Quando Aline me chamou de viado, admito, o sangue subiu à minha cabeça. Eu sou um cara pacífico, mas sou humano, um animal, e é natural dos animais que, quanto ameaçados, escolherem entre fugir ou atacar.
Não era do meu feitio fugir.
Aline esperou o meu tapa. E, com a bravura que possuía, esperou o tabefe com dignidade. Talvez até com um certo prazer, esperando que eu perdesse a razão, para que ela pudesse ter a razão dela.
Minha mão pesou, com o sangue fervilhando em minhas veias devido ao orgulho ferido. Fosse outro, ela provavelmente sairia marcada após aquela ofensa, seja física ou verbalmente.
Mas tampouco era do meu feitio atacar.
Jesus Cristo tinha cunhado o conceito, embora as palavras de Asimov tenham surtido mais efeito sobre mim do que as do filho de Deus. E Asimov disse: A violência é o último recurso do incompetente.
Ele e Jesus perceberam o que poucas pessoas compreendem. Sabe uma coisa que desconcerta, que quebra as pessoas? Essa coisa é o amor. E se eu iria iniciar ali uma luta contra o preconceito e a discriminação em relação à minha sexualidade, seria usando o amor como escudo e lança.
Dei um abraço na Aline.
Foi um ato de compreensão. Meio que dizendo que eu entendia a frustração dela, que já tinha namorado o Kaio sem sucesso, e que teria a mim para aumentar a sua lista de fracassos.
No início, Aline lutou contra o meu abraço, com raiva e começando a chorar. Depois ela foi amolecendo, pois fui falando baixinho no ouvido dela todas as qualidades que ela tinha. Quando ela já estava mais calma, levantei a cabeça dela e fiz questão de limpar as suas lágrimas.
– Você é uma garota forte, Aline! – falei em tom manso. – Essas lágrimas não combinam com você.
Ela então me abraçou e ficamos um tempão desse jeito. Foi então que ela me deu um beijo no rosto e foi embora sem dizer nada.
***
Voltei para casa com a sensação de dever cumprido e, melhor ainda, com orgulho de mim mesmo, da maneira como enfrentei a situação. Eu sabia do valor que eu tinha e isso ninguém poderia me tirar.
Não falei com Pierre. Era duro para mim não falar com ele. Minha mão coçava para conectar e contar tudo para Pierre. No entanto eu tinha traçado um plano para fazer com que ele se desinteressasse por mim, e isso envolvia uma etapa de desentoxicação. Como fazem com dependentes químicos, sabe?
– Daniel, telefone para você!
– Quem é, mãe?
– Algum amigo seu da igreja.
Ah vá!? Deveria ser o Gêgê. Com essa confusão toda na minha vida, acabei esquecendo de mandar as sugestões de atividades do acampamento. Mas tudo bem, ainda teríamos 15 dias até o acampamento, por isso peguei o telefone já dando a justificativa:
– Ow Gêgê, desculpa mano! Acabei esquecendo de te mandar as atividades, por causa das provas e tals, mas já já eu te mando…
– Haha. Você também não mandou?
Meu coração parou. Não era o Gêgê. Aquela voz era inconfundível.
– Kaio…
– Tranquilo, Dan?
– Que surpresa! Como você conseguiu o meu telefone?
– Na secretaria da igreja. Acabei descobrindo que ninguém consegue negar nada a alguém que tentou se matar recentemente.
– Hahaha. Você está bem?
– Pra te dizer a verdade, Dan, eu nunca estive tão bem em toda a minha vida.
Aquilo me encheu de alegria. Não só porque Kaio estava bem, mas principalmente por eu estar relacionado a isso. Dei aquele suspiro dos apaixonados – tenho certeza que Kaio ouviu – e falei:
– Que legal! Quero poder ver esse Kaio de bem com a vida…
– Então, eu decidi dar um tempo da igreja.
– Ahn. – falei, meio desanimado.
– Mas tipo… – E Kaio hesitou. – assim… não sei como está a sua programação… mas sei lá… de repente a gente poderia marcar de conversar, sei lá, ir no shopping…
E não pude deixar de sorrir. Eu queria saltar, dar pulos de alegria. Gritar para o mundo a felicidade que eu sentia num simples convite de ir ao shopping.
Como, nesse mundo cheio de coisas tão horríveis, poderia Deus condenar algo tão bonito? O amor entre duas pessoas. Uma coisa que não fere ninguém, e que na verdade cura as pessoas.
Se é mandatório para o exercício do cargo de Deus, cercear a felicidade das pessoas, então, como diria Pierre, eu não me curvaria a um ser assim. Só que Deus não é o problema, e foi encontrar Kaio na minha vida que abriu os meus olhos. O problema são os emissários da palavra d’Ele. São eles os opressores, os definidores de limite.
A capacidade do ser humano em foder tudo é ilimitada.
Demorei tanto para responder, tamanho foi a minha alegria, que Kaio se adiantou:
– Não, né?
– Claro que sim, seu idiota!
– Sério?
– Mano, eu desmarcaria quarquer coisa por isso.
E Kaio sorriu do outro lado. Mesmo sem fazer barulho algum, eu sabia que ele estava sorrindo.
Marcamos de nos encontrar no shopping no dia seguinte. Trocamos nossos contatos, para que pudéssemos nos falar pelo Messenger. Quando desliguei o telefonema, minha mãe peguntou quem era.
Respondi com gosto:
– Era um amigo meu da igreja, mãe!
***
“Pela janela
Vejo fumaça
Vejo pessoas…
Na rua os carros
No céu o sol e a chuva
O telefone tocou
Na mente fantasia…
Você me ligou
Naquela tarde vazia
E me valeu o dia…”
Foi “Tarde vazia” do Ira a música que passou a tocar em repeat no meu mp3 player. E sempre que cantava a parte:
“Podia ter muitas garotas
Mas você é diferente!”
Eu cantava junto como se não houvesse amanhã! Kkkkkkkkk.
O meu encontro com Kaio, claro, foi maravilhoso! Ele chegou com uma bandagem cobrindo os hematomas no pescoço e tinha uma cara ótima.
Nosso abraço, dessa vez, cumpriu a carga horária dos abraços comuns. Kaio estava radiante, falando pelos cotovelos. Deixou escapar que estava ansioso pra me encontrar, depois de tudo.
– E a Aline? – Ele se adiantou em perguntar. Segurava as próprias mãos como se estivesse apreensivo.
– Eu acabei com ela. – E Kaio relaxou os ombros, antes contraídos. Ele não sabia se fazia cara de felicidade ou de pesar, e a expressão esquisita misto dos dois sentimentos foi bem engraçada.
– Eu também acabei com a Dani!
– Todo mundo já sabe.
Kaio fez uma cara de “estou em encrenca” e eu não quis prolongar aquela conversa sem futuro.
– E aí, o que vamos fazer?
Por ideia de Kaio fomos a uma loja de CDs, e passamos um tempão conversando sobre música e descobrindo o que cada um gostava.
– Diz aí alguma banda ou artista que você gosta, mas tem vergonha de assumir! – Kaio brincou, quando fiquei rindo quando ele assumiu que curtia algumas músicas de Sandy e Júnior.
– Cara, eu só gosto de coisa boa! Não tenho vergonha de nada… hahaha.
– Vai, fala seu besta!
– Hahaha, JAMAIS! Você vai me zuar…
– Vou mesmo. Diz aí!
– Tem umas músicas do KLB que eu acho bacanas.
– Hahahahahah. Não, mano, KLB? Sandy e Júnior pelo menos têm qualidade musical!
– Dos outros, né? Eles só fazem versões… hahahaha.
– Isso é verdade! Hahaha. Não vamos discutir por bobagem… Ei! – Kaio pegou na minha mão quando teve a ideia.
Durante o encontro, sempre encontrávamos algum motivo para nos tocar, encostando um braço no outro ou batendo as nossas mãos. Em um momento, nós dois, de propósito, nos aproximamos para ver um CD e deixamos nossos braços colados, os dedos de nossas mãos brincando entre si. Com a visão periférica vi a cara de felicidade que ele fez, enquanto conversávamos trivialidades sobre o artista do álbum.
Kaio então falou, achando a ideia genial.
– Vamos numa loja de brinquedos?
E era genial. Eu adorava loja de brinquedos.
Parecíamos duas crianças, descobrindo as novidades do momento em matéria de jogos de tabuleiro, testando brinquedos eletrônicos e tentando adivinhar que garota preferia uma boneca Polly e seu cabeção, a uma Barbie.
O tempo voou.
Kaio era a melhor companhia que eu jamais tive. Ele era divertido e inteligente, gostava de me provocar e me olhava como se eu fosse de mentira. Os olhos dele brilhavam e ele estava mais vivo que nunca.
Eu também estava em outro estado de espírito. Era uma experiência divina, estar apaixonado. Era os clichês dos folhetins, aquilo de ver as cores mais vivas e mundo mais belo. Das borboletas na barriga. Só que era real, estava ali do meu lado, pulsando em perfeita sintonia.
Se você nunca esteve apaixonado, não saberá como é. Não há filmes que descrevam com precisão, nem músicas que emocionem com exatidão. Apenas os poetas conseguiram chegar perto de exprimir o que é estar apaixonado, e ainda assim, pela limitação da palavra e do papel, o fizeram de maneira grotesca, se postos em perspectiva ao verdadeiro sentimento.
Quando percebi que estar apaixonado é morrer e ressuscitar ao mesmo tempo, finalmente entendi o que significa a Paixão de Cristo. E por esse prisma, talvez Jesus não tenha se sacrificado por nós.
É mais provável que ele tenha se apaixonado por nós.
***
Enquanto terminávamos de beber o milkshake do Bob’s, Kaio falou baixinho:
– Dan, eu queria poder te abraçar.
– Mas você pode, ué!
– Não esse tipo de abraço. Daquele tipo que a gente deu no hospital.
Entendi. E fiquei de pau duro rapidamente. Disse que tinha uma ideia e bebi o milkshake na velocidade da luz. Kaio fez o mesmo, com uma cara de safado que eu nunca tinha visto antes.
Saímos numa excursão pelos banheiros do shopping, procurando um que fosse menos movimentado. Encontramos um perto de uma das saídas para o estacionamento e nos trancamos dentro de uma das cabines.
Estávamos nervosos tanto pelo ato em si, quanto por estar fazendo em um lugar público.
Começamos devagar, nos cheirando e nos acariciando com delicadeza. Kaio passava os dedos pelo meu cabelo e eu percorria a minha mão sobre os braços dele. Puxei o corpo dele contra o meu e dei um beijinho carinhoso nas bandagens que envolviam o seu pescoço. Kaio se arrepiou.
Me abraçou forte, respirando fundo, e nossas ereções se encontraram, separadas apenas pelo tecido das nossas calças jeans. Kaio tinha feito a barba, mas a textura áspera do rosto de homem dele foi suficiente para me deixar louco. Ficamos mexendo nossos quadris devagar, numa luta de espadas embainhadas.
Puxei a cabeça de Kaio e nos olhamos a uma distância que nunca antes ousamos chegar de outro homem. E não havia Deus no céu ou na terra que impedisse o inevitável de acontecer.
Nossos lábios se tocaram, abertos, para que as línguas pudessem se encontrar. Nossas bocas ainda estavam geladas do milkshake e foi querendo afastar o frio, que nossas línguas se abraçaram e rolaram juntas, com gosto de ovomaltine.
Enfiei minha mão por baixo da camiseta dele e senti ali, ao alcance do meu tato, aqueles músculos que me deixavam louco só de ver.
Kaio intensificou a força dos beijos e cravou uma das mãos na minha bunda, enfiando-a por dentro da minha calça. Minha mão subiu e chegou ao peitoral dele, onde brinquei com o mamilo. Nossas bocas coladas, não queriam separar.
Começamos a gemer. Baixinho, inicialmente, mas foi só Kaio encontrar o meu cu cabeludo com o dedo indicador, para os nossos gemidos aumentarem.
A porta do banheiro se abriu e, no susto, paramos a pegação. Quando a pessoa saiu, rimos baixinho e voltamos a nos beijar, só que de maneira mais comportada.
Perdi a noção de quanto tempo ficamos ali naquela cabine, e devo dizer, foi pouco.
Nos despedimos com um abraço apertado, dois sorrisos no rosto e a certeza de que quanto nos encontrássemos novamente, não haveria quem nos segurasse.
--- CONTINUA PARA O FINAL ---