Do mesmo modo que ele fugiu de minha casa duas vezes, fugiu tambem no porto no dia seguinte, quando o procurei. Assim que me viu, Miguel ficou desconcertado, perdeu completamente o autodominio e ficou bastante nervoso; ao final de seu expediente, o abordei junto dos outros que me olharam curiosos.
- Preciso falar com voce _ disse a ele.
- Nao _ ele me olhou aflito, se afastando _ Tenho que ir embora.
- Espere, Miguel! _ fui atras dele, correndo; consegui alcança-lo e tocar em seu braço, no que fui brutalmente repelido.
- Me deixe em paz! _ disse ele entredentes, num olhar feroz, apressando o passo pela rua.
Meu orgulho protestava ante aquele tratamento rustico, porem a atraçao poderosa que me impelia para aquele homem cegava minha razao, dominava minha consciencia. Assim, na outra noite, o procurei na casa de Laura.
Quando cheguei a prostituta estava para sair, exuberante num vestido longo cor de vinho, uma flor de seda vermelha nos cabelos soltos; parecia preparada para um festival cigano, mas ia, na verdade, trabalhar no bordel de Dona Marlene. Radiante, ela me abraçou logo que entrei, impregnando meu casaco com perfume barato e insuportavel.
- Preciso falar com Miguel _ disse constrangido, recusando o licor que ela ofereceu.
- Falar com ele e' o que tenho feito nesses dias todos, coraçao _ afirmou ela, sentando ao meu lado num frufru de seda volumosa _ Esse grandalhao e' cabeça dura, voce sabe, ele te ama mas nao quer aceitar isso, nao quer se render. Certas ideias confusas teimam em dominar a mente dele, prendendo-o nessa teia de ilusao e autocritica.
- Ele... contou a voce? _ indaguei, corando de vergonha.
- Um pouquinho _ ela riu, fazendo um sinal com os dedos _ Eu o conheço bem, entao nao tive que arrancar muita coisa. Ele se sente como um animalzinho domesticado que de repente entrou numa nova e maravilhosa, ou seja, nao sabe o que fazer. Sente-se ao mesmo tempo encantado e assustado, e voce representa essa confusao, que ele quer evitar. Tenha isso em mente quando for falar com ele, esta bem? Olha, preciso ir, o quarto dele e' lá nos fundos, ele chegou há pouco. Eu tenho que sair, meu anjo, tenho uma longa noite pela frente.
E me beijou no rosto antes de sair, dando um sorriso. Segui depois o corredor sombrio da casa, que me levava ao comodo onde Miguel estava. Parado diante da porta de madeira esfolada, ouvia lá dentro o radio ligado, parecia tocar Noel Rosa; bati, e quase um minuto depois ele abriu, sem camisa, usando apenas uma calça preta, descalço. Pareceu muito contrariado em me ver ali.
- O que voce quer? _ indagou bruscamente.
Forcei passagem, observando seu pequeno comodo, a cama revirada, um cabide de madeira lixada com pregos repleto de roupas usadas, a mà iluminaçao feita por uma lampada empoeirada. O ar abafado cheirava a suor, mofo e fumaça de cigarro.
- Preciso saber porque voce saiu daquele jeito de minha casa _ falei, olhando para seu peito, e depois para seu rosto.
Ele passou as maos pelos cabelos num gesto agoniado, andando pelo quarto.
- Isso nao esta certo _ disse _ Nao sei o que esta acontecendo comigo, porque me sinto assim e acho... acho que nao deveriamos ter feito aquilo.
Busquei seus olhos mas ele os desviava, aflito. Atormentado com a chiadeira do radio ligado, ele o desligou num gesto impaciente, e o silencio dominou o pequeno comodo.
- Voce se arrependeu? _ sussurrei _ Aquilo foi lindo, Miguel...
- Foi asqueroso! _ exclamou, me fitando.
Meus olhos umedeceram e os desviei, nao querendo que ele notasse. Por um momento senti raiva dele e de mim por ter cedido. Ele era complicado demais, pior do que Elias; valia bem a pena eu me esforçar tanto, valia a pena aquela entrega, aquele amor?
- Entao voce tem nojo de mim _ sussurrei num tom amargo _ Muito bem...
- Nao, nao..._ ele pareceu ainda mais confuso, e me olhou com remorso, chegando perto; me fez sentar junto dele na cama _ Eu nao quis dizer isso, Afonsinho... Estou... meu Deus! Sinto que estou ficando louco, estou perdendo o dominio sobre tudo, me sinto asfixiado por um sentimento que nao consigo entender... quando estou perto de voce, quando voce me olha assim... Me explica isso, por favor...
- Voce sabe o que e' isso, Miguel _ sussurrei bem proximo ao rosto dele, observando-o ficar ofegante enquanto me olhava se aproximar; toquei seu pescoço com os lábios, seu ombro nu, seu queixo de barba àspera...
- Estou louco por voce _ disse ele baixinho com certo sorriso derrotado, infeliz _ Sou um depravado,Nao, Miguel, nao... _interrompi, beijando sua boca com sofreguidao, deixando que ele se entregasse, me deitasse sobre a cama revirada e fosse afastando minhas roupas como o embrulho incomodo dum presente ansiado. Nossas peles nuas se tocando pareciam ferver, eu passei por cima dele, abraçando-o numa agonia de desejo e deitando-o de costas; abri num frenesi a braguilha de sua calça, descendo-a ate o meio das coxas e afinal engolindo aquele pau quente que latejava. Miguel urrou baixo, agarrando meus cabelos; seu penis cheirava á sabao, um odor limpo e fresco, muito diferente do corpo de Elias que frequentemente deixava-se feder por falta de banho, criando crostas brancas e azedas no orgao sexual.
Apos explorar seu peito arfante e rijo com minha lingua convulsa, tomei a iniciativa e me deixei escorregar no colo dele, controlando assim a penetraçao, observando-o me olhar com um semblante serio, mordendo os lábios, quase recostado à cabeceira. Segurei no pilar desta cabeceira, esbarrando minha mao num conjunto de terços e medalhas pendurados ali; entao notei acima de nossas cabeças o pequeno quadro, uma representaçao desbotada de um Sao Sebastiao musculoso, na agonia quase sensual de sua morte, trespassado de flechas. Miguel me puxou para si, devorando minha boca, e depois de me deixar comandar o ato, quis fazer sua parte e sem me tirar de seu colo, me deitou no outro lado da cama, erguendo minhas pernas e colocando um ritmo feroz aos movimentos, fazendo o estrado da cama estalar e os terços baterem suas contas de miçangas no pilar de ferro pintado. Sorri, banhado em suor, olhando para o teto de forro escuro enquanto o estivador me empurrava: a lampada suja descia entre teias de aranha, ladeada pelo fio retorcido do interruptor de louça. No canto à esquerda, uma grande nodoa negra de goteira se sobressaia no madeiramento do forro.
- Ai, meu Deus... _ gemi num desespero de prazer, agarrando os cabelos dele, umidos de suor _ Mais, Miguel... mais...
De repente mais ligeiro, notei Miguel perto do climax, e pedi num sussurro que ele despejasse o semem na minha boca, coisa que ele fez, deliciado e surpreso ao me ver beber tudo, aproveitando para enfiar a metade do pau por meus lábios, me servindo seu gosto salgado, pegajoso. Caiu ao meu lado, em silencio, olhando para o teto, arfando.
- Dorme aqui hoje? _ ele pediu, ofegando enquanto retomava o folego _ A Laura nao vai se importar.
Deitado de frente para ele, dividindo o mesmo travesseiro, acariciava sua mao, sorrindo levemente. Perguntei se ele trazia muitas mulheres para aquele quarto, e ele negou, disse que respeitava Laura, jamais faria aquilo na casa dela.
- Esta com fome? _ indagou, saindo da cama _ Vou trazer algo pra nos.
Mal vestiu a calça, e saiu. "Ah, Miguel, nao me fuja de novo...", pensei com desanimo, me deixando ficar deitado, olhando para o Sao Sebastiao na parede. Estranhamente, o santo parecia olhar para mim, me avaliando com certo ciume de Miguel. "Que maluquice!", sacudi a cabeça, vestindo minha cueca e, por pudor, tambem a camisa. Logo Miguel apareceu com sanduiches de carne fria, cafe' e agua. Comemos sentados na cama, ele ligou o radio outra vez, estava começando um programa de musica classica, e ao som de Bach jantamos, conversando pouco.
Apesar de ter dormido muito em paz nos braços dele, numa sensaçao de estar definitivamente em casa, numa casa morna e macia que era minha por decreto do destino, pude perceber que ele dormiu mal, que me apertou a noite toda, inquieto e respirando fundo, organizando, quem sabe, aquele caos que estava em sua mente. Tive medo de que ele me escapasse no dia seguinte, que tudo nao passasse outra vez de o sonho de uma noite apenas, algo fugaz mesmo que intenso. Porem, assim que amanheceu, ele me serviu o resto do cafe', requentado num pequeno fogareiro à gás do seu quarto, lavou seu rosto, mudou a roupa e me convidou para sair com ele, queria que eu visse algo. Novamente ele me parecia sisudo, mas nao hostil, nao arisco como antes. Levou-me ao porto, cujo movimento do dia se iniciava, so' que dessa vez Miguel cortou por um caminho diferente, passando entre grandes cargas de soja, á espera de serem carregadas, e mais afastado do centro do movimento, descemos por umas pedras da costa, num lugar umido á beira-mar, debaixo de um pier extenso e deserto áquela hora; havia ali um certo tipo de assento de pedras lisas, dispostas em tres, com vista para o oceano e parte da serra do mar. O sol nascia por tras da serra numa explosao avermelhada entre nebulosidade fina como seda; entendi que Miguel queria que eu visse aquilo, um pequeno milagre que tornava o dia dele mais bonito, mais raro.
- Gosto de ficar aqui ás vezes, antes de pegar no trabalho _ disse com um sorriso brando.
As ondas preguiçosas quase molhavam nossos pes, e assim que o sol beijou o oceano na sua luz alaranjada, seus raios ainda frageis nos pegaram ali embaixo, primeiro batendo em nossos joelhos, e depois em nosso rosto. Senti que Miguel me olhava, e o fitei tambem, estranhamente comovido; seus olhos brilhavam encarando os meus, e achei que nada precisava ser dito pois nos entendemos de uma vez por todas, apesar de tudo: eramos a luz um do outro, a luz que sempre tinhamos buscado.
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Thanks a todos :)
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