A cada final de periodo na universidade, Elias tinha um mes de folga dos estudos. Aproveitava entao para ir ver sua familia em S.Paulo, de maneira que eu ficava semanas sozinho em casa.
- Volto trazendo aqueles doces que voce gosta, Branquinho _ disse ele apos me beijar outra vez, antes de sair; estava tao bonito de terno seminovo, cabelo penteado, tinha ate tomado banho _ Juizo, moleque!
- Boa viagem! _ falei, vendo-o sair devagar; se pudesse teria acompanhado-o ate a estaçao, porem ás sete eu tinha que estar no meu trabalho, nao gostava de me atrasar.
Geralmente eu odiava esse periodo que o Elias passava longe de mim. Nao saia de casa, exceto para o trabalho, e tambem nao ia ao porto desenhar a paisagem; gastava meu tempo dormindo ou lendo os livros velhos dele. Agora, porem, fui para o porto assim que sai do trabalho, tinha ate levado o caderno de desenhos á tiracolo para nao perder tempo. Talvez fosse errado, mas o olhar que Miguel me lançou dias atras parecia ter me queimado por dentro, eu nao conseguia esquecer, e precisava sentir aquilo de novo.
A confusao laboriosa de sempre dos estivadores, gritos de ordem, palavroes, caretas de esforço sob o peso das sacarias. Os estivadores davam o sangue, suavam naquela tarefa ardua; procurei Miguel entre eles e nao o vi, devia estar là para dentro da embarcaçao. Fui para o pier, no lugar em que Elias e eu ficavamos, e por um momento me distrai com o desenho.
Talvez fosse facil demais descansar olhando o oceano, esquecido do desenho, enquanto a tarde caia cor de ferrugem, da cor dos cabelos dos ruivos. Tinha um garoto ruivo tao bonito na lojinha da Dona Ana... Era mais novo do que eu, e nem me olhava na cara, mas ainda assim, se ele quisesse...
- Ooooohhh Miguel! _ ouvi alguem gritando em voz forte.
Là estava ele, indo e vindo com sacos nas costas, exibindo toda sua força fisica opulenta. Larguei o caderno de desenhos na madeira suja do pier, e passei a olhar o estivador diretamente, mergulhando meus olhos vagarosos por cada movimento seu, imaginando como seria o cheiro de sua camisa molhada de suor, como seria se aqueles braços retesados pelo esforço, brilhantes de transpiraçao, como seria se me puxassem para eles... O sal da brisa marinha atingiu meu rosto, um bafejo morno e lento que mexeu nos cachos dos meus cabelos que saiam para fora da boina velha, coberta de fiapos.
Por conta de toda a concentraçao que seu trabalho exigia, Miguel demorou a me notar ali a observa-lo. Fez isso quando a tarefa já findava e a tarde caia. Ao me perceber parou, acendendo um cigarro, e enquanto eu sustentava o olhar, nervoso, as maos suando, ele olhou por um instante para o mar, para os outros colegas que conversavam em voz alta a um canto, e afinal para mim, avançando ate onde eu estava. Paralisei e em seguida retomei meu caderno fingindo desenhar, numa atrapalhaçao infantil que ele deve ter percebido, pois se aproximou com um sorriso.
- Bonitos desenhos! _ disse.
- Obrigado _ respondi, vendo-o tomar lugar ao meu lado, e isso me permitiu observa-lo melhor, de perto: um belo tipo! De cabelos e olhos escuros, muito bronzeado, barba desleixada, por fazer, abundantes pelos negros nos braços fortes e no peito que a camisa mal abotoada deixava ver; cheirava à cigarro barato, suor forte e fuligem de navio. Embaixo, seu entrepernas generoso se sobressaia na calça de linho cinza, muito gasta, uma imagem que fez minha boca salivar de desejo.
Entre gritos de gaivotas, gargalhadas dos outros estivadores que conversavam entre si, o barulho intenso tipico do porto, tendo à frente o mar sangrado exalando seu odor salobro, Miguel e eu passamos uma meia hora conversando trivialidades sobre o local que nos rodeava. Ele dizia que sempre tinha me visto ali, acompanhado do Elias, que ele chamou de "menino manco", e que tinha curiosidade de saber o que tanto escreviamos naqueles cadernos, sem saber que eram desenhos. Contou que morava no quartinho dos fundos da casa de uma "amiga", e imaginei se nao era alguma mulher da vida como tantas que infestavam os arredores do porto á caça do dinheiro dos estivadores e marinheiros. Ele era natural de Sao Manuel, aqui mesmo em S.Paulo, uma cidade da qual nunca tinha ouvido falar; servira na Marinha por tres anos, saiu e veio para aquele emprego ordinario no porto. Disse que era solteiro e que tinha vinte e oito anos.
- Tenho dezenove _ falei.
- Aparenta ter menos _ disse ele me olhando atentamente _ Aparenta ter uns dezesseis.
Dei de ombros. Sempre fui franzino, talvez por isso o Elias as vezes criava coragem para tentar me bater, era facil, eu nao pesava mais se sessenta quilos, enfim... Olhei a tarde caindo depressa, o sol escarlate engolfado em nunvens cor de chumbo. Um dos estivadores, o mulato do outro dia, chamou Miguel para ir embora e ele se levantou.
- Tchau, Afonsinho! _ disse ele despachado, e gostei do modo como me chamou _ Ate amanha!
Amanha... E se eu nao viesse? Mas e' claro que eu viria, nao havia a menor duvida! Nao vim apenas no dia seguinte, mas tambem no outro, e no outro... Virou uma especie de rotina aproveitar meus finais de tarde ali no pier, ao lado dele, com o caderno de desenhos esquecido entre nos. Ele dizia que eu tinha talento, que podia pintar um quadro e ser famoso algum dia, que teria muito dinheiro e mulheres. Fiz uma careta de nojo ouvindo isso, e ele nao percebeu. As vezes eu gostava de me imaginar deitado com a cabeça no colo dele, olhado o mar se incendiando de sol poente e ouvindo a algazarra das gaivotas e o ruido tipico do porto; ele acariciaria meus cabelos, diria que eram bonitos, cor de ouro, diria que me amava, que queria fazer amor comigo a noite toda... Ah, Miguel...
- Porque voce nao vem comigo à casa de minha amiga, hoje? _ convidou ele pela segunda vez em tres dias.
"Porque voce nao enfia esse pau em mim hoje á noite? ", pensei olhando para a braguilha dele. Dei um suspiro. Pensar em prostitutas me enojava, e pensar nele com alguma delas me enfurecia. Quem seria essa puta? Que fosse horrorosa, piolhenta, tuberculosa como uma Margarida Gautier de quinta categoria! Recusei o convite outra vez, alegando cansaço do trabalho, e ele lamentou mas nao insistiu.
No outro dia trocamos esse momento de conversa por um passeio pela praia. Escurecia, o tempo estava nublado, ventava numa atmosfera abafada. Tirei meus sapatos remendados e enfiei os pes na agua espumosa com prazer. Miguel me olhava e sorria. De subito, numa gargalhada, me pegou nos braços, suspendendo-me muito facilmente, como uma criança, ameaçando me jogar dentro d' agua. Gritei entre risadas, desesperado, sentindo sua força ao me segurar, seu cheiro denso de homem, de trabalhador suado. Para evitar mais ainda que ele me jogasse no mar, prendi seu tronco com as pernas, e nisso ele me ergueu mais para si, num tranco, de modo que nosso rosto ficou na mesma altura e eu o fitei sem folego, serio, vendo seus olhos negros inquietos, confusos, a boca entreaberta. Ele me segurava pelas coxas quase como se me abrisse, fazendo com que uma parte muito intima de mim esquentasse, dilatasse e se contraisse de vontade. Entao ele sorriu, me soltou devagar e bati com os pes na agua morna, acordando daquele rapido devaneio estranho.
De tanto insistir, enfim consenti em conhecer a tal "amiga" dele, com odio dessa mulher antes mesmo de ve-la. Andamos em silencio pela rua, e era impressao minha ou ele parecia preocupado com alguma coisa? As vezes suspirava, tenso, e eu tentava entender porque. Ao lado dele na rua porca e estreita, na tagarelice dos passantes pauperrimos, lembrei que tinha ouvido Chopin o dia todo no almoxarifado; o Seu Bento gostava muito do compositor, colocava o long play na vitrola e aquela era nossa trilha sonora enquanto trabalhavamos. Incorporei minha atraçao por Miguel áquelas musicas perfeitas, era dificil nao ouvi-las e nao pensar nele que me parecia estar em cada nota, em cada lamento do piano. "Estou louco por esse homem, meu Deus", pensei comigo um tanto aflito.
A casinhola decadente, quase no final da rua, possuia a calçada partida, vasos de samambaia vistosos e uma vassoura de piaçava ao canto da varandinha limpa. Miguel entrou sem-cerimonia, me chamando, e na saleta iluminada pela lampada amarela empoeirada, a moça de longa saia vermelha, blusa de linho branco e compridos cabelos castanhos, me fitou atentamente com os olhos brilhando. Era muito jovem, creio que com cerca de dezoito anos, muito magra e bem bonita. Levantou-se da cadeira atras da mesa, me olhando mais de perto, com obstinaçao, quase me dando medo.
- E' o Afonsinho, Laura _ disse Miguel _ O menino que te falei...
Falou? Falou o que?, me perguntei. Laura me observava como se soubesse, como se soubesse de tudo, ate de coisas que eu nem me lembrava mais, feito lesse minha vida inteira em meia duzia de palavras numa folha de papel.
- Há anos que espero por voce _ disse ela com um sorriso suave.
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Valeu!!
Abraços em todos :)