CAPÍTULO 1 - Meu melhor amigo
Eu havia chegado mais cedo na aula de economia, mas parece que boa parte da turma tinha feito o mesmo e com a mesma finalidade: fazer a tarefa atrasada. Faltando pouco mais de quinze minutos para o começo da aula Miguel chega desfilando, para estrategicamente, olha para a cara de cada ser naquela sala como se eles não fossem importantes, olhou para cadeira na sua frente com uma feição de espanto ou surpresa e se sentou de forma performática. Miguel suspirou e disse:
– Me sinto a nova Laura! – Esperou alguns segundos. – Aliás, alguém sabe porque ela não chegou?
Neguei com a cabeça. Ele me olhou como se tivesse incrédulo.
- Maurício, assim não tem como te defender viu gata? De onde você tirou que oligopólio é um mercado onde uma empresa só domina? Francamente...
Ele então me tirou a folha, rasgou-a e começou a mexer em sua bolsa enquanto eu estava sem fala vendo o trabalho que eu estava a meia hora fazendo ser rasgado.
– Toma! Fiz essa versão lite do meu trabalho para caso alguém precisasse. – Ele disse me entregando um trabalho onde só faltava meu nome e matrícula. – Ah, não precisa agradecer.
Ele saiu para fora da sala e só voltou quando a professora iniciava a aula, entrou de supetão e começou a falar alto sobre a mulher da secretaria do curso, tampando a voz da professora.
– Estou horrorizada! Fran-ca-mente olha... Alguém por gentileza traga um livro de boas maneiras para aquela mulher da secretaria e aproveita e ensina que não se usa aquele carnaval de cores num look.
Sentou-se e começou a copiar a matéria.
No intervalo minha namorada veio querendo monopolizar minha atenção, e essa é umas das coisas mais chatas quando você quer conversar com as pessoas. Tentei deixa-la de lado.
– E aí Miguel, o que houve na secretaria? – Eu disse me lembrando da situação na sala de aula.
– Nem me lembre Murilo! Aquela velha homofóbica me olhou de cima abaixo e não quis me atender! Fechei o tempo com ela pois se há duas coisas que eu não tenho é obrigação e paciência com uma pessoa que está começando.
Ri da citação de Susana Vieira, uma coisa bastante comum vinda do Miguel que passava boa parte do tempo zoando a Gretchen, como se ela fosse uma rainha ou coisa do tipo e também reverenciando Susana Vieira.
– Ah, e obrigado pela ajuda no trabalho! – Eu disse meio envergonhado por lembrar que era algo recorrente ele fazer ‘trabalhos lites’ como ele queria chamar, que na verdade eram trabalhos que quase sempre levavam notas máximas e que eu sabia que ele fazia para mim.
– Ai, ‘magina’ mulher! Tava lá pronto! – Ele disse enquanto saía para a lanchonete.
No caminho ele foi empurrado por um aluno de um outro curso que gritou “sai da frente viadinho”, Miguel caiu imediatamente um tombo surdo no chão, algumas pessoas olharam indignadas. Ele ficou alguns segundos cabisbaixo, mas depois se levantou e como se nada tivesse acontecido saiu em direção a cantina.
Minutos mais tarde voltei para a aula, onde Miguel não estava, mas talvez estivesse por aí falando de bolsas da Chanel ou de como o cabelo daquela atriz do filme de ontem estava mal alisado. Fui ao banheiro, Miguel estava lá e analisava no espelho um hematoma na altura da cintura. Quando me viu entrando saiu em direção a um dos boxes e eu percebi que ele estava chorando, mas não era pela dor física, eu sabia que o que o deixava mais mal era o ódio gratuito, todavia eu sabia disso só agora e nunca havia imaginado antes que algo o abalasse.
Voltei para a aula e em alguns minutos o imponente e divertido Miguel estava de volta e além de mim ninguém sabia que aquilo tudo tinha deixado ele mal, criado marcas maiores que a marca física. Ele não comentou nada comigo nos dias que se passaram.
Eu o via diariamente é claro, estávamos na mesma república, onde só haviam homens mas ali todos os respeitavam e admiravam sua inteligência, e está aí algo que eu não falei: Miguel é um gênio! Tipo, extremamente inteligente a ponto de saber bastante sobre tudo! Você pode perguntar sobre criptografia, hacking, hardware, regras no uso do português, efeitos de remédios no organismo e por aí vai... Ele também lê um livro quase todo dia (ele lê média de quatro ou cinco livros por semana quando tem tempo).
O fim de semana chegou e Sabrina, a minha namorada, estava me enchendo para sair com ela e já era a quarta vez que eu dizia que não queria ir no shopping ajudá-la a escolher roupas, mas no fim fui obrigado.
Por sorte encontramos Miguel e Laura por lá e eles acabaram nos acompanhando nas lojas onde Miguel só murmurava coisas como “o vestido azul”, “não, não! Aquele sapato e não essa sandália”, “gata, a moda das gladiadoras já passou há anos! Só daria certo se seu boy tivesse fetiche por isso”, “não, eu estava brincando, jamais compre roupas visando namorado”. Ele não falou muito comigo e no fim parece que me evitava.
– Ai Mi, tá na hora de você arrumar um namorado e aí podemos sair de casal! Seria você e o seu e eu e o Mauricio. – Sabrina disse sorridente.
Miguel pareceu desconcertado por alguns segundos, mas depois brincou.
– O que eu quero não me quer e os que me querem... Bom, ninguém me quer! – Disse como se não se importasse – A cada cem boys que aparecem na minha vida, cento e vinte me odeiam.
Depois saiu mexendo nos cabides da loja procurando algo para ele mesmo, acabou comprando uma calça dizendo que realçava a pouca bunda que tinha e um sapato. Eu achava engraçado que por mais feminino que ele fosse, não costumava usar roupas femininas, fora algumas exceções que tenho que admitir que ficava legal.
Combinamos de irmos todos ao cinema, mas Miguel inventou de ir ao banheiro e não voltou mais, talvez tivesse ido embora.
Quase ninguém sabe da vida dele quanto eu, mas também não sei muita coisa como quando ele ficou com a primeira pessoa, mas ele sabia quando e com quem eu tinha ficado pela primeira fez mesmo que eu não tivesse lhe contado na época. Isso porque na nossa escola havia um certo grupo que movimentava toda a fofoca e falácias do colégio e Miguel geralmente gerenciava quem seria a pauta das fofocas. Se quisesse acabar com a vida de alguém ou salvar sua reputação era só falar com ele. Uma vez uma garota espalhou que eu tinha o pênis pequeno, foi constrangedor e eu fiquei muito chateado por não ser verdade e também porque ela nem tinha visto nada, fui obrigado a passar pela humilhação de pedir para Miguel parar com as conversas. Então Miguel espalhou um boato de que a tal garota estava mentindo porque levou um fora, espalhou que ela tinha bafo e beijava mal e de queda conseguiu algumas fotos onde ela estava horrível. Virou assunto por semanas é claro.
Hoje sei que era assim que ele acabava tirando da boca das pessoas algumas mentiras que divulgavam sobre ele. Uma vez por exemplo saíram rumores de que ele estava transando com os professores para manter as notas altas, o que era obviamente mentira pois Miguel tirava nota máxima brincando. Aos poucos, nas minhas reflexões eu entendia o que ele passava e como fingia tão bem que estava tudo bem mesmo sofrendo, mas o quanto de sofrimento existia ali?