"Eu vou, eu posso, e se eu não for, vou ter um troço. É bom, eu gosto, e quem quiser, vem no meu bloco...” (Tuck Tuck, TimbaladaOpa, opa... Muita calma nessa hora – Gustavo se levantou tentando abrandar os ânimos.
- Não tô nervoso – respondi tranquilamente, tentando camuflar a raiva.
- Você não acha um pouco demais simplesmente ir até lá, aparecer do nada e contar que sabe de tudo?
- Darei um jeito.
- Guto, o que está pretendendo?
- Você vai saber em breve...
Quando ele ensaiou uma nova pergunta, já me apressei em responder:
- Não vou quebrar o nosso acordo. Estarei dentro da lei.
- Beleza – ele suspirou impaciente – Então vamos juntos.
- Nem pensar! Se sua irmã descobre que você está matando aula para me ajudar em algo desse tipo, não sobrará ninguém para contar a história.
- Mas ela...
- Isso não é negociável – interrompi – E fim de papo.
Sentei novamente ao seu lado e, apesar da sua cara de poucos amigos, começamos a pesquisar passagens aéreas.
...
O início de um plano (quase) perfeito, em três atos.
Ato 1 – Os Personagens.
Na quarta pela manhã, as coisas aconteceram muito rápido. Arrumei uma mochila com poucas coisas, pedi um táxi, deixei Gustavo na faculdade e segui para o aeroporto. Enquanto esperava a chamada de embarque, mandei uma mensagem para a minha sócia, explicando que passaria o dia ausente resolvendo alguns problemas. Geralmente não cobrávamos a presença um do outro na empresa, desde que não afetasse o andamento do trabalho, o que nunca foi o caso.
Durante o voo, procurava planejar tudo o que faria durante sete horas em território fluminense. Não teria tempo para investigações aprofundadas, por isso era necessário ir direto ao ponto, sem rodeios. A madrugada em claro, olhando fixamente para o painel de vidro enquanto o meu colega cedera ao sono no futon, já tinha me dado uma breve ideia do que faria para conseguir o que desejava.
O bafo quente que senti quando atravessei a porta do avião fez-me lembrar todas as chegadas a Salvador e, por um breve momento, me senti em casa. Já tinha viajado para o Rio de Janeiro diversas vezes, a maioria em reuniões de negócios, mas não tinha conhecimento pleno da cidade. Refiz o meu itinerário mentalmente e decidi alugar um carro ao invés de pagar um táxi. Não sabia o que podia acontecer, além de odiar dividir a minha intimidade com estranhos – com todo respeito aos taxistas:
- Por esse valor tem GPS também? – perguntei no guichê da empresa de aluguel.
- Tem sim – a moça respondeu – Para onde o senhor vai?
“E eu reclamando dos motoristas de táxi...”, tentei não revirar os olhos.
- Visitar um amigo e dar uma volta – respondi secamente.
- Desculpe a intromissão – ela percebeu – É só porque em alguns pontos o aparelho pode não ser totalmente confiável. Com essas obras para as Olimpíadas, muitas ruas foram modificadas e o trânsito às vezes fica caótico.
- Tudo bem, já estou acostumado com isso – agradeci pegando a chave.
- O senhor pode retirar o veículo ao lado do estacionamento, na saída. Aproveite.
Despedi-me com um sorriso amarelo. Se pudesse, explicaria a minha falta de humor depois de uma noite insone e uma viagem cansativa, mas estava focado em solucionar dilemas que surgiam na minha cabeça a cada segundo. Assim que afivelei o cinto de segurança, verifiquei o ar condicionado – a temperatura naquele dia estava especialmente elevada – e comecei a programar a minha rota no aparelho.
Como que por um castigo do cosmo por ter sido tão mal educado com a jovem do balcão, o tráfego estava realmente infernal. Precisei de algumas horas para chegar ao meu destino e, me sentindo recompensado por isso, encontrei uma vaga facilmente. Não estava tão próximo da escola de Lúcio e Vinícius, mas enxergava perfeitamente o portão de saída da mesma.
O jogo das hipóteses iniciado na noite anterior estava no seu auge. Após emitir o bilhete, eu e Gustavo começamos a fazer diversas suposições. “Se a maioria das fotos foi postada pela manhã, são do turno matutino”, “Se estamos na metade de março, o período de aulas está a todo vapor”. As informações poderiam não se cruzar, mas não existia outro arranjo que não fosse à base de tentativa e erro.
Também descartei repetir o que fiz com César. Não poderia manter um posto de vigia durante um longo período. Minha interpelação teria que ser curta e grossa. Fazer com que meu alvo aceitasse facilmente a minha proposta seria improvável, sequer cogitava que ele me concedesse um breve diálogo. Por outro lado, estava disposto a tudo pelo sucesso daquela viagem, não haveria uma segunda chance.
Optei pelo lado “crueldade” do plano e fiz o que achava mais garantido. Peguei o celular do falso perfil, abri o Snapchat e adicionei Vinícius, tal qual informado na descrição do seu Instagram. Com certo pesar, capturei um frame do fatídico vídeo e digitei para ele:
- “Sei de você e Júlio. Não comente com ninguém. Encontre-me depois da aula”.
Programei a duração da mensagem para dez segundos e enviei.
- Que Gustavo não saiba disso... – pensei em voz alta, imaginando a bronca que receberia pela atitude covarde.
O tom ameaçador poderia ser um tiro no pé ou uma estratégia vitoriosa. Só saberia o resultado depois que ele visualizasse. Poderia levar cinco minutos, meia hora, um dia... Tinha que contar com a sorte. Já passava de onze da manhã e, aos poucos, diversos carros começavam a se acercar. Os transportes escolares se enfileiravam, enquanto alguns pais conversavam do lado de fora.
Comecei a me dar conta de que ali seria um péssimo ambiente para conversar qualquer coisa com um indivíduo quase vinte anos mais novo que eu, sem levantar suspeitas. Pesquisei rapidamente alguns lugares nos arredores, e descobri um grande centro comercial no mesmo bairro. De repente, escutei o celular apitar. No meio daquele calor desumano, senti um frio na espinha:
- “Quem é você? Encontrar aonde?”.
O relógio acusava o tempo restante de visibilidade da resposta, enquanto decidia o que escrever:
- “Vá para a praça de alimentação do shopping aqui perto, assim que sair da escola. Não leve ninguém, eu vou saber” – prossegui com o clima pouco amistoso, torcendo para funcionar.
- “Em que lugar da praça de alimentação? Preciso de tempo para avisar a minha mãe que chegarei mais tarde.” – ele indagou, questionando se era o mesmo local que havia consultado minutos atrás.
- “Aviso quando comparecer. Não demore e, repito, vá sozinho”.
Escutei uma espécie de alarme tocar. Alguns motoristas começaram a abrir a porta de suas respectivas vans, como se estivessem preparados para o início da guerra. Uma avalanche de pessoas com a mesma roupa tomou conta da entrada da instituição. Ouvia buzinas hora chamando os alunos, hora impacientes com o engarrafamento, crianças felizes com o fim da aula, funcionários preocupados em manter a ordem... Seria uma tarefa impossível reconhece-lo no meio daquela multidão fardada.
Tracei um novo caminho e segui para o ponto combinado. O espaço também estava bastante movimentado, apesar de visivelmente mais tranquilo que o antecedente. Analisei por alto os restaurantes e optei por sentar-me em uma área central, uma espécie de zona neutra. Verificava o celular a cada segundo, sem saber se confiava na sua ingenuidade ou se temia pela minha segurança. Pouco mais de meia hora depois, recebi outra notificação:
- “Já cheguei, como vou te encontrar?”.
Olhei ao redor, sem denotar a sua presença:
- “Sente próximo ao restaurante Japonês do fundo”.
Sem resposta, passei a observar o fluxo de transeuntes e não tardei em encontrar aquele rosto vagamente familiar carregando uma mochila nas costas, claramente apreensivo com o que viria a seguir. A sigla “CELURJ” estampada em um brasão na camisa não negava o destino anterior. Segui o seu caminhar nervoso com o olhar e, quando atingiu uma boa distância, levantei-me.
Vinícius era alto para a sua idade, apesar de mal alcançar os meus ombros. O cabelo da moda exibindo um topete e os olhos claros contrastavam com o corpo delgado e o andar desengonçado procurando se desviar dos outros. Se o visse apenas por fotos, imaginaria um garoto que faz muito sucesso entre as mulheres. Era muito bonito e tudo indicava que o tempo só lhe faria bem.
De fato, o semblante amedrontado informava que estava ali sozinho, como fora exigido. Não o cumprimentei ou fiz qualquer gesto, apenas sentei na cadeira em frente. Ele parecia um pouco surpreso ao notar que não se tratava de nenhum colega ou por ser alguém bem mais velho. Fitava-o seriamente, enquanto repousava as mãos cruzadas na mesa, até ter o silêncio quebrado:
- Quanto você quer?
A pose intimidante que tentava impor discordava do melindre da sua voz. Mais uma vez, me senti mal pelo rumo tomado até ali.
- O que te faz pensar que eu quero dinheiro?
- Não posso demorar, diga logo.
- Fale você, vim aqui pra isso.
- Falar o que?
- Quero saber o que aconteceu, onde estavam, porque não denunciou Júlio?
- Que brincadeira é essa? Quem é você? - Vinícius começou a olhar para os lados, duvidando que eu estivesse ali por vontade própria.
- Sou alguém que quer ajudar.
- Não preciso de ajuda e não preciso denunciar ninguém – ergueu-se nervoso – Fique longe de mim, senão eu chamo a polícia!
Antes que tudo fosse por água abaixo, alcancei o seu braço e segurei com força, evitando que se afastasse:
- Se eu fosse você, me sentava e procurava me acalmar. Lembre-se que tenho algo muito importante e valioso. Não seria nada legal se isso caísse em mãos erradas – o adverti.
O motivo da minha visita parou por um instante e puxou a mão para se libertar, encarando-me com receio:
- Tá querendo me fazer de trouxa?
Minha vontade era responder que na verdade ele já tinha feito esse papel, e estava sustentando-o com louvor, mas me contive e procurei ser pacífico:
- Meu nome é Alessandro – prossegui, mantendo o nome oculto – Sou de São Paulo, e não viria até aqui só pelo prazer de enganar alguém. Acho que temos muito que conversar.
Ele retornou indeciso e sentou-se novamente, bastante desconfiado:
- O que está pretendendo fazer com aquela imagem? Se pensa que pode me subornar, eu já disse...
- Foi uma forma que encontrei de me aproximar de você – cortei a sua valentia – Acho que temos algumas semelhanças, já que ele fez o mesmo comigo.
A expressão perturbada do rapaz parecia depreciar a minha revelação.
- Não preciso de dinheiro. Seria um tanto estranho alguém que nunca viu na vida tocar nesse assunto, certo? – insisti.
- Porque devo acreditar no que está dizendo então?
- Porque aconteceu mesmo. Tenho mais o que fazer do que tentar convencer um adolescente que deveria estar em casa estudando, mas não cabe a mim confiar na veracidade.
Vinícius parecia estudar o que dizer, enquanto procurava uma abertura para conquista-lo.
- No dia que ele fez “isso”, outras pessoas também participaram, mas nunca tive como comprovar – admiti – Desde então, venho juntando provas para incrimina-los, e cheguei por uma eventualidade ao seu caso.
- Foi um encontro normal, não sucedeu nada demais – desconversou.
Tentei não mostrar desconforto com a reticência dele, e resolvi dar corda:
- Como você o conheceu?
O interrogado ficou pensativo, sem saber ao certo o que relatar.
- Não precisa dizer se não quiser – completei.
- Eu sou colega de sala do irmão dele.
“Por favor, diga que ele não está envolvido nisso”, pensei.
- Ele é muito inteligente, um crânio, e estudávamos juntos na biblioteca. O Lúcio é melhor em geografia, eu em história. Um sempre ajudava o outro. Decidimos então fazer um grupo de estudo, com outros quatro amigos. Rolava na casa dele, porque fica perto da escola, aqui do lado. Nossas mães não tinham o que temer, os Silveira são conhecidos, principalmente o pai dele. Júlio aparecia direto, procurava se enturmar, queria saber se estava tudo bem e mostrava-se bastante simpático.
Sem que ele notasse, acionei o gravador do celular e passei a registrar todo o testemunho:
- Quando aconteciam essas reuniões, frequentemente era o último a sair. Meu pai trabalha longe, e minha mãe não gosta que eu pegue transporte à noite. Então era muito comum participar dos jantares, ficar assistindo televisão, essas coisas habituais. Com o tempo, Júlio passou a se oferecer para me levar. Algumas vezes, porque estava de saída e era passagem, outras porque dizia que não tinha nada para fazer. Durante as caronas ele dizia que ficava feliz pelo irmão ter um excelente amigo, que eu também era estudioso e muito especial para a família dele.
Escutava todo o depoimento atento, sem querer interferir.
- Numa dessas viagens, ele começou a me elogiar mais que o normal. Falava sobre a minha beleza, que deveria arrancar muitos suspiros na escola e perguntou se eu estava namorando. Quando escutou a minha negativa, avisou que já estava na hora e que poderia me dar algumas dicas. Nesse dia, inclusive, ele colocou a mão na minha coxa e agradeci pela amizade, sem querer confirmar que tinha gostado daquilo...
À medida que a história avançava, a inocência do garoto desaparecia a níveis alarmantes:
- Mas uma hora rolou e assumi que foi bom. Ele me ensinou a beijar, a colocar a língua na boca do outro... Era muito experiente e sentia que aquilo valeria a pena para mim. Jurei guardar segredo sobre tudo o que fazíamos. Depois me disse que eu estava pronto para conhecer outras coisas ainda melhores, e que não iria me arrepender.
Nesse momento, Vinícius começou a enrubescer, me dando uma ideia do que estava por vir:
- Foi quando vocês... transaram?
- Ele é gente boa e atencioso, nunca me causou nenhum mal. E eu também queria.
Não respondi nada. Mais acostumado com o assunto, ele voltou a revelar detalhes picantes:
- Nesses encontros, passamos a ficar mais íntimos. Em uma ocasião, ele desabotoou a calça e mostrou o pau duro. Disse que ficava assim quando estava perto de mim e me pediu para pegar. Eu gostei, era uma sensação estranha, um calor diferente. Depois, explicou como deveria ficar mexendo e avisou que a segunda parte não poderia fazer no carro, porque era perigoso, mas prometeu ser um bom professor – sua voz alternava entre a naturalidade e a tensão – Estava empolgado, nunca tinha conversado sobre isso com ninguém. Durante a semana recebia fotos dele pelado, dizendo que não via a hora de mostrar ao vivo, que seria muito divertido e me tornaria um homem de verdade.
Meu coração palpitava nervoso, prevendo a conclusão.
- Sabia que não gostava de meninas, mas nunca tive nenhuma aproximação com meninos, e toda vez que aprendia algo, queria mais e mais. Ele finalmente marcou de me pegar um dia e disse que tinha reservado um lugar especial, mas que teria que me esconder porque poderiam desconfiar. Não sabia nada sobre sexo, nada mesmo, e finalmente teria acesso. Quando chegamos, contou sobre uma brincadeira que gostava de fazer com cordas e que eu iria adorar. Mostrou o quarto, disse que ali estaríamos seguros e ninguém incomodaria. E então ocorreu o que está registrado na foto.
- Você gostou?
- Não sabia como era. Ele estava impaciente e afobado. Não entendo como as pessoas podem gostar tanto disso. É doloroso e machuca. Quando acabou, disse que a primeira vez era assim mesmo e que tinha me comportado muito bem.
Cada frase proferida era um soco forte no meu estômago. Júlio entendeu a candura exacerbada daquele garoto e soube tirar muito proveito dela. Para piorar, Vinícius não tinha a mínima ideia da magnitude da questão.
- Você gosta dele, não é?
- Acho que sim, ele é legal comigo. Disse que queria repetir, mas não nos falamos desde aquela data.
Era hora de acabar com o conto de fadas, aquela declaração estava me angustiando:
- Vinícius... – suspirei – Vou tentar explicar da melhor forma, sem floreios. O que aconteceu foi errado de todas as maneiras possíveis. Compreendo que esteja se descobrindo, que esteja curioso em como os adultos interagem e é até saudável que você vivencie isso. Mas o que Júlio fez foi criminoso, entende?
- Como assim?
- Sexo não é assim. É bom, é gostoso, faz a gente querer mais, dá prazer... Não foi bem o que você sentiu, certo?
Ele ficou novamente cabisbaixo, concordando.
- Queria encontrar uma palavra menos forte para falar, mas desconheço – vacilei – Ele... Ele te violentou! Amarrou você não pela brincadeira, mas porque sabia que iria te machucar e quis fazer à força. Levou escondido porque sabia que era errado, inventou essa história de ensinar para se aproveitar do seu sentimento. Tô te falando isso porque preciso que você entenda o problema em que se envolveu. Ninguém precisa instruir nada pra gente, quando gostamos de alguém, aprendemos de forma natural e vamos aprimorando os nossos gostos.
Sabia que, em parte, estava fantasiando um pouco a iniciação sexual da grande maioria, mas ele já tinha sofrido demais com a realidade.
- Onde... – ele quase soluçou – Onde conseguiu essa foto?
- Já tinha visto alguma outra vez?
Ele negou com a cabeça. Continuei:
- Não é uma foto. No dia que Júlio fez isso, ele escondeu uma câmera ou o celular na mochila, não sei ao certo, e gravou tudo. Do início ao fim. Depois mostrou para os amigos.
O silêncio reinou. A fisionomia pálida do menino parecia querer que o mundo acabasse diante daquele novo fato. Achava que ele soubesse, realmente achava.
- Como você descobriu?
- Como te disse, ele fez o mesmo comigo. E também sofri, machucou. Mas depois resolvi investigar e constatei que ele também agiu assim com outras pessoas, e você é uma delas.
- Outras pessoas? – Vinícius estava surpreso.
- E pelo visto ele não pretende parar. Peço desculpas pela maneira como te procurei. Ninguém tem esse vídeo, pode ficar tranquilo, mas precisamos denuncia-lo, e creio que você seja essencial para isso.
- Não! – apressou-se em responder – Meu pai não pode sonhar com essa história. Se ele souber, vai me matar.
- Não é errado ser gay. Ninguém pode te julgar pelas suas características.
- Ele vai me expulsar de casa, não tenho dúvidas.
- Olha, podemos tentar fazer uma denúncia anônima, devem existir outras maneiras. Preciso que você pense bem a respeito. Não vou te forçar a nada, é uma decisão sua. Só me prometa que vai esquecer esse cara! Você é jovem, ainda vai conhecer muita gente melhor pela frente, eu garanto!
Pela primeira vez desde que nos encontramos, ele esboçou um sorriso, e aquele gesto foi um enorme alívio para mim.
- Amigos? – estendi a mão.
- Combinado – ele apertou com firmeza.
Depois que o clima ficou mais calmo, convidei-o para fazer um lanche. Entre beliscar uma batata frita e uma mordida no hambúrguer, ele me falou onde tudo aconteceu. Apesar de entrar escondido (pasmem, dentro do porta-malas do carro), disse lembrar-se perfeitamente de um folheto do estabelecimento em cima do frigobar. A cor vibrante chamara atenção enquanto se despia ao lado da cama. Também disse que nunca avistou o deputado na residência, e seu colega contou uma vez que o pai passava a maior parte do tempo em Brasília. Entendia cada frase como pequenas pistas sendo expostas e sabia que teria muito trabalho para organizar a pesquisa.
Quando terminamos, eram quase três horas da tarde. Agradeci a sinceridade e ele a recepção compreensiva sobre o tema. Ofereci uma carona, mas ele preferiu pegar um táxi, o que me pareceu ser uma ideia mais racional. Combinamos de continuar a amadurecer o assunto pelo Snapchat e me despedi. O papo revelou uma face de Júlio que nenhuma máscara teria capacidade de sustentar. Ainda assim não estava satisfeito, precisava de outras respostas e teria algumas horas preciosas para isso.
...
Ato 2 – O Cenário.
Pesquisei na internet a localização do motel e cadastrei o endereço no mapa. O lugar era bem distante da moradia dos envolvidos, dando a entender que Júlio sabia bem o que estava fazendo. Ficava em uma rua escondida, pouco movimentada e a fachada revelava com discrição o nome do motel: Himerus.
Apesar da distância, estava longe de ser um buraco qualquer. O aspecto clean e moderno me surpreendeu bastante. Não duvidei que o espaço atendesse grandes figurões que quisessem manter relações às escondidas. Parei ao lado de uma cabine e uma moça elegante veio me recepcionar. Pedi por um quarto comum, apenas por duas horas, que era o mínimo exigido.
- Sozinho ou chegará outro veículo? Temos garagens duplas também – ela estranhou a ausência de um acompanhante.
- Estou só mesmo. Preciso relaxar um pouco antes de ir para o aeroporto.
- Tudo bem – sorriu – Bom descanso.
Fiquei imaginando a desculpa que Júlio utilizara para entrar nas mesmas circunstâncias. O motel era grande, com duas ruas fazendo uma espécie de “U” em volta do prédio principal, e alguns outros quartos mais afastados na curva, provavelmente de luxo. A guarita que acabara de atravessar possivelmente fazia parte de um anexo que servia como entrada e saída.
Encontrei o número do apartamento, estacionei e desci a porta da garagem, que obstruía apenas a visão do carro, com uma lacuna visível do chão e do teto. Pelo horário, o local estava praticamente vazio. Uma escada dava acesso ao cômodo, que era relativamente espaçoso para o que eles consideravam simples.
“Cama, ok; Banheiro, ok; Frigobar, ok...”, olhava ao redor com atenção. Liguei a televisão e logo um som de gemidos tomou conta do ambiente, revelando um desses típicos filmes pornôs de baixa qualidade. Afastei a cortina ao lado da cama e descobri uma janela escura que ficava acima da garagem. Abri e olhei discretamente a rua de paralelepípedos do empreendimento. No início e no fim da pequena avenida, duas câmeras garantiam a segurança dos hóspedes. Imaginei que o mesmo deveria se repetir na via perpendicular.
Fechei a ventana e deitei na cama, pensando no que fazer. Vinícius não participaria da empreitada por temor aos pais. Eu não conseguiria arrastar Júlio para São Paulo para dar o bote. As informações recebidas ao longo do dia eram diversas, mas não encontrava uma maneira ideal de agrega-las. Mandei uma mensagem para Gustavo, perguntando se poderíamos nos reunir naquela noite. O próximo passo seria decisivo.
Após a confirmação, fiquei algumas horas me distraindo com os folhetos que a vítima relatara. “Discrição, prazer e total privacidade em um só lugar”, não escondi a risada com o enunciado ridículo do material. “Privacidade...”, comecei a martelar aquela palavra na minha mente e acessei outras informações guardadas com cuidado.
“Ele disse que poderíamos repetir mais vezes”, “Paguei um quarto de motel pra nada? Vai levar pica sim!”, “Precisava entrar escondido, ninguém podia saber”, “Esse já tá caçado, hoje é o dia do abate...”, cruzava os fatos em retrospectiva, cavando em busca de uma ideia perspicaz e satisfatória. E ela chegou mais rápido do que esperava.
Li todas as informações do folheto e não encontrei o que precisava. Levantei de súbito e abri novamente a janela. Não dava para enxergar com clareza. Peguei o celular e ampliei o zoom da câmera. Tirei algumas fotos, e aumentei mais ainda, mas o desfoque não permitia ter certeza do conteúdo.
Pedi a conta rapidamente e assim que paguei, desci para a garagem. Tentei encontrar uma posição melhor entre o portão e a brecha para a rua, sem sucesso. Dei partida no carro e manobrei para fazer a volta no terreno. Quando me aproximei da curva, olhei para os lados e desliguei o veículo. Vislumbrei por cima do vidro e confirmei que havia sim algo potencialmente valioso ali. Peguei novamente o celular e comecei a fotografar a pequena placa ao lado da câmera de segurança, que revelava a empresa prestadora do serviço. Em seguida, mirei o retrovisor e constatei que ainda estava sozinho. Girei a chave mais uma vez e continuei o trajeto.
Na saída, outras duas câmeras registravam a movimentação. Entreguei o comprovante do recebimento e me retirei. Precisava confiar que aquela ideia louca que surgira me renderia um grande trunfo. Seria perigoso, é verdade, mas aquela era uma palavra que precisava abolir de vez do meu cotidiano. Pelo menos naquela situação.
...
Ato 3 – A Direção.
Por mais geek que seja, papel e caneta à mão são sempre essenciais. Adoro novidades tecnológicas de todo o tipo, mas escrever o que me vem à mente é imprescindível. No meu caso, aquele guardanapo rabiscado durante o voo era de extrema importância. A intolerância da aeromoça em me trazer mais um papel pela terceira vez, me obrigou a diminuir o tamanho da letra. Estava empolgado com a possibilidade, mesmo que precisasse de reforço extra.
Avisei para o meu cúmplice da minha chegada a São Paulo assim que desembarquei. Ele estava na empresa, aguardando uma carona de Juliana. Em seguida, liguei para outro contato e marquei um encontro, sem querer entrar em maiores detalhes e provocar algum tipo de estranhamento. Meu corpo denunciava uma enorme exaustão, mas não conseguiria dormir sem definir o andamento do plano.
Pedi algo para comer e fiquei aguardando os dois convidados. Por sorte, Gustavo foi o primeiro. Mal nos cumprimentamos e me antecipei em solicitar uma rápida colaboração:
- Teremos companhia, mas quando ele chegar, deixe que eu conto toda a história. Você vai entender o que estou pretendendo, ok?
- Como assim? Que viagem é essa?
- Só faz isso que te disse.
O interfone tocou, encurtando ainda mais a explicação. Pouco depois de autorizar a entrada, soou novamente, anunciando a entrega do jantar. Abri a porta e fiquei aguardando a chegada do elevador, percebendo que, sentado no sofá, meu parceiro esticava a cabeça para averiguar de quem se tratava:
- Flavinho! – dei um rápido abraço assim que atravessou o hall – Desculpa te avisar em cima da hora, obrigado por vir.
- Que nada, não tinha nada programado depois do trabalho.
- Entra aí, fica à vontade. Só vou pagar a comida chinesa que tá subindo e me junto a vocês.
Ele pareceu surpreso com o uso do plural e caminhou curioso em saber a identidade do terceiro elemento. Alguns minutos depois, voltei para a sala com duas sacolas e comecei a abrir as embalagens em cima da mesa:
- Guga, esse é o Flávio, trabalha lá com a gente há um tempão e é de extrema confiança – apontei para um – Esse é o Gustavo, irmão da Juliana – e voltei para apresentar o outro.
- Acho que já te vi na empresa algumas vezes – meu funcionário alertou.
- É, ele vive atazanando a sua chefa nas horas vagas – brinquei – Rolinho primavera? – ofereci, chamando ambos para se juntarem a mim.
Gustavo pouco falava. Não sabia se havia algo de timidez ou estava seguindo o meu plano à risca. Enquanto saboreavam o prato, resolvi adiantar o assunto:
- Então... – me dirigi a Flávio – Você sabe que às vezes fico pedindo algumas coisas e isso enche o saco, mas dessa vez é por uma causa mais nobre.
- Para estar bancando o jantar deve ser mesmo – riu.
- Não queria falar sobre isso na empresa porque é um assunto muito delicado, e precisa ficar entre nós três.
- Segredo de estado – ele fez um sinal que manteria a boca fechada – Manda! – completou.
- O Gustavo veio me pedir uma ajuda sobre como proceder em uma situação.
Meu colega arregalou os olhos, sem imaginar aonde eu queria chegar.
- Ele tem um amigo no Rio de Janeiro – prossegui – Amigo de infância, gente próxima – fitei a sua reação de assombro – Que está numa grande enrascada.
Os olhos verdes do meu braço direito permaneciam atentos.
- Descobrimos que o irmão dele foi violentado. E já para alardear que o buraco é mais embaixo, o garoto é menor de idade e o cara que estuprou é filho de um político poderoso.
- Puta merda... Já denunciaram para a polícia?
- Eu disse que era o que deveríamos fazer, mas Augusto...
- Não é tão fácil – me apressei em responder – Existem alguns pormenores e o principal deles é que a vítima não quer que os seus pais descubram que ele é gay.
- O irmão não sabe?
- Não. Eu soube por outra pessoa – Gustavo entrou no embalo da farsa.
- E agora? – ele parecia querer entender o propósito.
- Bom, já analisei algumas suposições arriscadas com o Guga, mas hoje à tarde eu tive uma ideia que pode ser uma boa solução. A questão é que sua ajuda para dar certo será fundamental.
- Se estiver ao meu alcance...
- Tenho certeza que está – disse seriamente – Estou decidido a mandar esse filho da puta para a cadeia e quero que ele apodreça lá.
(continua)
...
Oi pessoal! Estou no meio de um turbilhão no trabalho, com diversos projetos acontecendo ao mesmo tempo, mas precisava postar logo esse capítulo! Drica Telles (VCMEDS), pois é, ai de nós com gente desse tipo circulando por aí. A vingança sempre tem dois lados e há um limite muito tênue entre o certo e o errado. Lucassh, viu sim! Não podia deixar de mostrar. Ele riu bastante! E sim, essa temporada carioca reserva grandes surpresas. Irish, não podia deixar de citar algo dentro do nosso triste cenário político. A coisa tá feia! Jeff08, que bom que segue empolgado! Isztvan, fico feliz pelos elogios! Mais uma vez obrigado por todos os votos e comentários. No fim de semana tem mais! Um grande abraço!