É noite. Todo mundo nessa cidade pequena acha que o mundo fora dela é muito ruim e está muito longe para que os possa preocupar. A noite está fria. Mas é sempre fria para mim. Eu digo para eles. Estou no alto de uma colina e consigo ver um casal de adolescentes correndo para longe das luzes e adentro das árvores. Minha sede clama por atenção, mas eu a controlo. Por agora. Minha sede não é exatamente algo que possa controlar por muito tempo. Mas além da minha sede existe o gosto pelo jogo de caçar e aquele casal está muito fácil. O vento faz meus cabelos ficarem inquieto pelo ar, coloco o meu chapéu e caminho em direção à cidade.
Pouco tempo depois estou caminhando pelas calçadas bem iluminadas. A cidade pode ser pequena, mas as pessoas olham para a minha aparência antiga e pestanejam. Confesso que esse é um erro que não quero consertar. As pessoas de hoje em dia procuram por uma moda e acabam perdendo o bom senso. Meu sobretudo negro, meu chapéu escuro e minha calça preta são tudo do que preciso. Que olhem.
Crianças brincam nas ruas sem nenhum respeito pelos carros que são poucos. As velhas senhoras juntam-se em grupos para conversar. Eu olho para uma à medida que passo pela esquina e meus cabelos deixam o meu olho à vista por causa do vento. A mulher faz o sinal da cruz. Argh. Petulante. Não gosto de sangue velho, no entanto. Continuo andando. Pode ser que hoje não venha a beber nada. Estou apenas conhecendo o local onde vou passar meus próximos dias, quem sabe meses ou anos. Estou muito surpreso por não ter nenhum outro da minha raça no local que aparenta ser tão aconchegante. Realmente parece que minha sorte está grande.
Andando chego numa praça, muitos jovens, vozes divertidas e gargantas nuas. O doce vento faz as folhas sussurrarem por cima das poucas árvores que ali existem. Muitas sombras para que me esconda. Enquanto caminho até um assento, estudo o ambiente ao meu redor. Casas fechadas e escuras domina o local, mas há também bares e lojas e pessoas em suas portas conversando amigavelmente. Vejo outros grupos de criança. Vejo uma igreja católica lotada e uma enorme cruz enfeita a construção alta e central de ponta triangular. A visão faz o meu corpo tremer e esquentar subitamente, mas está longe. Isso é apenas uma reação do medo. Não consigo controlar.
Sentado por muito tempo ali, chega o fim da missa que ocorria por dentro do local sagrado e todo mundo começa a sair. Eu os assisto com nojo e desdenho. Nenhum deles é puro a não ser o jovem acompanhado pelo padre. Não consigo escutá-los de tão longe, mas sou muito bom em ler lábios e recosto-me na árvore para prestar atenção.
‘Você pode ir na frente, meu filho. Ainda preciso cuidar de algumas coisas aqui na igreja.’ É o padre que fala. Fico confuso com o fato de que ele o chamou de filho. Mas o garoto responde e tira a minha dúvida.
‘Tio, eu posso te ajudar.’
O padre balança a cabeça e manda o garoto ir embora. Obviamente muito perturbado, o garoto olha ao seu redor como se estivesse a procura de alguém e por um momento nossos olhares se encontram. Consigo sentir o meu interior retorcendo-se de desejo pelo sangue quente e puro do garoto. Ele não presta atenção em mim que estou nas sombras e começa a caminhar para longe das pessoas. Só eu senti o poder daquele pequeno momento em que nos encaramos. Ainda assustado, eu me levanto e caminho pela mesma direção que o garoto foi.
Passo da igreja e das pessoas conversando. Algumas delas me olham curiosas e interessadas, outras simplesmente me ignoram. Alguns ficam desconfiados. Nenhum deles conhece o perigo que anda por perto. Nenhum deles reconhece que a qualquer momento podem perder o sangue do corpo sem nem ao menos perceber o que está acontecendo com seus pobres corpos frágeis.
A hora avança, assim como o menino puro pelas ruas escuras da cidade. Ainda estou decidido a não me alimentar agora, mesmo que o impulso dentro de mim esteja dilacerante. Séculos de costume me ajudaram a controlar aquilo. O sangue das vítimas ficam bem mais saborosos em meus lábios quando sou mais calmo e escolho bem minha presa. O garoto me intriga muito e fico pensando enquanto caminho no que estou me metendo. Nunca havia sentido coisa como aquela. Uma fome bem maior, não mais intensa, simplesmente maior.
Ele vira sua pequena cabeça loura para trás e vê que está sendo seguido. Acelera seus passos e entra numa esquina mal iluminada. Como é de se esperar quando chego na esquina não o consigo ver por nenhum canto. De certo, sua intenção foi de me fazer pensar que tivesse corrido para longe. Mas eu o conseguia sentir escondido por debaixo de um carro. Seu pequeno coração batia muito forte e rápido. Eu o estava deixando incrivelmente nervoso. O carro estava a alguns metros de mim. Começo a andar em sua direção a passos lentos.
O céu está lotado de estrelas e os grilos dominam os arredores com seus gritos estridentes. Eu paro ao lado do carro e espero alguma reação. Fico impressionado com a paciência dele.
‘Está com medo de mim?’ pergunto. Passei alguns minutos em silêncio, o que para ele deve ter sido como uma eternidade. ‘Responda-me, garoto.’
‘Por favor, não me machuque.’ É tudo que diz. Não sai do seu esconderijo por debaixo do veículo. Meu pênis endurece por dentro da minha calça por causa da sua vez temerosa junto ao som do seu coração amedrontado. Sua súplica só me deixa com mais vontade de machucá-lo.
‘Não vou machucá-lo’ falo. ‘Preciso de ajuda. Estou perdido. Sou novo na cidade e embora seja pequena, ainda foi capaz de me deixar sem saber para onde ir.’
‘Sério? Não vai me machucar?’
‘Está me insultando por não acreditar na minha palavra’ falo eu, incrivelmente encantado com a inocência do pobre garoto.
‘Sinto muito, então. Irei sair daqui.’ Alguns gemidos e arrastos depois, ele se ergue na minha frente. ‘Seus olhos são vermelhos’ ele diz.
‘É da minha mãe. Ela tinha uma doença horrível e morreu me dando a luz. O que me restou dela foram os olhos vermelhos, meu querido…?’
‘Jesus’ ele diz. Encara-me sem devaneios. Certamente não sabe que minha visão é incrivelmente acurada na escuridão e consigo ver com clareza o momento em que seu rosto branco fica vermelho.
‘Nunca ouvi um nome mais apropriado’ falo. O garoto me olha confuso. Tento consertar o meu erro. ‘Você não gosta do seu nome?’
‘Meu tio e muita gente não gosta. É um nome sagrado. Eu não deveria repeti-lo nunca. Mas é meu nome.’
‘Tenho certeza que faz jus ao nome.’
‘O que quer dizer com isso?’
‘Que você deve ser um bom rapaz.’ O cheiro indica que tem dezessete ou dezesseis, mas sua atitude é mais inocente do que deveria.
‘Não sou tão bom assim!’ ele diz de forma defensiva. Eu dou uma pequena risada.
‘Me perdoe então por ter dito a coisa errada.’
‘Você não disse. Eu que peço desculpas. Está mesmo perdido?’ ele pergunta. Mas antes que eu possa respontar, ele continua. ‘Seus olhos vermelhos estão brilhando.’
‘Estão?’
‘Estão. Por quê? São bonitos.’
‘Obrigado. Deve ser algum truque da luz.’ Ficar tanto tempo perto dele está me deixando extremamente suscetível a sede. Meus olhos brilham e meus dentes crescem e tudo fica muito difícil de controlar. ‘Vamos andar? Estou perdido, sim. Preciso encontrar a rua do cemitério.’
‘Mora lá?’
‘Moro.’
‘É um lugar sombrio. Meu tio não gosta. Nem mesmo as pessoas que moram por lá não gostam do local. Acho que é por causa dos mortes, óbvio. Algum cheiro ou até mesmo os espíritos. Embora meu tio diga que a cidade é sagrada e que nenhum mal como aquele pode assolar os habitantes. Demônios ficam fora de nossa cidade, ele diz.’
‘Interessante’ eu falo. ‘Onde está seu tio?’
‘Ele é o padre.’ Ele me leva pelas ruas da cidade e à medida que caminhamos, as luzes parecem ficar mais escassas. Não é uma coisa ruim para mim. Percebo que o garoto toma cuidado para não tropeçar. Ele é maduro o suficiente e tem um jeito de andar seguro. Só posso atribuir sua inocência exacerbada pelo fato de ser sobrinho de um padre que mesmo não sendo puro ainda consegue ser hipócrita o suficiente para ser severo com o sobrinho.
‘Achava que a missa tinha acabado.’
‘Acabou. Ele ficou na igreja. Há quanto tempo está na cidade?’
Noto que ele começa a ficar incomodado de falar sobre si mesmo e muda o assunto. Evito olhar muito para ele e seu lindo pescoço.
‘Cheguei hoje mesmo.’
‘Hum.’ Ele fica calado.
‘Você quer ser padre como o seu tio?’
‘Não. Mas eu acho que ele quer que eu seja.’ Ao falar isso, o garoto vira o rosto em minha direção completamente mortificado. ‘Desculpa. Não diga a ele que disse que eu não queria ser padre.’ Aquilo é medo? Fico mais e mais intrigado.
‘Não se preocupe. Mas se não deseja ser padre, não seja.’
Ele relaxou.
‘Ali está o cemitério. É melhor eu ir andando para a minha casa agora. Não gosto desse lugar.’ Eu tiro o meu chapéu.
‘Estou muito agradecido pela sua ajuda, Jesus.’ Falo isso encarando diretamente os olhos de safira do garoto, que por sua vez me devolve um olhar intenso que me deixa a beira da derrota para os desejos.
‘Como é o seu nome, senhor?’
‘Eduardo de Woodstock.’ Senti a urgência de falar meu nome completo e torcer para ser reconhecido, mas esses são desejos humanos e não são mais dignos de mim. Arrependo-me, mas é tarde demais.
‘Udistóc?’
‘Exatamente’ respondo com um sorriso. Ele sorri também. Dentes brancos e bem feitos.
‘Nome estranho.’ Ele fala. Depois: ‘Perdão.’
‘Pode me chamar de Negro, se quiser. Muitos me chamam assim.’ Ou chamavam…
‘Você não é negro.’ Mas está sorrindo ao falar isso. ‘Vou chamá-lo de Eduardo.’
‘Obrigado mais uma vez’ falo.
‘De nada.’ Ele abaixa a cabeça numa reverência e caminha para longe. Não sei por que deixo. Estou confuso enquanto caminho para o cemitério. A hora passa e o sol levanta. Não tenho tempo a perder. Minha sede aumenta a cada minuto. Mas à medida que Jesus se afasta, ela se tranquiliza mais. Com um pulo estou do outro lado do muro com grades afiadas do cemitério. Muitas cruzes por ali. Uso minha capa para poder esconder-me delas e caminhar. Existem grandes tumbas construídas para pessoas obviamente mais importantes da cidade, é para lá que estou indo. Cansado. Sinto-me cansado. E sinto falta. Antigas amizades, o sangue do meu sangue e os irmãos que fiz a procura do sangue.
Abro uma das catacumbas de cerâmica e enfio-me dentro. Não gosto de lugares assim. Mas é o mais prático no momento.
Aquela é uma tumba vazia. Predestinada a alguém que ainda está vivo. Mas o que preciso mesmo é do escuro.
Algumas horas depois, um galo canta ao longe e fecho os meus olhos.
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meu primeiro conto e espero eu que gostem e se não quiserem comentar, ao menos votem p/ saber se tão gostando ou não de qualquer forma obrigado