Quando eu tinha dezoito anos me envolvi com cocaína, não tive como usar de forma moderada e acabei numa clínica de reabilitação. Foi um período escuro e divisor de águas na minha vida, talvez ele tenha marcado a minha transição à vida adulta; durante o tempo em que passei na clínica, conheci muitas garotas, mas a única que interessei era esquizofrênica hebefrênica (rotulada por critérios subjetivos do CID-10), seu nome era Cassandra. Minha ninfeta era a melhor, não só pela beleza (morena, seios pequenos, magra, cara de anjo com um quê de malícia no olhar), mas pelas características psicológicas que tanto me excitavam; ela era ambivalente emocionalmente, imprevisível como uma roleta russa, agressiva e doce como um animal selvagem, caprichosa e mimada como uma garotinha – que chora até ter tudo o que quer.
Eu não resisti ao desafio e não tinha problemas em me desgastar, sempre fui meio pedagogo, a garota era o meu paraíso; comer a menina era pouco perto da carga emocional excitante que ela me proporcionaria, não exitei, segui o desejo como seu fiel pupilo. Mas entre nós havia um nó, era a sua medicação, a coitada vivia embotada, como dentro de uma camisa de força psíquica, não podendo assim, liberar sua “potência de agir”, os remédias podavam a garota.
Até aqui ficou claro que meu envolvimento com ela não foi somente sexual, mas também plural; ela era um garota rotulada e limitada por tais rótulos, meu papel foi desconstruir tais rótulos e ajudá-la no processo de elaboração de sua própria identidade, dando a ela a princípio um apoio, para que futuramente ela pudesse caminhar com suas próprias pernas. Não serei hipócrita ao dizer que não me aproveitei sexualmente dela pela sua condição, mas me considero um herói por ter dado a ela a base para sua emancipação – coisa que nenhuma terapia, nenhum médico ou assistente social teve a competência de dar.
Mas eu tinha um impasse: se eu ajudasse ela a ser livre, ela amadureceria, logo, eu perderia a garotinha perdida que tanto me excitava. Eu era um viciado e ela era taxada de louca, então fiz um acordo comigo mesmo em só ferrar pessoas que não estivesse em situações fodidas. Foi com os loucos, bêbados, marginais e inconsequentes que me senti em casa, pois com eles havia alteridade -coisa que pessoas “normais” não costumam praticar. Decidi ajudá-la, mesmo que a perdesse no final do processo.
Comecei a ensiná-la a pôr os comprimidos na área entre a mucosa e a gengiva, aquela área acima dos dentes onde se costuma ficar certos tipos de comida. Por um tempo nós treinamos com pedaços de galhos de árvores partidos, até que aprendemos a fazer esse truque para que os enfermeiros não notassem que a medicação não estava sendo ingerida. Para minorar suas crises nós ficávamos abraçados, contava-lhe sobre arte, filosofia, cinema, ela era extremamente inteligente e pirrônica, mas nem tudo foi paz e tranquilidade, às vezes ela delirava e chorava por estar confinada, o tédio daquela prisão era insano, então eu tentava desviar sua atenção para coisas boas, isso nos fazia melhor que aquelas terapias.
Ela me contou de traumas da infância, as vezes em que fora estuprada, o sentimento recorrente e até constante de ostracismo, tédio, ansiedade e inadequação social; como ouvinte e alguém que a analisava, mostrei a relatividade do mundo, expondo que cada pessoa tem o seu povo, o seu meio, a sua subcultura. Eu aprendi que não é difícil lidar com os ditos “loucos”, eles têm razão em seus delírios, a dificuldade é nossa em entendê-los, talvez por comodismo e/ou egoísmo nosso, afinal é mais cômodo e soberbo achar que somos donos da verdade.
Conquanto eu quisesse ajudá-la, ainda assim queria transar com ela, agora não era mais por puro fetiche por um louca, mas por algo superior ao próprio fetiche, porque não era mais a loucura que me excitava, era ela. Seus defeitos não reverberavam em porra nenhuma na minha vontade de comê-la, embora sua personalidade questionadora e transgressora fosse algo atraente, mas tinha deixado de ser fetiche e se transformado em “algo a mais” (pensando bem, sua personalidade nunca fora um defeito, senão uma qualidade que poucos eram capazes de entender), pois viveria com ela numa boa, com sua mente de altos e baixos.
Com o tempo eu me recuperei da abstinência de cocaína, não me picava mais, agora eu fumaria apenas baseados, ouviria meus velhos discos de cantores brasileiros, faria um bom curso técnico e atenderia a essas exigências mínimas para uma vida financeiramente confortável; nada burguês eu introjetaria em minha personalidade, como roupas (caras e de má qualidade), móveis (impessoais e feitos para ostentar), ideologias...
A cocaína me fazia pensar somente nela, a ponto de eu me tornar um egoísta. Meus atos não condiziam com minhas opiniões, era aquela coisa de ter de arrumar dinheiro pra droga ou um bom fornecedor que não me vendesse gato por lebre. Mas o prazer inicial da cocaína foi se transformando em um uma faca de dois gumes, pois eu necessitava de doses cada vez maiores em intervalos de tempo cada vez mais próximos; passava dois dias acordados e depois dormia em um dia o equivalente as horas de duas noites de sono, em síntese: você não come, não dorme, dedica-se integralmente a cocaína, pois tudo tem que culminar em sua aquisição.
Com o passar do tempo ela também aprendeu a lidar com seus fantasmas, no fim, ela jogou seu rótulo de louca no lixo. Afinal loucura é apenas o que destoa da maioria, talvez por isso sempre preferi pessoas assim, considero uma resistência às imposições sociais, mulheres da década de cinquenta que desobedeciam os maridos eram internadas como loucas, fora outros rótulos que davam aos subversivos da Idade Média.
Estávamos bem, sei que se ela voltasse à sua casa ele declinaria, então lhe propus uma fuga da Clínica. Eu trabalharia numa loja de departamento, arrumaria nossa grana e teríamos uma vida só nossa, baseada em nossas necessidades, onde ninguém entraria para qualquer tipo de censura, seríamos impermeáveis e nosso mundo que tanto fantasiávamos seria inescrutável.
Nenhum ser espúrio entraria no nosso infinito particular, eles não compreendem, aprenderam a viver na monotonia e previsibilidade, qualquer subversão os assustam, pois morrem de medo de perderem o controle e sair do comum, do que seus pais e a sociedade ditou como certo, seus preconceitos são seguidos como sagrados.
A fuga daquela prisão aconteceu da seguinte forma: durante a tarde tomávamos banho de sol, havia uma grade grande, era difícil de escalar pois não havia onde pôr os pés para escalar, junte isso ao fato deles doparem as pessoas, uma fuga seria quase impossível (QUASE); havia um bom tempo que jogávamos fora a medicação, então com esforço conseguiríamos escalar as grades, só era preciso distrair o instrutor de educação física na hora das atividades a céu aberto (ou esperar uma distração dele).
Cassandra nunca participava desses exercícios, nem eu. Acordamos que seria ideal fingirmos indisposição para que não se levantasse qualquer suspeita sobre a suspensão dos medicamentos, mas o instrutor de educação física supervisionava a todos, não havia guardas na área verde onde acontecia os exercícios, eles todos se circunscreviam na portaria de entrada da clínica, mesmo sendo óbvio que nenhum interno tentaria fugir exatamente por ali.
Esperamos o dia em que ele se distraísse com alguma coisa, parecia em vão, mas o dia acabou chegando, numa briga entre internos, tivemos a oportunidade de fugir. Quando estávamos fora fomos seguidos por guardas que foram avisados da fuga, mas conseguimos nos esconder nas ruas de um bairro próximo a clínica.
...
Ps.: Para quem não pegou a referência, esse conto é um tributo a Cass e a Dolores Haze.