O Estivador VII

Um conto erótico de Irish
Categoria: Homossexual
Contém 1994 palavras
Data: 21/08/2015 17:57:50

"Ele nao pode fazer isso comigo, nao pode...", refleti sentindo meu coraçao apertado no peito, encolhido como se já chorasse.

- Mas como assim, Laura? Que loucura e' essa? _ indaguei com afliçao _ O Miguel na guerra... Porque? Como voce soube disso?

- Calma, calma... _ ela segurou minhas maos, respirando fundo _ Isso foi ele quem disse, anteontem. Claro que fiquei tao chocada quanto voce, mas... Ele pode, Afonsinho. Serviu na Marinha, voce sabe, recebeu treinamento de guerra, pode se inscrever e participar, já que o Brasil pretende entrar no conflito... Ele pode fazer isso, ser convocado e...

- E morrer. E me deixar _ disse com voz tremula, enxergando as roupas no varal como borroes brancos e coloridos atraves das làgrimas _ Porque ele esta fazendo isso, meu Deus?

- Eu nao sei, meu amigo _ ela me abraçou, consternada _ Nao chore assim, nao se desespere... Argumentei de todas as maneiras possiveis, mas ele me pareceu muito decidido, tem um certo tipo de ambiçao inutil de participar de algo realmente grande, sabe... Desde que ele soube que o Brasil enviaria combatentes, ficou interessado... Querido, apesar disso, eu percebi algo estranho nessa intençao dele...

Olhei para ela, secando meu rosto com vergonha de ter chorado. Seu olhar era de pena e preocupaçao.

- Há algo mais serio que o move a ir lutar, Afonsinho _ sussurrou ela _ Pude ver nos olhos dele. Em meio ao enorme amor que ele sente por voce, há tambem uma sombra, uma nuvem escura de conflito que o atormenta. E' como se já houvesse uma guerra dentro de Miguel... E eu tenho uma boa ideia de que guerra seja essa, e creio que voce tambem tenha.

Encostei a cabeça na parede caiada, olhando para a roupa limpa e umida tocada pelo vento no varal. Eu sabia o que movia Miguel a fazer aquela besteira. Infelizmente eu sabia.

- Ele nao aceita completamente o fato de estar amando outro homem _ falei, deixando que Laura segurasse minha mao _ Parece ser algo alem do que ele imagina, do que consegue suportar... Talvez ele se assuste com a força desse sentimento e nao saiba lidar com ele, sentindo-se angustiado. Como nao pode matar isso o que sente por mim, prefere matar-se numa guerra estupida.

- Nao, coraçao _ ela apertou minha mao e a beijou _ Ele o ama, ama muito.

- Mas quer me aniquilar de sua vida _ falei sentindo as lagrimas correrem de novo _ Quer deixar de existir para nao sentir isso, para nao ter de lutar consigo mesmo. E' um tipo de suicidio, Laura. Ele nao consegue deixar de me amar, mas quer matar em si esse amor, de uma forma atroz.

Laura nao disse mais nada, mas me olhava agora de um jeito agoniado, compreendendo a verdade de minhas palavras. Depois de quase meia hora de silencio, ela se levantou para preparar o almoço, enquanto ainda fiquei lá fora, sentindo-me infinitamente triste, com raiva de Miguel, da guerra, e de sua decisao absurda. "Se ele morrer, meu Deus... Eu nao vou aguentar... Nao vou... Ele encontrou um jeito mais cruel de fugir de mim. Talvez em definitivo".

Pouco depois das onze, eu o ouvi chegar, saudando Laura e perguntando por cafe'. Do meu lugar ali fora, sentado perto do tanque, ouvi quando começaram a discutir: ele perguntou por mim e Laura, num tom nervoso, contou tudo, acusando-o de me fazer sofrer, de querer destruir nosso amor da pior forma.

- Nao e' verdade _ argumentou ele.

- Voce o deixou muito triste com essa sua ideia estupida. Fez ele chorar _ ela parecia chateada pra valer _ Nunca vou perdoar voce por isso, Miguel. Nao se esqueça de que tambem amo o Afonsinho. Quem faz mal a ele, faz a mim tambem.

Fizeram silencio, e ouvia-se apenas o som da fritura que Laura fazia. A cozinha era muito proxima, a janela aberta me permitia ouvir tudo, sentir o aroma de carne frita e escutar os passos pesados de Miguel no chao encerado.

- Voce nao entende, Laura _ disse ele parecendo cansado.

- Escuta, o quanto voce ama esse garoto, Miguel? _ indagou ela em tom firme.

- Eu ... nao sei medir isso _ respondeu ele devagar _ Sinto-me... aniquilado por esse amor. E' como se ele fosse a minha chama de viver. Nao quero deixar o Afonsinho, se e' isso que voce pensa.

- Mas vai entrar num combate, sem necessidade. E porque? O que quer provar, Miguel?

Silencio. Laura mexeu em panelas, em talheres. Depois de um momento, a voz de Miguel veio num timbre baixo, sombrio.

- Eu penso que... se Deus me deixar viver, significa que nao preciso sentir culpa. Que meu amor nao esta errado, que fui compreendido e abençoado nesse sentimento. Sinto que tenho que provar isso a mim mesmo.

"Burro. Maldito burro!", mordi os labios de raiva, querendo chorar de novo.

- Ah, claro! Hà uma guerra sangrenta là fora e Deus esta preocupado em saber se voce ama um homem ou nao!_ disse Laura com sarcasmo _ Seu idiota. Vai fazer o menino sofrer por isso? Custo a crer! Pois se vejo que voces sao um do outro, que o amor de voces e' sagrado... Como isso nao seria abençoado? Miguel, a sua carolice pode lhe custar a vida.

Em silencio cheguei à cozinha. Tensa, indignada, Laura cuidava da fritura, mexendo no oleo fervente com a escumadeira; encostado à pia, Miguel tinha uma expressao fechada, lugubre. Assim que me viu ficou apreensivo, fez mesmo um movimento como se fosse me tocar porem desistiu, olhando para mim como se pedisse compreensao. Nao esperei que ele dissesse nada, sai dali com um misto de raiva, tristeza e desespero, ouvindo ele e Laura recomeçarem a discutir por minha causa.

Caminhei longe e por muito tempo pela praia, para os lados da serra onde o espaço era mais deserto. Soprava um vento abafado, asfixiante como se saido duma caixa fechada, porem a imensidao cinza azulada do oceano causou em mim o efeito de sempre: o de me acalmar. Quando voltei, Laura serviu o prato feito que ela tinha guardado para mim sobre o fogao; enquanto eu comia, ela contou que Miguel almoçara e saira, decerto para a taberna com os amigos. "Meu sofrimento nao vale nada para ele", pensei com mágoa, sentindo Laura me fitando, compreendendo tudo.

- Voce nao ve a dimensao do sofrimento dele nessa historia toda _ disse ela _ Mas eu vejo, querido. Nao esta sendo facil para ele, nada facil.

Jà era noite alta e Miguel ainda nao tinha voltado. Laura me tranquilizou, dizendo que ele nao costumava se embriagar. "Deve estar fazendo o que ele faz de melhor: fugir de mim, da situaçao toda", imaginei, chateado. Apos ouvirmos um pouco de radio na sala, Laura preparou para mim o colchao e lençois no quarto de Miguel; colocou minhas roupas num bau de fecho quebrado, porem limpo, diferente das coisas empoeiradas da casa de Elias. Beijou meu rosto, pedindo que Santa Sara Kali me abençoasse, e desejou uma boa noite na medida do possivel, e' claro.

Passava das dez quando Miguel chegou, fedendo a cachaça e charuto. Porem nao cambaleava, e enquanto fingi dormir, ele ficou parado por longo tempo agachado diante de mim, me olhando.

- Meu pequeno _ sussurou _ Me entenda, e me perdoa.

Acariciou meus cabelos, meu rosto, saindo depois do quarto e voltando de banho tomado. Deitou na cama, rezou baixinho por alguns minutos e apagou a luz. Me esforcei para nao chorar naquela hora de insonia, ouvindo-o ressonar baixo ao meu lado, imaginando se depois que ele se fosse, se nunca mais dormiriamos assim tao perto outra vez.

Tivemos chuva por quase uma semana, todos os dias, e durante esse tempo fui frio com Miguel, deixando minha magoa falar mais alto, a despeito dos conselhos de Laura que, mais conformada, me pedia para tentar entender a decisao dele. Todas as noites ele me acariciava antes de dormir, mesmo que eu estivesse acordado, rezava baixinho, pedia perdao, mas nao desistiu da ideia de lutar na guerra. Inscreveu-se mesmo como voluntario, e no final de uma semana veio com a noticia de que fora aceito e iria de fato para a Europa guerrear. Senti meu coraçao dilacerar-se, tamanha foi a dor, nao quis jantar naquele dia e fiquei chorando no quarto, debaixo do lençol, ouvindo Laura e ele discutirem outra vez. Eu tive esperança de que nao o aceitassem, seria nossa salvaçao se o fizessem, porem foi tudo por agua abaixo. "Miguel, seu desgraçado, voce vai destruir nossa historia... E ela mal começou", refleti, aos prantos.

Quando fiquei mais calmo ele apareceu no quarto, em silencio, sorrateiramente deitando-se ao meu lado no colchao e me abraçando como havia dias nao fazia. Alisava meus cabelos devagarinho, numa caricia triste.

- Se voce morrer, nunca vou perdoa-lo _ sussurrei _ Voce vai destruir nosso amor, mas carregarà meu odio eterno consigo, Miguel.

- Afonsinho... _ ele disse numa voz sufocada, me virando para ele; seus olhos estavam umidos _ Eu vou por nos, eu preciso provar que estamos corretos...

- E estamos. Nao precisa lutar mil guerras para provar isso _ disse e segurei seu rosto _ Como voce nao consegue ver, nao consegue entender? Odeio esse Deus de culpa que o arrasta para isso, odeio porque ele e' ilusorio, Miguel.

Mesmo permanecendo em silencio, era dificil para ele se convencer. Nao dissemos mais nada, adormeci nos braços dele, imerso numa tristeza infinita que parecia tambem atingi-lo. Tinhamos poucos dias ate que ele se fosse com a Força Expedicionaria Brasileira, rumo á Europa, e nesse periodo meu coraçao sangrava mais, como se estivesse morrendo lentamente.

Na vespera de sua partida, entreguei-me a ele, sedento e precocemente saudoso daquilo que nao fariamos por sabe-se lá quanto tempo. Ele me amou com um fervor estranho, como se quisesse absorver cada parte do meu corpo, marcà-lo como seu para sempre, explorar cada canto e o crivar de beijos de uma comoçao intensa. Choramos juntos quando terminamos, na noite tao abafada daquela despedida... Queria ter o poder de Laura, o poder de ter pressagios e saber se ele voltaria para mim, se seria meu de novo.

- Que voce nao se esqueça, nem por um dia, que eu te amo, que voce e' a minha vida _ disse abraçado a ele com desespero _ Por favor, volte para mim. Nao me deixe sozinho.

Ele chorava em silencio, e claro que nao pode prometer nada. Quando eu quase adormecia, ele sussurrou que me amava, me abraçando forte e beijando meus cabelos.

- Que Deus me permita voltar _ sussurrou, suspirando.

Eles partiriam para o Rio de Janeiro para um periodo de treinamento antes de embarcarem para a Europa. Como eu nao podia me despedir de acordo de Miguel na estaçao, fiz isso na sala de Laura, me esforçando terrivelmente para nao chorar. Com a mochila nos ombros, ele me olhava com pena, e me pareceu, tambem remorso antecipado. Laura rezou com ele uma oraçao aos murmurios, abençoando-o á sua maneira, chorosa; quando me cedeu a vez para abraça-lo, o fiz numa afliçao, retendo-o ao maximo, talvez pela ultima vez. Nao consegui dizer nada, a garganta doia de choro reprimido. Afinal o soltei, beijando-o num soluço seco; ele nos olhou cabisbaixo uma ultima vez, suspirou, acenou um pouco sem graça e saiu pela porta; nao tive coragem de ve-lo ir pela rua afora, segurei na parede e a esmurrei, com odio, recostando a testa e afinal chorando, deixando vir tudo o que segurei na frente dele. Laura me abraçou por tras, tambem mergulhada num choro manso.

- Por favor... _ sussurrei, exausto, sem folego do pranto _ Me diga que ele vai voltar. Me diga. Voce sabe, voce ve...

- Eu nao sei _ ela fungava, alisando meu ombro _ Juro como nao sei, meu anjo.

"Se ele morrer que eu tambem morra, meu Deus", pedi num desespero profundo, recostando meu rosto á parede, fazendo as lagrimas colarem a cal aspera á minha pele. "Que eu tambem morra...".

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Valeu, povo!! :)

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Comentários

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Eu achei justa e honesta a decisão do Miguel. Ele quer se resolver primeiro consigo mesmo, isso é nobre. Mas... acho que não vai acabar bem :(

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Diferente da maioria dos contos deste site, o teu é lírico! Espero realmente que Miguel retorne. se bem que, muitos do s que retornaram não eram mais os mesmos. A convivência com os sobreviventes foi muito difícil. Aguardo, ansioso, a continuação. Um abraço carinhoso,

Plutão

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esse conto seria uma adaptação, ou releitura do conto O estivador de Harry Laus que pertence à literatura gay???

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Ai Irish, nao faça isso comigo. Abraços

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400 por quantos soldados em guerra? Espero que o Miguel não seja um desses 400. Idiota! Precisa provar para si que não está errado... Imbecil!

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Chorei junto com eles nesse finalzinho...

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Oi! Agradecimentos a *Ru/Ruanito, * Geomateus, *FASPAN, *esperança, *Haryan (ja arrumei o cap. anterior ok?), * Ninho Silva, fiz soh um conto sem happy end, e obviamente nao curtiram. Posso ter repetido essa experiencia. Quanto a guerra, o Brasil perdeu 400 vidas no conflito, e obtiveram importante vitoria na Italia. Foram valorosos :) Valeu! * Anonimos, abraço. Amanha o final, ok?

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