às escondidas? Seu filho da puta!
- Juro por Deus como nao fiz nada, Carlos, nem quis fazer _ disse, firme.
Ele sorriu, o sorriso infeliz de quem ouviu uma mentira cinica. De repente pareceu muito abatido, como que derrotado, decepcionado com tudo. Passou as maos pelos cabelos, sentando numa cadeira, com um suspiro.
- Se pudesse, lutaria dia e noite para te colocar na cadeia _ falou, me observando _ Mas nao posso, os outros nao podem pagar por um erro seu, Paulo. Portanto, quero que suma da nossa vida. Esqueça que o Biel existe, e que eu existo. Nunca mais apareça na nossas reunioes, e se possivel saia da cidade.
- Nao, Carlos..._ Biel olhou-o aflito e me fitou, recomeçando a chorar.
- Se chegar perto do meu irmao de novo, esqueço grupo, esqueço tudo e te coloco atras das grades! _ exclamou o outro _ Agora fora daqui! Suma da minha frente, seu porco! Maldito o dia em que te conheci.
Se hà alguma saida honrosa para uma situaçao extrema, essa talvez seja o silencio. Apanhei minhas coisas no quarto e passei pela sala, olhando-os uma ultima vez. Biel tentou vir ate mim, aflito, rubro de choro, mas Carlos o segurou com brutalidade.
- Eu te amo, Paulo! _ ele disse, tentando se soltar.
- Cala a boca! _ Carlos o sacudiu, irritado.
Talvez para mim tenha sido como uma sombra se deitando sobre minha vida, como a sombra de Mordor escurecendo tudo. Tive medo de ser preso, medo de que Carlos fizesse o Biel sofrer, medo de que as pessoas do grupo soubessem... Sentia-me sujo e culpado, ainda que nao tivesse feito nada realmente grave. Em uma semana providenciei algumas coisas, despedi-me de minha mae, irmas e amigos, e me preparei para deixar a cidade. Seria melhor assim.
Um dia antes de me mudar, Carlos me procurou. Soube pelo pessoal do grupo que eu estava para ir embora e quis ver com os proprios olhos. A desculpa que dei a todos era a de fazer um mestrado de arquitetura em outra cidade, pretexto esse que ele elogiou.
- Nao e' mentira _ declarei _ Pretendo mesmo fazer um mestrado na...
- Nao me fale _ ele cortou com irritaçao _ Nao quero saber para onde voce vai. Desejo que seja para o inferno. Estou muito satisfeito que voce vai sumir daqui, pois a vontade que tenho e' a de enfia-lo na cela do mais imundo presidio desse pais, seu pedofilo filho da puta.
Mesmo que argumentasse por horas com ele, seria inutil, nunca o convenceria. Suspirei, olhando para as caixas de papelao amontoadas com minhas coisas na sala, à espera de um novo ciclo na minha vida.
- Voce castigou o Biel?_ indaguei.
- Nao fale no nome do meu irmao _ ordenou Carlos, severo _ Mas se quer saber, o castiguei sim. Nao com porrada, embora tenha ficado com vontade, porem com proibiçao de tudo: celular, internet, passeios... Agora que ele esta là em casa, de ferias, sera do meu jeito. E nunca mais levo amigos para o ape enquanto o garoto là estiver.
- Nao me admira que voce coloque todos os gays no patamar de pedofilos _ disse com certo tom infeliz, olhando-o _ Voce sempre foi preconceituoso. Seria um excelente homofobico, caso fosse heterossexual. Agora que estou indo embora posso dizer: nunca conheci um militante tao misogino e transfobico feito voce, Carlos. Voce envergonha o Diversidade e o movimento gay em geral.
- Talvez eu seja isso tudo. E estou me lixando! _ ele me lançou um olhar brutal, se erguendo, pronto para sair _ Mas ainda nao cheguei ao ponto de abusar de crianças... Adeus, Paulo. Espero nunca mais olhar para essa sua cara novamente.
Se hà um ponto de minha vida onde vivi no modo automatico, num hiato de falta de alegria e motivaçao, esse foi certamente o periodo em que morei em Belo Horizonte. Trabalhava, estudava para o mestrado e saia para o cinema, sozinho, de vez em quando, ou para um museu ou exposiçao. Nao conseguia me adaptar à cidade, sentia falta dos amigos, da militancia, de toda minha vida na capital. Começava a perceber que Carlos nao tinha o direito de me pressionar a abandonar tudo por conta de coisas que nao fiz, pelos desejos precoces do Biel. Era injusto.
Contra minha vontade, pensava nele sempre. Imaginava-o crescido, namorando, curtindo a vida, sem se lembrar mais de mim. Claro que jà tinha me esquecido; foi facil para ele arrasar com a minha vida por um capricho, por tesao por um homem mais velho.
Em maio de 2011, liguei para Cleiton felicitando nosso grupo pela ocasiao historica da aprovaçao da uniao estavel para casais gays, no Supremo Tribunal Federal. O cara me atendeu euforico, o julgamento tinha acabado de terminar, e ao fundo da voz dele eu podia ouvir a algazarra da comemoraçao de nosso grupo tao querido. Fiquei emocionado por eles, por todos nos.
- Esta uma festa aqui, Paulo! _ ele gritava, alegrissimo _ Nem acredito que agora vou poder casar com o Vagner, com o meu mala sem alça... Que pena voce nao poder estar presente!
Sim, tanto que tinhamos batalhado juntos e eu nem podia estar là para comemorar com eles. Senti raiva de Carlos por isso, e nem me importei em perguntar por ele. Desliguei apos felicita-los outra vez.
Um tempo depois, já em 2013, quando o Conselho Nacional de Justiça estendeu o casamento civil homoafetivo para todos os estados da federaçao, com os mesmos direitos da uniao heterossexual, telefonei novamente e dessa vez Cleiton, agora casadissimo, contou que Carlos organizara um churrasco para o grupo naquele final de semana, numa chacara, para comemorarem à vontade. Nao perguntei nada, mas pelo visto era Carlos quem estava dando as cartas no Diversidade. Imaginei as lesbicas expulsas, as politicas do grupo voltadas apenas para os homens gays. "Tanta luta para que? Para mais segregaçoes?", indaguei a mim mesmo. "Carlos consegue ser mais nocivo para o movimento do que muitos homofobicos".
Me envolvia com poucos caras em BH. Os mineiros eram formidaveis, deliciosos, porem eu parecia viver um periodo sombrio e entorpecido de minha vida. Ainda me cuidava, era desejado nas saunas e boates, procurando os caras para sexo, nada mais. O Juan, meu unico amigo ali na cidade, dizia que eu parecia "preso" a alguem.
- Jamais. Acho que e' a sombra de Mordor, ainda _ eu respondia com um sorriso triste.
- Voce nao teve culpa._ ele afirmava; sabia jà de tudo e sempre me apoiou _ Essa coisa mal resolvida so' vai acabar quando voce voltar para lá, enfrentar aquela bicha ditadora do Carlos e jogar fora essa carapuça de pedofilo que ele vestiu em voce.
Eu pensava muito em voltar. Varias vezes me senti deprimido ali, levando aquela vida em ponto morto. O ano jà tinha virado, era 2015. Biel estaria com cerca de dezoito anos; pensei nele, em como ele estaria, se estava militando com Carlos no Diversidade... Ate quando eu me esconderia como um criminoso? Agora que ele estava maior, adulto, nao havia nada para temer, e a culpa que eu carregava já nao fazia sentido. Resolvi voltar para S.Paulo, que fosse o que Deus quisesse!
Como antes, arrumei tudo em uma semana. Minha mae alugou um ape para mim perto de Pinheiros e o mobiliou com coisas que pedi que ela comprasse em meu nome. Assim, em fevereiro, pouco depois do Carnaval, me despedi do Juan, tirando dele a promessa de uma visita, e parti de volta para S. Paulo. Senti uma alegria indizivel quando entrei na cidade cinza, no seu transito caotico, naquela permanente aura de trabalho e austeridade de minha cidade.
Como o lagarto que volta para sua toca familiar, me adaptei rapidamente. Arrumei minha nova casa ouvindo o "The World Won't Listen", baixado no celular, e era inevitavel nao me lembrar de Biel; ele sequer tivera tempo de ouvir o disco. Recordei de sua boca generosa, macia, com gostinho de chiclete de frutas, o peso quente e tenro dele sobre meu colo. Como ele estaria agora? Nao parava de me perguntar isso. "Minha unica fraqueza e' um crime numa lista", era o trecho da musica que tocava no celular.
Quinta-feira era dia de reuniao do Diversidade no escritorio do Cleiton, no Ipiranga. Acabei de sair de uma boa entrevista de emprego numa construtora e me dirigi para lá, ansioso. Queria muito reve-los, saber a quantas andavam as politicas que nos afetavam. No mundo todo estava mais ou menos assim: progressos e retrocessos. Gays europeus pareciam viver no que de melhor havia para eles no planeta, à excessao dos paises ex-URSS, onde o inferno homofobico se levantava com força. Havia muito a ser feito, muito, e o Brasil, ao contrario de Argentina e Uruguai, avançava a passos de jabuti.
A galera costumava se reunir depois das cinco, que era o horario em que os caras deixavam seus expedientes de trabalho. Jà na entrada, notei que ainda se reuniam ali mesmo, pois o cartaz com o simbolo do grupo (uma flor de lotus nas cores do arco-iris), estava fixado á porta. O subtitulo do cartaz tinha mudado, o que me preocupou. Antes, debaixo da flor, estava escrito: Diversidade Paulista- grupo de luta LGBT; no mesmo lugar, agora achava-se escrito: Diversidade Paulista- grupo de homens gays- A força do homem gay paulistano.
Bati à porta da sala de reunioes deles, ouvindo que lá dentro a discusao moderada cessou. Reconheci a voz de Carlos, impaciente, autoritària.
- Pode entrar! Esta aberta.
Abri a porta devagar, reunindo coragem para tudo. Na sala pequena, cerca de vinte homens ocupavam todas as cadeiras, alguns elaborando cartazes sobre uma escrivaninha. Me perguntei o que foi feito das lesbicas, mas fiz isso num flash de pensamento pois meu olhar passou de Carlos, chocado ao me ver, ao garoto malhadinho e de cabelos pretos que me olhava com um sorriso se formando, fazendo covinhas. Seus olhos brilharam de lagrimas, ele largou o panfleto que lia e se precipitou euforico para mim, me apertando nos braços fortinhos, beijando meu rosto sucessivamente.
- Paulo... Paulo... _ ele dizia entre risos e lagrimas.
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Valeu, povo! :)
Beijo em todos!!