Prólogo
Pássaros não dizem “adeus”, eles apenas se vão. Aprenderam cedo que devem seguir incólumes a tudo, por conta do empurrão de suas mães para fora do ninho. Valem-se desde a tenra infância da lei darwiniana da sobrevivência dos mais fortes, aqueles cujo esforço do bater de asas evita que caiam no chão e se espatifem em pedaços sangrentos de carne, que serviriam de alimento aos abutres que esperam somente o momento propício.
Algumas pessoas são pássaros, outras, abutres. Não tacho as pessoas de modo inexorável, pássaros e abutres são facetas de todos os humanos, embora alguma acabe se sobressaindo, há chances de alternância, isto é, um pássaro se tornar mais abutre, ou um abutre se tornar mais pássaro.
Tenho até esperanças sobre os pedaços espatifados de carne no chão, pois como estrelas se dividem e de cada pedaço surge um novo ser, nada é perdido porque tudo se transforma, verdade Lavoisierana.
Agora que passamos pela natureza e viajamos ao mundo das analogias, adentremos na realidade concreta do ser humano. No cotidiano, no grande sistema invisível e repetitivo ad infinitum no qual somos peças.
No meu antirrotineiro modo de pensar/agir, peguei pra mim uma velha fórmula, aquela que nos tentam apagar da memória, aquela que lembramos como flashes e é tão mal vista, ela se chama infância. Confunde-se com a loucura e com a falta de limites, é onde damos vazão a fantasia e gozamos de todas as formas possíveis. Não há juízo de valor ou moral, mas tudo é interditado por outrem, pela consciência que o mundo nos empurrou a ter. Ah, velha fórmula, venha até mim num ácido ou no meu ato de me permitir ser, apenas ser e não ter, não ter de ter nada.
Eu tentei voar como os outros, mas me dividi em fragmentos estrelares, os abutres vieram mas vomitaram os pedaços de volta, eu era tóxico demais para ser digerido. Não juntei os cacos, não quis emendar. Os pedaços deram origem a novos seres, seres autônomos, sem uma consciência que controlasse a todos, vieram múltiplas personas, múltiplos modos de agir, múltiplas consciências, tudo isto, dentro de um invólucro chamado “corpo”.
Não era pra mim ser apenas um pássaro, embora cômodo seria, mas quem disse que sou adepto do comodismo? Transformar é o verbo. É fazer de si um objeto da própria alquimia.
Os Ratos
Eu estava no meu quarto, tinha acabado de jantar e queria acabar a porcaria de um dever de casa que a escola tinha me passado. Não sei o porquê mas sempre achei os professores uns relapsos, parece que eles estão ali apenas para cumprir hora e ganhar o dinheiro no fim do mês. Eles só faltam bocejar! Quando fingem que se importam com o trabalho, na verdade se importam em impor uma posição de poder, poder pelo poder, nada de sublime. Eu observava no livro os retângulos, e em meio as divagações sobre os professores, eu tentava achar a área máxima... “hã?! Que barulho é esse?”, indaguei surpreendido.
Um barulho de movimentação se apossava da atmosfera do quarto. Eu não estava só, alguma coisa estava ali também. Levantei da mesa de estudos e olhei debaixo da minha cama, vi um rato, um rato enorme e marrom, com uma calda que se assemelhava a um filhote de cobra.
“Ei, vem cá, de onde você saiu? Tem algum buraco na parede que não vi ainda?”, o rato se afastava para a porta, como se pedisse que eu a abrisse. Em seguida, ele correu até a lavanderia, lá, entrou dentro do ralo que estava destampado.
Eu estava feliz com o acontecido, minha vida pessoal estava meio que conturbada graças ao número alarmante de pessoas fúteis ao meu redor. Isto me irritava, pois tudo se resumia a papinhos bocejantes e intrigas estúpidas. Ao menos um fato inaudito havia me dado uma sensação nova, uma quebra de rotina.
Observei que perto do ralo havia um cocô de rato, não era um mero cocô, era provavelmente o cocô da ratazana que me despertou da monotonia do cotidiano. Peguei o cocô da ratazana como uma cápsula mágica, a la Alice no País das Maravilhas, e assim como a personagem, engoli a cápsula. Nada demais aconteceu, então quis vomitar, coloquei o dedo na garganta e ao forçar percebi algo de textura sedosa e um pouco porosa, uma porosidade fraca, suave, que saia da seda que eu tentava vomitar.
Repentinamente, fiz um grande esforço, e da minha boca começou a sair um panapaná de borboletas pretas, de modo ininterrupto, elas saíam aos montes ao invés do grito que eu tentava emitir.
Depois olhei para os meus olhos pelo reflexo do espelho da lavanderia, meus olhos estavam inteiramente pretos, totalmente pretos, como se a íris estivesse se expandido. Eu tentei falar algo, mas tudo saía como um ruído, pulei para a Terra das Maravilhas, pulei dentro do ralo.
A viagem ao esgoto foi como um passeio de tobogã, eu sentia a emoção de que talvez eu não saísse vivo, muito embora aquilo tudo tenha feito eu sentir o grau máximo de estar vivo. Quando cheguei ao esgoto retrocedi milênios e reassumi a posição quadrúpede, fui então, seduzido pela conversa de um racional rato.
Ele me prometeu uma pílula que me tornaria bípede e aceleraria minha evolução, mas em troca, eu deveria tratá-lo como rei e atendê-lo em tudo.
Eu não sabia que o rato era um abutre e que ao cair no esgoto eu não soube voar, que aquele quadrúpede era um pedaço meu sendo devorado e logrado por um rato. Então cedi, até que mais tarde percebi seu jogo, esmaguei-o em minhas mãos e joguei seu cadáver na água suja do esgoto. Não por coincidência, voltei a ser bípede.
Encontrei a alternância, fiz uso dela por uma questão de sobrevivência. Adquiri o saber de um mundo baixo, de vigaristas e dissimuladores. Não era tão diferente do mundo de cima, então fiquei divido entre dois mundos, tão iguais em essência, tão diferentes na superficialidade da aparência. Decidi ir, ir embora como um pássaro, pois eles apenas vão...
Depois de tomar minha decisão, vi-me na mesa de estudos, novamente, com o mesmo livro, com o mesmo exercício. A falsa esperança que o rato me deu era falsa, havia um universo de intenções egoístas, baseando-se no meu “anticodianismo”, o rato se aproveitou para me fazer seu vassalo.
Epílogo
Na forma humana eu voltei para os velhos problemas, no entanto, percebi que também voltei à “velha fórmula”, pois eu já não era mais o mesmo. Aprendi a voar como os pássaros, e tinha a liberdade, até mesmo de rasgar aquele livro e ir comer um pastel no bar da esquina enquanto assistia uma partida de futebol. A liberdade de ter direito e não “ter de”, mas apenas ser, e voar por aí, sem que tesouras sociais cortassem as minhas asas.
Não voltei a procurar o rato no esgoto, fiz questão de eu mesmo, fixar com cimento a tampa daquele ralo, mas antes de pôr cimento, vi no chão as borboletas pretas, materialização das remanescências do que vivi, varri todas para dentro do ralo para em seguida tampá-lo.
E quando me encontro preso na rotina e aparece um rato para me “salvar”, eu apenas me conecto com a criança polimorfa e ilimitada que fomos antes da sociedade nos corromper. Os abutres te fazem lutar por sua própria sobrevivência!, estão sempre à procura de carne, mas ao devorar conscientizam, e como de carne vivem, estão predestinados a morrer de fome.