Cleiton e Vagner fitavam-me chocados, sem acreditar, ao passo que Carlos ainda sorria de um jeito malefico. Biel avançou para ele, tentando soca-lo desajeitadamente.
- Mentiroso! Ele nao fez nada e voce sabe! _ gritou.
Eu podia sim, partir para a agressividade com ele. Seria um recurso extremo e que me deu muita vontade, movido por uma indignaçao fervente, porem os olhares perplexos de Vagner e Cleiton, de algum modo me imobilizaram: seria pior.
- Com essa mentira voce conseguiu, afinal, me afastar desse grupo, Carlos, e de qualquer outro _ falei, segurando o Biel que tremia, furioso _ Chega, Biel. Nao vale a pena.
- Nunca vou te perdoar por isso, Carlos! _ o garoto gritou _ Nunca!
- Que voces dois vao juntos para o inferno! _ exclamou ele, nos olhando com desprezo.
- Mas o que diabos significa isso tudo? _ disse Cleiton, irritado _ Como voce acusa o Paulo assim, Carlos?
- Acusou-o do que ele e'! _ berrou, irado _ Abusou do Biel quando ele tinha treze anos, por isso saiu daqui da cidade... Minha vontade era de levar o caso à policia, mas havia o grupo e voces nao poderiam sofrer pelas barbaridades dele... Ele nao pode continuar no grupo!
- E' mentira, Cleiton. Mentira! _ disse Biel entre lagrimas _ O Paulo nao fez nada. Fui eu quem o assediei, quem ficou atras dele... Eu era um moleque sem juizo, com os hormonios explodindo, ele me atraia tanto... Mas nao teve culpa nenhuma. Foi tudo culpa minha, e nada aconteceu, nada. Agora o Carlos fez isso pra se vingar, porque o Paulo e eu estamos juntos e ele o quer longe daqui.
- E vao acreditar nele? _ disse Carlos com nojo, apontando o Biel_ Logico que ele vai proteger o namoradinho!
- Voce nao presta, Carlos! _ falei numa revolta, saindo de lá e andando desconsolado pela rua afora; ouvi alguem correndo atras de mim, nao me voltei para ver, apenas senti o Biel se aproximar, passar o braço por minha cintura e apoiar a cabeça em meu ombro; antes do amor que sentiamos um pelo outro, o que nos unia no momento era a tristeza e o desespero.
- Isso nao pode ficar assim _ sussurrou _ E' injusto.
- O grupo acabou pra mim, Biel. A militancia toda. Nao poderei mais participar enquanto essa suspeita rondar sobre meu passado _ disse, olhando para ele; notava que algumas pessoas na rua se voltavam para nos ver juntos _ O Carlos envenenará a todos contra mim, lançando essa mentira.
- Se voce sair do Diversidade, eu tambem saio _ disse ele, enfatico _ Nao suporto mais o Carlos, seu tom de ditador, seu preconceito. Já chega.
Biel quis vir comigo para minha casa, onde servi-lhe um copinho com licor de menta. Ele tomou de um so' trago, olhou para a bandeira do arco-iris que decorava um lado da parede, ao lado do quadro com a foto da primeira Parada Gay de S.Paulo.
- E se fundarmos nosso proprio grupo? _ ele propos _ Para todos, Paulo. Poderiamos nos reunir aqui na sua sala, hà espaço suficiente. Agora, por exemplo, enquanto os caras se manifestam na Praça da Republica, na proxima vez poderia ser nosso grupo a se manifestar.
- E rivalizariamos com o grupo de Carlos? O movimento nao precisa dessa briga, Biel. Alem do mais, ele poderia lançar essa calunia contra mim sobre os novos membros do grupo...
- Nao, nao _ ele sorriu, triunfante _ As reunioes seriam aqui, mas o lider seria eu. E nunca o expulsaria, ainda que os demais membros quisessem.
- E voce dà conta, moleque? E' um trabalho duro, hein? _ dei uma risada; ele enfim conseguiu me descontrair; puxei-o para meu colo, beijando-o longamente.
- Nao duvide de mim _ ele mandou _ Vamos tentar, o que custa? Conheço tantos contatos aqui, voce vai ver. Teremos um grupo lindo, inclusivo, e Carlos nao vai nos impedir de militar.
Seria ele um diatadorzinho como o irmao? Fato era que nomeou o grupo como Liga da Igualdade, uma coisa meio desenho animado, mas que ficou bacana. Em uma semana ele arranjou doze membros: seis gays, quatro lesbicas, e dois travestis. Na primeira reuniao aqui em casa, na noite de quarta-feira, Biel definiu as politicas da Liga: militancia com amor e respeito á causa, sem agressividade, e sem exclusao. Se ate mesmo heterossexuais simpatizantes quisessem participar, seriam muito bem vindos. Teriamos presença nas Paradas, nas manifestaçoes pelas pautas que atingiam a toda a comunidade, e sem segregaçao. Ouvindo-o falar nessa noite, senti que ia dar certo.
Decorridos vinte dias desde minha saida do Diversidade, Cleiton e Vagner apareceram lá em casa trazendo a pequena Clara. Pensei que o casal nos censuraria por formamos um grupo mesmo com minha presença, porem nao, nos parabenizaram:
- Seu grupo parece mais inclusivo do que o nosso, Biel _ disse Vagner com certa tristeza _ Seu irmao já sabe sobre isso, e dei a ele a sugestao de nos juntarmos, de militarmos todos juntos, mas ele foi irredutivel.
- Nao tenho esperança que Carlos mude, que nos compreenda _ disse, Biel _ Ele mergulhou num delirio de poder, de odio, de extremismo. Viu o proximo alvo dele? Parece que agora nao quer afeminados no Diversidade. Ao menos soube disso pelo Ricardo, dia desses.
Cleiton suspirou.
- Saiu tudo do controle _ disse _ Nao era com essa segregaçao que sonhavamos. As vezes me arrependo de ter fundado o grupo. Nossa má fama corre pelas demais ONGs, e' terrivel. Eu penso... penso em sair de lá.
- Serà bem vindo aqui, Cleiton _ abri um sorriso _ E Vagner tambem, e' claro.
- Eu nao acreditei no Carlos _ disse ele com veemencia _ Conheço voce a tanto tempo, Paulo, sei que jamais seria capaz disso... Carlos e' belicoso, vingativo, nao levei fe' na palavra dele contra voce. Apesar de Biel e voce estarem juntos agora... Nao acreditamos, pode ficar tranquilo. Sabe, creio que Carlos cairà por si mesmo, o proprio grupo se voltarà contra ele, estao insatisfeitos hà tempos, ele humilha a todos, grita ordens, ofende... Logo, voce verá, ele estarà sozinho. Nao duvido se nao debandarem todos para esse grupo de voces.
- The queen is dead _ disse Biel e sorriu _ Por mim, ele que se afogue na propria ira, no proprio poder inutil. Sua saida e a do Vagner serà um duro golpe para ele, Cleiton. Se nem assim ele mudar, que sofra as consequencias.
Eles jantaram conosco e depois sairam quando Clara começou a ficar sonolenta. Biel, mais uma vez, quis dormir lá em casa, o que estava se tornando frequente. Os preparativos da Parada, que ocorreria dentro de meses, estavam começando, e isso o punha eletrico; ele tinha vocaçao para liderar, para conseguir os melhores contatos e produzir tudo do jeito que achava ser o melhor. Via formar diante de mim um ativista promissor, que nao abalaria a causa e o grupo por nada, nem pelas calunias asquerosas de seu irmao contra mim.
Depois de transarmos no sofà mesmo, já que aquele impaciente queria tudo na hora, fiquei observando-o andar pela sala de um lado para o outro, falando sem parar no evento, em como organizar tudo, em como dar destaque aos travestis do grupo e às lesbicas.
A silhueta daquele garoto de cueca branca, em contraste com o colorido da bandeira na parede, preocupado com o amanha, com nossa gente, me comovia de modo silencioso. Tao maravilhoso com seus cabelos escuros bagunçados, com sua juventude entusiasmada, com a vida toda para lutar por nos, sem fazer acepçao de ninguem. Atras dele, as lindas cores da bandeira do arco-iris pareciam brilhar, energizadas por uma luta que nao terminou.
- O que foi? _ ele sorriu, me olhando.
- Nada _ respondi, inflado de orgulho dele.
"Voce e' a esperança. Voce e' a minha esperança", pensei.
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Espero que tenham gostado. Obrigada a todos!!
Grande abraço e ate a proxima!! :)