Folhas Secas
Capítulo 8 – Lapsos de Tormentas.
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Abril
Como o jovem havia dito a Igor, Cristóvão tornava-se presente e frequente no Asilo de São Leopoldo, normalmente aparecia dia sim e dia não ou apenas em dois dias da semana, Igor fazia o possível para não estar junto do garoto no mesmo cubículo, afastando-se um pouco de Hilda, que percebia para sua tristeza. Mas talvez pudesse mudar num certo dia.
“Dona Hilda, acorda. Tenho que mudar sua posição”, avisava Igor em cochicho acordando Hilda em seu leito.
“Anhh! Ah, Igorrr...”, gemia Hilda de seu sono.
“Por que tem que mudar a posição dela?”, questionava Cristóvão com uma caixinha de achocolatado da janela.
“Tenho que mudar a posição do acamado de duas em duas horas, senão se formam escaras, úlceras de pressão, feridas abertas devido a falta de circulação de sangue.”, explicava Igor categórico enquanto cuidadosamente virava Hilda.
“Ah sim.”, suspirou Cristóvão só observando.
Igor colocou Hilda de costas para parede esquerda, colocou um travesseiro entre seus joelhos e cotovelos, deixando-a mais confortável possível. Terminado isso, apenas evitou olhar para Cristóvão, e deu um aviso prévio.
“Vou indo agora, Hilda, tenho que fazer umas coisas.”, inventou para sair dali.
“Igor, por que você e Cristóvão não se gostam?”, indagou Hilda de olhosos fechados na cama.
A pergunta pegou aqueles dois de surpresa, ficaram atordoados em silêncio por segundos, Cristóvão olhava para Igor como mandasse que ele respondesse e vice-versa. Mas acabou sobrando para Igor no final.
“Bom...”, dizia Igor nervoso. “É que eu acho melhor deixar os dois juntos sem atrapalhar, já que é família. “, inventou Igor tentando conceber o quanto sua mentira seria convivente.
“bobagem”, sussurrou Hilda ainda sonolenta.
Cristóvão riu da situação, Igor apenas estranhava de tão nervoso. Igor tentou constatar se Hilda voltou a dormir para realmente ir embora.
“Dormiu?”, perguntou Cristóvão atrás de Igor.
“Sim.”, respondeu lacônico. “Tenho que ir”, avisou ele se movimentando.
“Espera!”, chamou Cristóvão interferindo.
“Que é moleque?“, Cochichou Igor irritadiço.
Cristóvão sorriu para Igor, sugava o canudinho com voracidade movimentando seus lábios vermelhos, como se tivesse hipnotizando Igor, este apenas confuso e irritado porque o jovem demorava para responder, foi quando terminou seu pequeno lanche.
“Coloca no lixo pra mim por favor?”, falava com uma voz cínica entregando com a mão a caixinha para que Igor pegasse.
“Pára de brincadeira comigo, garoto! “, murmurou Igor exasperado e descendo o braço de Cristóvão com sua mão, assim se aproximando dele. “Eu não tenho tempo para esse tipo de coisa, eu tenho um trabalho aqui.”, ressaltou ele com um olhar fulminante.
“Tá, bastava um não.“, disse Cristóvão levantando os braços. “Eu pedi com educação.”, sussurrou ele indo para perto da porta jogando na lixeira, passando por Igor.
Cristóvão começara a provocar Igor por atenção e diversão, e Igor sabia disso, só que ele nada podia fazer, pensava apenas em aprender a conviver.
“Você não tem o que fazer, hein?”, indagava Igor enfurecido. “Vai pra sua perturbar sua mãe, pai, seja lá quem mais não te suporte!”, dizia ele insensivelmente.
Estranhamente Cristóvão ficou calado diante do dito, talvez Igor tivesse tocado em algo que afetasse Cristóvão, este que ficou um tanto cabisbaixo pensando nas coisas proferidas por Igor. E Igor percebeu o que fez, pela primeira vez viu e sentiu que Cristóvão não era um garoto soturno e irritante, pois também era muito triste.
“Cris...”, arcava Igor quase se aproximando de Cristóvão.
“Não.”, interrompeu Cristóvão. “Eu não tenho.”, disse ele levantando a cabeça e mostrando um olhar vazio para Igor, mas penetrante, causando atordoamento. “Minha mãe, se é que posso chamar de mãe”, confessou o garoto de modo sarcástico, mas triste. “Prefere o trabalho a mim, quem sabe até um Coco Chanel também. “, falava ainda passando Igor. “E meu pai é um ser ausente, nunca aparece, parece que se casou com uma amante e vive no exterior, só uma pensão todo mês para minha mãe. Tenho o menor interesse nele.”, disse o garoto firmemente enquanto Igor se virava para olhá-lo. “Satisfeito?”, indagou com cuspe na lixeira.
Igor não sabia o que dizer diante do desabafo de Cristóvão, era triste, não quanto não ter pais talvez para ele, mas sentiu que era realmente um garoto perdido na vida, e teve empatia, uma parte de si quis ajudá-lo. Entretanto, seria uma missão árdua e difícil atravessar a muralha de Cristóvão, este que mostrava sempre de pé diante de todos.
“Bem, tá minha hora. Até”, avisou Cristóvão se virando, acenou, tocou na fechadura para abrir a porta, até ser interrompido.
“Eu acho que diante disso, você devia tentar conhecer sua vó de verdade. “, sugeriu Igor subitamente para surpresa de Cristóvão.
Cristóvão ainda de costas para Igor, sentia-se abalado pela opinião de Igor, ele mal conhecia a avó realmente, mesmo entre as visitas recentes, mal falava e ficava menos de uma hora só para atormentar Igor. Pensou então que não estava sendo uma boa pessoa usando sua vó velha e doente, ainda mais esperando notícias de mortes no local. Ele pensou e repensou ali, segurando a fechadura, foi quando acordou, e voltou. Abriu, virou-se pisando para fora, onde visualizou Igor parado e com um olhar singelo e sorriu para ele, mas não era comumente sorriso cínico de Cristóvão, era um sorriso breve, apenas com os lábios e um olhar doce, raro para ele mesmo.
“Até logo, Igor.”, foi o que disse se despedindo e fechando a porta.
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Naquela mesma noite, depois de seu expediente de trabalho, Igor voltava comumente para casa de ônibus, com seu jantar, entrou, tirou seu uniforme e tomou um banho, mas sua cabeça sadicamente só pensava em Cristóvão e o que poderia ter mais do que ele aparentava, pensar no garoto começava a incomoda-lo, não queria supor nenhuma resposta equivocadamente, saiu de um longo banho, vestiu apenas uma cueca, e quando preparava seu jantar no micro-ondas, recebeu uma ligação em seu celular.
‘Trim Trim!”
Prontamente Igor atendeu e teve uma adorável surpresa, para seu deleite.
“Aaaai, migoo quanto tempo!”, falava de modo escândaloso sua amiga de infância.
“Ahaha nem faz tanto tempo, 3 meses só.”, replicou Igor rindo.
“Ah, mas você sabe que é muito pra mim.”, disse ela do outro lado da linha.
“Mas por que tá me ligando Pâmela? “, inquiriu Igor desconfiado.
“Agora não posso ligar para meus amigos, não?”, indagou ela indignada. “Já vou te dar uma voadora em tu”, ameaçou-o.
“Tá, tá, claro que pode. “, Respondeu Igor sorrindo. “Mas sei que você não dá ponto sem nó, Pâmela. “
“Então, Igor, vim te contar uns bafos”, disse Pâmela se contendo. “Eu vou passar uns dias aí com Ivan, aí que tudo!”, revelou Pâmela animadíssima.
“Sério?”, Igor expressou desacreditado. “Quando?”, indagou.
“Semana santa, né. Tempo livre do Ivan.”, respondeu ela. “Só vou ter que passar uns dias com a família e fazer a linha freira, moça de família recatada e ir para missa, aí que horror, vou virar irmã de convento”, disse se lamentando.
“Ahaha só podia ser.”, comentou Igor alegre. “Sei que vai passar muito bem por este teste.”, comentou Igor ironicamente.
“Ah, migo. Já tá difícil pra mim que nasci babadeira, sabe que eu já sambava desde bebê com os chocalhos dos outros, isso pra mim é danos morais”, disse ela elevando a voz, Igor riu. “Mas não é só isso não. “, expressou Pâmela fazendo um suspense.
“O quê?”, perguntou Igor curioso.
“Ele botou anel no meu dedo, vamo casar! Finalmente vou usar véu e grinalda”, disse Pâmela se vangloriando.
“Não acredito!”, esbravejou Igor pelo celular incrédulo.
“Simmmm Aaaaai!!”, seguiu-se de uns gritos de Pâmela. “Vou casar na igreja, ainda nem acredito, as imimigas vão latir lá de baixo”, comentava ela eufórica.
“Meus parabéns, quero ser padrinho, viu?”, inquiria Igor feliz pela amiga.
Igor realmente estava feliz por sua amiga Pâmela, esta que sempre teve relacionamentos conturbados, muitos apenas a tratavam como apenas carne, ela realmente amava seu atual namorado, Ivan, que a acolheu em seu coração, demonstrando que ela não estava sozinha novamente. Igor sabendo disso se emocionou, seus olhos marejavam timidamente, não conseguia expressar tamanha alegria, sua amiga falava e falava no celular, mas foi por esses pensamentos de achar a pessoa certa, que Cristóvão veio em sua cabeça em uma estranha aleatoriedade, fluía em sua mente o sorriso e olhar doce daquele garoto sombrio e irritante, por um instante se sentiu bem com isso, depois caiu em si, tentando esvair tal coisa de sua mente.
“Me chama que vou, aí”, dizia Pâmela ainda eufórica. “Vamos todas juntas para night, você vai ver, noite de solteira vai ser cheia de boys”, comentava ela ainda quando percebeu o estranho silêncio do amigo. “Igor, tá me ouvindo? “, indagou ela acordando Igor de seu transe.
“Sim, estou.”, respondeu Igor rapidamente um tanto atrapalhado. “Tava só viajando aqui com esse negócio de casamento. “, falou ele incoerentemente.
“Ah migo, pode ir falando quem é o boy que te agarrou de jeito!?”, disse ela com entonação no último termo.
“Que isso? Não tem ninguém não.”, negava Igor prontamente.
“Eu te conheço, Igor! “, disse ela firmemente. “Pode ir falando já! Quem é essa pica de ouro?”, disse ela indiscreta.
“Não é alguém nesse sentido.”, disse Igor se rendendo. “É só um garoto que é parente de uma interna minha lá da casa de repouso, me perturba que só e não me deixa trabalhar. “, disse ele omitindo fatos afim que Pâmela aceitasse.
“Casamento e garoto. Humm”, comentou ela desacreditada. “Te peguei! “, falou desaforada.
“Ah, não tenho tempo para isso, Tchau, boa noite. Nós vemos mesmo, até “, disse Igor se despedindo não querendo prolongar o assunto que ele não queria pensar.
Pâmela até tentou interromper depois de ter a ligação encerrada na cara, mas Igor realmente não queria falar algo que nem ele mesmo entendia, o garoto que entrava na sua mente de modo repentino, fazia-o temer, pensava que não queria estar perto dele não apenas por achá-lo insuportável, mas poderia ter algo mais. Igor dormiu naquela noite com esses pensamentos, onde teria grandes momentos ainda para refletir mais adiante.
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Em sua casa, como era de se previr, Cristóvão estava em frente ao seu PC, mas não jogava ou conversava com algum amigo virtual, apenas zapeava por horas a fio em redes sociais. O garoto estava muito introspectivo, desejava apenas não pensar e esquecer todo resto, era uma melancolia crônica de seu ser, ele sabia muito bem de seus problemas com seus pais, mas a sugestão de Igor, fez-o rever toda suas atitudes em sua pouca trajetória de vida, tão jovem e já tão desgostoso da vida. Em seu desdém pela vida, desejou nos mais profundos cantos da sua mente, onde não poderia se esconder, se obscurecer, queria sentir-se vivo e de bem com a vida, sem aquela tristeza que o perturbava, foi vendo sua rede social que viu aleatoriamente uma imagem de médicos e fatidicamente lembrou de Igor, e percebeu que gostava não apenas de sua atenção, indagou-se nervosamente de porquê tanto iria para aquele asilo, sem respostas, sentiu-se mal por não ser por sua avó, e se houvesse outro motivo que não fosse egoísta e escuso, ele esqueceria.
“Eu sou bosta mesmo.”, disse ele a si mesmo.
“Trimm Trimmm”
Seu celular tocava, foi quando visualizou se tratar de Cauã, lembrou-se que contara a ele sobre suas visitas frequentes ao asilo, e atendeu sem problema.
“Fala”, mandou ele ríspido ainda diante da tela de seu computador.
“Cara, o que tá acontecendo com você? Tem a ver com o asilo e sua vó?”, perguntava Cauã intrigado. “Nem me responde faz dois dias.”, reclamava.
“Ah Cauã, não começa suas viadagens, não!”, interrompia Cristóvão impaciente com as reclamações do amigo.
“Então só sirvo de saco de pancadas tua, cara”, indagava Cauã chateado. “Nem se abre mais comigo, fica difícil manter amizade.”
“Chega, tá?”, esbravejou Cristóvão colocando a mão sobre o rosto. “Cara, eu só não tô bem, dá pra entender?”, inquiriu Cristóvão.
“Cara, você nunca tá bem.”, comentou Cauã deixando Cristóvão reflexivo.
Na sua razão, Cauã estava certo, Cristóvão nunca se sentira bem, em sua vida achava que só a morte poderia lhe oferecer um certo bem estar, acalmá-lo frente suas dores. Mas ainda tinha dúvidas sobre isso, especialmente nos últimos dias.
“Pois é. A vida não é uma personificação da coisa mais maravilhosa do mundo, talvez nem a morte. Talvez sejam ambas indiferentes ao homem. “, disse Cristóvão em sua vã filosofia.
“Cara, não entendo esses teus papos não.”, comentou Cauã confuso. “É por causa do asilo e daquele enfermeiro que me disse ou por causa da sua vó?”, questionou Cauã insistente.
A pergunta insistente de Cauã encolerizou Cristóvão, ele sabia porquê exatamente era, mas não se sentia vontade de contar, seu amigo acabava com sua pouca paciência.
“Não é por causa da minha vó. Muito menos por um mero enfermeiro.”, respondeu ele ríspido. “Tá bem?”, proferiu com uma entonação.
“Cris...”, arfava Cauã no outro lado da linha.
“Tchau!”, disse Cristóvão encerrando a ligação em sua cara.
Cristóvão desligou seu celular, desligou seu computador, apenas colocou a música ”Almost Blue” de Chet Baker, e se deitou na sua cama olhando para o teto, ainda refletindo em sua incansável mente. De certo, Igor mantinha grande influência sobre ele, e era isso que o deixava mais interessado em Igor. Assim, dormiu em um sono profundo, em sonhos avassaladores. Os dias ainda prometiam.
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No dia seguinte, Igor já estava em deu trabalho no asilo, Cristóvão não aparecera ainda, causando uma estranha falta em Igor, mas seu trabalho seria pouco, teve tempo livre para visitar Robson no hospital, enquanto tirava seu uniforme, já vestido com roupas comuns, saiu da sala da enfermagem fechando a porta, já para fora quando Eliza apareceu repentinamente.
“Igor, tenho umas perguntas para te fazer.”, falou Eliza pensativa.
“Diga!”, replicou Igor em tom imperativo.
“Você é meu amigo, sabe que não vou contar nada do ocorrido. Eu só tô preocupada se algo acontecer.”, dizia Eliza muito preocupada.
Igor sabia que Eliza não revelaria suas mentiras, era uma prova de ser uma verdadeira amiga para ele.
“Relaxa, Eliza. Eu não vou mentir para nenhum enfermo. “, disse Igor mesmo inseguro.
“Certo.”, suspirou Eliza aliviada. “que roupa? Não vai trabalhar?”, indagou Eliza reparando em Igor sem uniforme.
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“Não. Lourdes me deixou fazer uma visita no horário do expediente. “, contou Igor informando a amiga.
“Que bom que ela te deixou.”, disse Eliza. “Mas escuta, quem é o homem que tá sempre com Hilda?”, questionava Eliza curiosamente.
Por um momento, Igor pensou em não contar para Eliza tudo, mas ele sentia uma imensa vontade de compartilhar tudo, e era Eliza que mais sabia dele no momento.
“Neto dela.”, sussurrou ele no ouvido de Eliza.
“Nossa!”, expressou ela em um espanto. “Mas Igor... Ele sabe o que você tá fazendo?”, falou ela em um tom de voz alto.
“Fala baixo!”, Pediu ele gesticulando, olhos para os lados. “Sabe sim.”, Cochichou ele para ela.
Eliza ficou mais estupefata ainda, pensando que poderia ser o fim do amigo na casa de Repouso, queria saber mais, não entendia porque o neto de Hilda andava tão presente sem dizer nada.
“Como assim, menino? “, indagou ela confusa. “Ele não te entregou e nada? Que houve entre vocês? “, inferia ela desconfiada.
“Outra hora te conto tudo, tenho que ir agora. Tchau”, disse ele se despedindo e saindo rápido deixando Eliza ali, confusa..
Ele ficou a matutar no corredor, sentia algo estranho com o caso, supôs muitas respostas para o ocorrido, com certeza o neto de Hilda a intrigava, ainda mais sua relação com sua vó tão repentina e com Igor. De tão desatenta que estava com seus pensamentos, não percebeu que havia alguém atrás dela, que estava em um quarto o tempo todo ouvindo a conversa, aproximou sorrateiramente por trás dela, tocando-a no ombro para seu terrível espanto.
“AHHH!”, suspirou ela em um breve grito se virando. “Doutor Hum...”, sussurrou ela totalmente estática.
“O que você e Igor falavam mesmo? Poderia me contar tudo?”, disse ele com um tom amedrontador.
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