"Eu não nasci pra sofrer, eu não nasci pra chorar, o que interessa é a vida. Vou lá subir com você, vou lá dormir e sonhar, o que me leva é a sensação..." (Escócia, Asa de Águia).
...
Estremeci com a segunda batida na porta, enquanto Gustavo dava um salto para trás, aterrorizado:
- Abram! – voltou a gritar.
O rosto pálido do meu companheiro exaltava um pavor crescente no seu olhar. Examinei rapidamente o cenário ao meu redor e não sabia o que fazer. O som das espalmadas incessantes e a adrenalina no corpo impediam um raciocínio mais cauteloso. Decidi dar vazão ao que me ocorria primeiro e puxei Gustavo, aproximando a minha boca do seu ouvido:
- Faça tudo o que eu mandar, sem pestanejar – cochichei – Vá para o banheiro, tire a roupa e só saia de lá quando eu chamar...
- Não vou repetir! – a impaciência do lado de fora era evidente.
- Só um instante! – clamei em resposta e retomei a conversa – Se a sua presença for necessária, confirme tudo o que eu falar, ok?
Gustavo não respondeu e apressou-se em praticar a minha solicitação. Sem pestanejar, fechei todos os laptops, joguei as escutas e celulares na mochila, baguncei o que podia da cama e tirei o calçado e a camisa. A improvisação era a última arma que me restava.
- Desculpem a demora – respondi o chamado, ofegante – Estava no banheiro...
Dois oficiais me olhavam com desconfiança, acompanhados de um senhor mais arrumado, que deduzi ser o gerente do estabelecimento:
- Podemos entrar? – o mais sisudo deles iniciou.
- O que houve?
- Recebemos uma denúncia de um ato de violência e estamos investigando – ele não esperou a minha permissão e atravessou o hall – Como é o seu nome?
- Augusto.
- Sozinho? –espreitou atento o cômodo.
- Não, meu namorado estava tomando banho – procurava manter a calma.
- Traga-o para cá, por favor.
Desconhecia aquele tipo de protocolo, mas não titubeei em seguir a ordem:
- Gustavo... – bati rapidamente na porta – A polícia quer falar com você.
Após alguns segundos, meu colega abandonou o banheiro, trajando apenas uma toalha enrolada na cintura, e se prostrou ao meu lado. O gerente esboçou um rápido constrangimento, evitando olhar em nossa direção.
- Preciso dos documentos dos dois – o inquérito prosseguiu.
Peguei minha mochila, localizei minha identidade e entreguei quase simultaneamente à ação meu amigo. O outro policial olhou os computadores como se estranhasse a situação, e tomou a bagagem de mim, vasculhando-a em seguida. Rezava a todos os santos para que Gustavo não desmoronasse e que as batidas aceleradas do meu coração não me entregassem.
- Estão de passagem por aqui? – o inquisidor sondava, analisando as fotos dos nossos registros.
- Estávamos em um congresso de arquitetura que terminou hoje. Como o nosso voo só sai no fim da noite, paramos aqui para relaxar e descansar um pouco – menti.
- E isso? – o colega mostrou os diminutos dispositivos na palma da mão, fazendo-me prender a respiração.
- Tradutores simultâneos – meu parceiro respondeu com total tranquilidade – A organização distribui para acompanharmos as palestras internacionais.
Satisfeito com a explicação, jogou a mochila na cama. Não estava entendendo o sentido da investigação, procurando enxergar onde erramos na execução:
- Desculpe me intrometer... – mantive a educação – Mas o que está acontecendo?
- Como disse, recebemos um chamado sobre violência. Uma das recepcionistas avisou que atendeu uma ligação daqui sobre gritos vindos de outro quarto.
“Puta merda, a ligação”, engoli seco.
- Sim, fui eu que telefonei – admiti – Estávamos cochilando e começamos a ouvir um tipo de barulho estranho. A princípio pensei ser a televisão de um dos apartamentos vizinhos, mas era algo abafado, mais distante.
- Você também escutou? – direcionou-se a Gustavo.
- Sim, fui eu que pedi para ele avisar à recepção.
- E o que foi que disseram? – voltou-se a mim.
- Ligamos porque estava cada vez mais claro que eram gritos. Responderam que estávamos em um motel, e que isso era muito comum.
- Senhores – ele começou a caminhar para a saída – Será preciso que um de vocês nos acompanhe até a delegacia para prestar um depoimento formal, é possível?
- Sim, claro – me prontifiquei – Eu posso ir.
- Se vista e nos aguarde na recepção, por favor.
- Tudo bem.
Toda frase proferida tinha um tom de pedido civilizado, mas soava como exigência autoritária. Minha proximidade com os envolvidos poderia ser válida para o andamento do plano, desde que não averiguassem a veracidade do que havia contado. Assim que se retiraram, voltei para saber o estado emocional do meu cúmplice. Livre da toalha e totalmente desnudo, ele organizava a roupa em cima da cama apressadamente.
“Maldita oportunidade perdida...”, contemplei a sua bunda desaparecendo sob a cueca puxada para cima:
- Guga, você tá bem?
- Tô – abriu a calça e colocou uma perna – A gente paga a conta lá fora mesmo, né?
- Eu deixo um dinheiro e você paga, ou me espera voltar.
- Sem essa, eu também vou para a delegacia – terminou de abotoar e começou a amarrar o sapato.
- Não vai não. Se Juliana descobre que...
- Nem comece – ele me interrompeu – Nem ouse dizer que isso não é negociável ou qualquer outra coisa que envolva a minha irmã. Estou te ajudando por vontade própria e já concordamos que nem será seu jeito e nem do meu. Esse é um meio termo. Qualquer coisa diferente disso está fora de cogitação, ok?
Não teria tempo para discutir. Contrariado, guardei os notebooks, peguei a chave do carro e seguimos para a garagem em silêncio. Antes de levantar o portão, ele continuou a ponderação:
- Eu vou dirigindo, é melhor. No caminho, ligamos pro Flávio e reorganizamos as ideias.
Ele estava certo, era uma boa solução. Na recepção, os oficiais nos aguardavam. Ia pagar a conta, mas fui alertado que a estadia seria uma cortesia. Do lado de fora, duas viaturas estavam estacionadas, uma delas com Vinícius e Júlio nos assentos traseiros. No outro veículo, o oficial alocou o gerente do motel e fez um sinal para que nós seguíssemos o comboio.
Quando a viagem foi iniciada, liguei para o comando do hotel e coloquei o aparelho em modo viva voz.
- O que houve? – Flávio parecia assustado – Vi que vocês saíram com a polícia.
- Vamos prestar um depoimento na delegacia. Depois te explico melhor. Continua vigiando as câmeras e me avisa se notar algo diferente.
- Pode deixar. Acham que teremos problemas com o voo?
Olhei rapidamente para o relógio, que se aproximava das dezoito horas:
- Precisamos fazer check-in até onze e meia da noite. Não é possível que demore tanto.
- Beleza, e se estiver em apuros? Como a gente vai se comunicar?
- Não podemos reativar as escutas? – Gustavo se intrometeu.
- Qualquer ser humano poderia notar um ponto no seu ouvido.
- Eu poderia guardar o equipamento no bolso e vocês podem acompanhar tudo o que está rolando. O que acham?
- Boa ideia! – meu funcionário concordou.
- Se o pior acontecer... – continuei – Guga volta para o hotel para te encontrar e eu ligo para um advogado. Aí sim estudamos os desdobramentos.
Com o novo arranjo feito, despedi-me e desliguei. Ainda com a mente em plena atividade, peguei um dos laptops e o conectei ao adaptador USB do painel do veículo.
- O que está fazendo? – o motorista estava preocupado.
- Não queria ajudar? Vamos ver se ainda temos alguma conexão com o equipamento de Vinícius. Quando chegarmos, eu entro e você fica no carro me informando sobre o que ocorrer.
- Mas a gente combinou...
- Nem do seu jeito, nem do meu... – devolvi o pensamento – Precisamos estar atentos a tudo e não errar em mais nada. A partir de agora, será uma corrida contra o tempo.
...
Como incorporar o potencial Jack Bauer que há dentro de todos nós:
18h37
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Deixei Gustavo sozinho, em um local nos arredores que não suscitava desconfiança acerca do que estava fazendo. Os dados dos óculos se perderam, mas a câmera da mochila seguia ativada. Fui levado para uma pequena sala, e instruído a esperar que me chamassem. Diversas pessoas também aguardavam para prosseguir com as suas queixas. O gerente foi igualmente trazido para o recinto, sentando-se algumas fileiras atrás de mim.
Logo em seguida, dois policiais acompanhavam um indivíduo algemado que escondia o rosto com uma camisa, seguidos de mais dois que escoltavam Vinícius. Entreolhamo-nos rapidamente e pude notar o seu semblante comandado pelo medo. Sua roupa rasgada com algumas manchas de sangue contrastava com o nariz roxo e bastante machucado. Senti um misto de raiva e pena. A culpa era minha, toda minha. Naquele momento, tive certeza que se não solucionasse o imbróglio, seria assombrado por aquela derrota pelo resto da vida.
- Pega o depoimento dele primeiro – o oficial apontou para o encapuzado, que deduzi ser Júlio – E leva esse aqui para a sala três.
A truculência e a falta de tato das autoridades também se aplicavam no tratamento às vítimas. Tirei o telefone do bolso e avisei a Gustavo sobre o que tinha presenciado. Não tardaria em começar a receber as transcrições do que estava sendo dialogado naquele espaço. Estava ansioso com o que viria a seguir.
- “Por enquanto nada. Só tô escutando o som de alguém chorando...” – li o primeiro recado.
Não teríamos acesso à versão narrada por Júlio e isso me preocupava bastante. O chá de espera também não ajudava e o aquele falatório ininterrupto só aumentava a carga de estresse. Não poder fazer nada além de aguardar, era uma das piores sensações que me ocorriam.
19h42
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Aquele procedimento burocrático de chamar alguém, registrar uma reclamação – geralmente por pequenos furtos – e liberar o autor da mesma estava me entediando. A sala já estava mais vazia e impaciência era o meu sobrenome. Cogitei pedir um posicionamento ao incumbido, mas fui surpreendido com a chegada de três pessoas engravatadas e visivelmente transtornadas atravessando o ambiente, algo inédito desde a minha entrada. Estranhei o acontecido e logo depois um grupo de policiais seguiu pela mesma direção, num corredor perpendicular à parede em que me encontrava.
Mais alguns minutos se passaram e a movimentação cresceu consideravelmente. Levantei-me, como a passear pela área permitida e tentei espiar em busca de respostas. O entra-e-sai do gabinete no fim do passadiço era grande e aquilo não me parecia uma boa notícia. Voltei a me sentar e enviei uma nova mensagem para o meu informante:
- “Nada?”.
- “Ainda não. Ele continua sozinho”.
- “Droga!”
- “Espera... Parece que alguém entrou e está conversando com ele”.
Voltei a enxergar uma luz no fim do túnel:
- “E aí?”
- “Não dá pra dizer quem é. Está fazendo perguntas”.
- “Que tipo de perguntas?” – minha ansiedade estava a mil.
Não obtive retorno. Algo em meu inconsciente alertava que silenciar era dizer o suficiente. Temi pelo pensamento inconveniente.
- Ulisses? – o policial berrou, e notei que o gerente do motel se levantou – Solicitam a sua presença na sala nove. Pode seguir até o fim – direcionou o indivíduo – Augusto? – e continuou a ler o papel que estava em suas mãos.
- Sou eu – avisei.
- Seu depoimento não será mais necessário. Parece que o caso já foi resolvido. O senhor está dispensado.
“Puta merda...” , senti um frio na barriga. Queria perguntar o motivo da liberação, mas seria me envolver demais. Sem graça, assenti com a cabeça e me retirei. Voltei apressado para o carro e encontrei meu comparsa atordoado, a tempo de escutar um trecho da conversa:
- “Vamos ligar para a sua mãe e você vai contar que sofreu um assalto, certo? Não existem provas sobre o que aconteceu e ninguém vai acreditar nessa história...”.
- Por favor, diga que não é o que eu estou imaginando... – senti uma pontada no coração.
- É o delegado que está falando com ele – meu colega estava cabisbaixo – Aparentemente a polícia não está ao nosso lado.
- “Me diga o seu endereço e o telefone para avisarmos os seus pais” – prosseguia.
A voz de Vinícius falhava entre os soluços e o receio, mas obedecia ao que era solicitado. Cada palavra e cada informação cedidas tinham o mesmo efeito de um soco no meu estômago. Não conseguia escutar ou falar mais nada, apenas apertava as mãos com toda a força que podia, descontando em seguida no painel do carro:
- Porra! – gritei, liberando toda a ira presa na minha garganta.
20h23
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Entrei esbaforido no quarto, deixando a entrada livre para a chegada dos meus ajudantes, enquanto escutava atento o desenrolar dos fatos. Àquela altura, Vinícius seguia dialogando com a mãe aborrecida, enquanto se dirigiam a um hospital para tratar os ferimentos. Júlio, provavelmente, já estaria em casa, livre e incólume.
- E aí? – Flávio adentrou, sem esconder a angústia.
- Não posso parar a gravação agora – ignorei a pergunta e me dirigi a Gustavo, que o acompanhava – O que foi exatamente que você escutou?
- Certo... – ele tentava recapitular – O delegado se identificou e perguntou o sucedido. Com dificuldade, ele disse que foi sequestrado, jogado no bagageiro de um carro e levado para um motel. Após uma briga, conseguiu conter o criminoso com uma corda. Depois, se escondeu no banheiro e ligou para a polícia, mas o algoz conseguiu se libertar... Creio que foi basicamente o que vocês tinham acertado.
- E isso não era suficiente para prendê-lo? O garoto estava todo machucado e amarrado na cama... – divaguei – Não é possível que tantos policiais sejam corrompíveis assim, estamos deixando passar algo.
Voltei a olhar para a transmissão em tempo real no laptop, intrigado:
- “Foi um descuido meu, mãe. Não deveria ter reagido...”.
- “Tudo bem filho. O importante é que o pior já passou...”.
Interrompi a exibição abruptamente, para surpresa dos meus amigos. Puxei uma cadeira e me acomodei:
- O agora já não nos serve mais – encarei o monitor – Quero entender porque ele desistiu.
Ambos se aproximaram e sentaram na beira da cama. Voltei algumas horas de gravação e acelerei pequenos trechos, em busca do momento exato da intercepção. Era um trabalho ingrato, já que a imagem estática apontava para uma parede vazia, onde nosso espião aguardava calado, mas conseguimos precisar o início do diálogo:
- “Boa noite! Eu sou o delegado Brandão... Você deve ser o Vinícius, acertei?” – anotei o nome no celular, atento a tudo que escutava.
- “Sim, sou eu...”.
- “A gente recebeu a sua ligação pedindo ajuda. O que foi que aconteceu?”.
A voz vacilante confirmava o relato anterior de Gustavo, que resumia a situação. Ele tinha seguido o script à risca, afinal:
- “Entendi... Vinícius, você deve saber que esse é um depoimento oficial, que fica registrado no nosso sistema. Se por acaso encontrarmos algo errado nesse contexto, podemos intima-lo e processar os seus responsáveis, tudo bem?”.
- “Eu... Eu não sabia disso” – titubeou.
- “Estou falando isso, porque escutamos uma história bem diferente da sua. Averiguamos que você é colega de sala do irmão do acusado e costuma frequentar a casa dele. Será mesmo que houve um sequestro?”.
O questionamento ficou no ar. O encarregado prosseguiu:
- “Também soubemos que costumava se insinuar, mantendo algumas intimidades com o senhor Júlio, e que foi sua a ideia de um encontro no motel. Os seus pais sabem que você é bicha e quer se relacionar com uma pessoa mais velha?”.
A partir daquele instante, o som do choro do inquerido permeou a interlocução. A autoridade estava claramente jogando com o psicológico dele:
- “Manter essa versão é uma escolha sua, Vinícius. Terei que chamar os pais de ambos para contar o que houve. É de seu conhecimento que os Silveira são uma família política e com muitos contatos. Eles sabem onde mora, são capazes de tudo. E certamente, essa fantasia iria ganhar os noticiários. Quer mesmo levar isso adiante?”.
Malícia e ameaça se misturavam naquela voz assustadora. Com muito custo, escutamos uma negativa gaguejada:
- “Vamos ligar para a sua mãe e você vai contar que sofreu...” - pausei a transmissão, alcançando o ponto que tinha presenciado no carro.
Estava aturdido e mantinha o olhar vazio, tentando digerir os fatos.
- Caralho, esse país às vezes me assusta... – Flávio recostou-se na cama, dando-se por vencido – Se até eu mijaria nas calças com essa provocação, imagina um adolescente de quatorze anos!
- E agora? – Gustavo se pronunciou.
- Agora... – respirei fundo – Vocês começam a arrumar as bagagens.
- Então é assim? Acabou?
- Não disse isso – fui categórico – Voltem para São Paulo, eu vou ficar.
21h17
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Tentava abstrair todas as súplicas sobre o quão ruim era aquela ideia.
- Pensa bem cara. É a polícia. Não vale a pena correr risco de vida...
- Não vou chegar nesse estágio...
- Como assim? Para com essa maluquice, Augusto! – Gustavo bradava.
- Independente do nosso sucesso, vou entregar todas as provas às autoridades sensatas.
- E vai acabar se expondo também – retrucou – Para de querer ficar nadando contra a maré!
- Guga, chega! – encarei o seu rosto seriamente, ainda mantendo a compostura – Eu era responsável por ele e pela situação. Você vai dizer que a culpa não é nossa, e com razão. Mas ainda assim, me sinto um pouco causador disso tudo, e não há nada que possa dizer para amenizar esse sentimento – desabafei – Agradeço a tentativa, mas não há.
Um breve silêncio tomou o aposento, e ele decidiu se retirar, visivelmente chateado:
- Flávio, vou me arrumar e fico te esperando pra gente ir pro aeroporto – saiu batendo a porta com força, sem se despedir.
Meu funcionário permanecia quieto, assimilando a discussão.
- Preciso te pedir um grande favor – falei após um longo suspiro, atraindo novamente o seu olhar – Quero hospedar uma mensagem criptografada em um servidor estrangeiro. Qual a maneira mais rápida de fazer isso?
- Posso te ajudar, mas me fala primeiro o que está pretendendo fazer.
- Não podemos confiar na polícia, mas quem está acima dela? A justiça pode demorar meses e não faria nada sem uma acusação formal. O serviço de inteligência brasileiro não pegaria um caso assim. Pensei na polícia federal.
- Qual o teor do assunto?
- Vou enviar tudo o que conseguimos captar, mas não pretendo correr riscos. Se eles não agirem, ameaço mandar o material para a imprensa. Por isso, não posso deixar qualquer rastro virtual.
- Vai simplesmente mandar e esperar? Você não precisa estar aqui para fazer isso.
- Tentarei conversar com Vinícius. Ele pode precisar de algum tipo de apoio.
- E quem é seu conhecido na polícia?
- Ninguém. Vou ter que encontrar um receptor sem qualquer vínculo político, desses que participam dessas operações contra a corrupção e coisas do tipo. Se não for da alçada deles, saberão direcionar para um setor responsável.
- Vamos fazer assim: eu coloco as gravações do motel em um HD e deixo na sua mão. Assim que chegar, vou conversar com alguns contatos e te passo instruções.
- Beleza. Ah, mais uma coisa – continuei – Você pode deixar Guga em casa? Juliana disse que ele ia entrar em semana de prova e tá muito atrasado no semestre... É provável que não queira conversar comigo por um tempo.
- Relaxa Guto, ele deve estar estressado. Só não vá fazer nenhuma idiotice, tá?
- Pode deixar.
22h42
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Enquanto meus acompanhantes pegavam o bilhete no balcão da companhia aérea, eu mudava o dia do meu retorno em outro guichê para a noite seguinte, mantendo o mesmo horário e pagando uma salgada taxa por isso. Voltei a encontra-los e o irmão da minha sócia permanecia emburrado, evitando prolongar as conversas. Não compreendia aquele temperamento arisco, mas preferi respeitar. Troquei mais algumas ideias com Flávio e resolvi deixa-los a sós, voltando aos meus afazeres no hotel.
23h21
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Comecei a separar toda a denúncia por ordem cronológica. O primeiro vídeo, o alarde da conquista nos bate-papos em grupo (com o cuidado de ocultar os outros nomes), a negociação de Júlio com o gerente do motel, a parte editada em que ele espanca o garoto até a chegada da polícia, a saída do comboio, o áudio das conversas, a ameaça velada do delegado... Estava tudo lá. A máxima do “contra fatos não há argumentos” precisava prevalecer.
Em seguida, acessei o celular confiscado e vasculhei o conteúdo em busca de novas pistas. Olhei pasta por pasta, imagem por imagem, trechos imensos de conversas e meu choque aumentava cada vez mais. Descobri que Lúcio realmente auxiliava na caça em troca de favores do irmão mais velho. Pelo menos outros dois colegas de sala já tinham sofrido do mesmo mal em ocasiões diferentes, mas só um tinha o registro efetivado. As informações cresciam à medida que a crueldade de Júlio se confirmava.
Curioso, notei alguns históricos isolados com César e Alexandre, mas decidi investigar isso em outra ocasião. Tomei o cuidado de acessar o backup do aparelho e verificar que nenhum diálogo com Vinícius estava salvo. Os detalhes não passariam despercebidos. Ao fim do processo, escrevi um primeiro rascunho do texto que iria relatar o caso e me permiti relaxar um pouco, passando um longo período debaixo do chuveiro para absorver todo o absurdo daquele estranho dia.
Segunda-feira, 2h08
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Dei um pulo da cama ao escutar o telefone tocar. Corri para pega-lo na mesa. Era Flávio:
- Tava dormindo?
- Não, longe disso. Chegaram bem?
- Chegamos, já deixei Gustavo e vim conversando com dois amigos no caminho.
- Certo, e aí?
- Vou te encaminhar um passo a passo pelo whatsapp, mas irei resumir o que faremos. Criarei uma conta falsa de e-mail e vamos hospedar em um servidor da Índia. Depois você vai baixar um programa que vai gerar uma conexão segura, ok?
- Tá, mas se eles responderem? Eu consigo continuar a conversa sem problemas?
- Hum... – ele pensou por um momento – Eu acho que sim. De todo modo, o ideal é que use uma rede pública. Vá pra um lugar que tenha bastante gente, um shopping ou mercado talvez. Feito esse primeiro contato, acho que é mais garantido.
- Beleza, organiza esse manual pra mim, enquanto eu procuro um destinatário ideal.
- Não precisa, eu já encontrei também.
- Sério? – me surpreendi.
- É um cara que atua no combate a crimes virtuais. Não sei se é o mais indicado, mas foi o que conseguiram pra mim.
- Caralho Flavinho! Vou te dar um aumento!
- Não brinca com essas coisas que depois eu cobro, hein? – gargalhou.
Agradeci pela força e encerrei a ligação. Em pouco tempo, já estava colocando em prática os ensinamentos recebidos. Fora alguns procedimentos para alterar o IP e o modo de segurança do computador através de códigos complexos, a cartilha era relativamente simples. Quando a operação estava concluída, anexei os arquivos e terminei de escrever a queixa, ocultando boa parte do plano executado:
“Caro Comandante Bastos,
Você não me conhece, eu também não. Peço desculpas por entrar em contato através de uma forma moralmente duvidosa, mas acredite, é por uma causa maior. O motivo da minha intrusão se deve a uma situação perturbadora e o auge dela ocorreu durante o dia de hoje. Não posso me identificar porque prezo pela minha vida, mas escrevo porque também me preocupo com colaboradores próximos.
Há algumas semanas venho investigando por conta própria indícios de aliciamento de menores, que envolvem diretamente pessoas de diferentes turmas de uma escola tradicional do Rio de Janeiro e o irmão mais velho de uma delas. Notei que as pistas eram verdadeiras quando um aluno me confidenciou um desses atos, mas que não falaria nada a ninguém por temer alguma represália.
Ao mesmo tempo em que tentava convence-lo a conversar com os pais ou a polícia, seguia apurando o que teria acontecido. Paguei um profissional para ter acesso às informações que estão anexadas (e você vai entender quando visualizar). Sei que se trata de invasão de privacidade e conteúdo particular, mas tenho certeza que isso não vai parar.
Hoje, após muita conversa, persuadi o aluno em questão a fazer uma denúncia (depois que o ato se repetiu, desta vez com violência), mas a polícia civil, numa prova considerável de abuso de poder e corrupção, o ameaçou de diversas maneiras (ver “arquivo três” de áudio).
O que me traz até aqui, comandante. Cheguei ao seu nome através de indicações e pesquisas e vejo aqui uma possibilidade real de justiça. Não tenho mais em quem confiar. Por outro lado, também me vejo na obrigação de devolver o ato na mesma moeda: caso não receba uma confirmação sobre alguma atitude a ser feita, enviarei este mesmo e-mail à imprensa nacional, mesmo que isto implique em outras medidas cabíveis.
Confio na sua integridade para o bem.
Att.
A.”
Reli, respirei fundo e enviei. Estávamos de volta ao jogo, e dessa vez para a cartada derradeira. Concluí todas as etapas para sair do servidor internacional e desliguei o equipamento. Mandei uma mensagem para Flávio reconhecendo mais uma vez a ajuda e me deitei para tentar descansar um pouco.
- “Vai funcionar. Estamos no caminho certo...” – meu funcionário retomou a conversa virtual.
- “Eu sei que estamos. Talvez se tivéssemos essa ideia desde o início, teria sido mais fácil ainda. Tô me sentindo meio estúpido”.
- “Ninguém poderia prever. Acho que todos se deixaram levar pelo lado heroico e aventureiro da situação, não é culpa sua. Aliás, dá uma lida nisso que eu achei”.
Cliquei no link enviado e senti calafrios ao avistar a manchete da notícia:
- “Reunião entre Silveira e o Secretário de Segurança rende acordo para pressionar o governo do estado por reforço policial”.
A foto oficial e a redação carecida de imparcialidade não davam margens para outras interpretações. A cada passo dado, descobríamos que a rede era muito maior do que imaginávamos:
- “Já sabemos então porque o tal Brandão não quis levar isso adiante...” – digitei.
- “Pois é, e não foi descuido nosso. Isso foi publicado ontem no site da prefeitura, era tarde demais”.
Tranquilizei-me com a decisão de levar o caso a outro âmbito, fora do território controlado pelo clã. Dormi esperançoso com a nova possibilidade de sucesso.
09h26
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Tomei um café da manhã reforçado no hotel e parti para um shopping próximo ao bairro. Ao chegar, mandei um recado para Juliana, explicando a minha ausência emergencial, mas confirmando a reunião do dia seguinte. Pedi a Flávio que me auxiliasse com a finalização da apresentação e, se fosse necessário, reunisse uma equipe para isso. Temporariamente livre dos meus deveres, foquei no meu objetivo maior.
Configurei o celular do falso perfil para acessar a rede do centro comercial e averiguei o correio eletrônico. Nada. Sabia que estava lidando com algo mais delicado e teria que ter muita paciência. Comecei a caminhar pela área e me deparei com uma loja de HQ’s e produtos nerds. Era o verdadeiro paraíso para ver as horas passarem.
Na seção de quadros, uma frase emblemática do Comissário Gordon emoldurada me chamou atenção, e relembrei a minha odisseia. No mesmo instante, liguei para Vinícius, mas ele não atendeu. Abri o snapchat e enviei uma nova mensagem:
- “Nunca se dê por vencido. Eu não desisti, e estou fazendo todo o possível para completar o nosso plano. Ainda não acabou”.
Recordei a revelação imposta do endereço da sua residência para o delegado naquele depoimento bizarro. Solicitei um empregado da loja e pedi que embrulhasse o objeto para presente. Voltei a caminhar e, minutos depois, notei que meu e-mail foi, enfim, respondido:
“Caro A.,
Aprecio a sua coragem em tentar descobrir uma forma de comunicação. Como deve imaginar, além de ser ilegal, eu não respondo a nenhum tipo de intimidação ou ameaça, seja de cunho pessoal ou político. Espero que o seu profissional tenha trabalhado de maneira eficiente para não chegarmos ao seu paradeiro e que essa resposta seja suficiente para a sua solicitação.
Att.
Comandante Henrique Bastos”.
“Droga!”, franzi o cenho no meio da praça de alimentação ainda vazia. Precisava fazê-lo entrar no embalo da negociação, e não pensei duas vezes antes de escrever uma réplica, tentando evitar o tom irritado:
“Henrique,
Permita-me a intimidade. Fico admirado por encontrar uma brecha no seu dia corrido para me dar uma satisfação, mas surpreso com a falta de bom senso. Sim, o meu profissional contratado é excelente, e o tempo gasto para me investigar seria muito maior do que o efetivado para analisar as provas enviadas. Prefiro imaginar que estava fazendo o trabalho que a nossa precária polícia não teve capacidade para levar adiante, ou simplesmente não era do interesse dela.
Acredite, o lado político da história foi descoberto por acaso e, nessa situação, é apenas um agravante para que o acusado fique ileso e continue a praticar tais atos. Vi-me na obrigação de fazer uma ameaça formal (e peço desculpas por isso), porque depois de todo o ocorrido, não sabemos realmente em quem confiar. Você é a nossa última esperança. Olhe com cuidado tudo o que foi enviado. Poderia ser o seu filho ou o meu. Seguramente agiríamos do lado da justiça. Confio na sua pessoa.
Tic tac, Comandante. Tic tac...
Att.
A.”
Aguardaria o comunicado ser calmamente estudado, mas não abriria mão de uma de uma atitude decisiva. Caso não houvesse qualquer posicionamento, iria enviar o material para a imprensa especializada. Se até a metade da tarde não tivesse um parecer favorável, começaria a procurar meios apartidários de levar a denúncia adiante.
12h31
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Antes que o ambiente ficasse insuportável e muito movimentado, decidi almoçar. No fundo, também temia que àquela altura, a polícia federal estivesse investigando a origem do sinal, e que pudesse chegar ao IP do shopping ou meu aparelho móvel. Olhava para os lados com frequência, evitando ser tomado pela sensação de perseguição.
Como ainda tinha toda a tarde pela frente, resolvi ir ao cinema. Duas horas de abstração seriam suficientes para tentar aplacar a ansiedade. A distração, contudo, não rendeu novidades. Parecia que estava sendo torturado, aprisionado em um imenso local onde nada poderia fazer senão aguardar.
A expectativa me fazia olhar a caixa postal de meia em meia hora, a ponto de pretender enviar uma nova cobrança. Mas não foi necessário. Próximo ao anoitecer, a resposta estava lá:
“A.,
Fico feliz que reconheça a minha autoridade e confie nela. Estamos avaliando como levar a delação adiante, já que ela foi feita de forma indevida e, como dito anteriormente, ilegal. Além disso, foge da minha autarquia a divulgação da origem desses arquivos. Mas sim, ela será feita, pode ficar tranquilo. O que você fez foi bastante arriscado, e reconheço a validade do esforço. Juízo!
Att.
Henrique”.
Não podia acreditar no que estava lendo. Meu desejo de comemorar era tão grande que cheguei a abraçar a garçonete da sorveteria onde estava sentado no momento.
“Comandante,
Essa será a nossa última correspondência, apesar da imensa vontade em marcar um encontro para cumprimenta-lo. Não precisa respondê-la, e nem espero que o faça. Também não quero qualquer tipo de reconhecimento, longe disso. Se desejar, pode ficar com todos os méritos da investigação e dos resultados consequentes. Apenas prezo pela verdade. Agradeço pelo exercício conjunto do dever.
Att.
A.”
Enviei o rápido feedback, engoli o milk-shake e corri para o hotel. Arrumei a minha bagagem e revi a gravação para anotar o endereço completo de Vinícius. Após o jantar, enviei uma mensagem para os meus amigos, relatando todo o processo. Sabia que poderia levar dias, talvez semanas, para que aquela etapa fosse concluída, mas a nossa obrigação foi cumprida, e isso era um grande avanço.
Findada a saída do hotel, deixei a encomenda na portaria do edifício e segui aliviado para o aeroporto. Não quis deixar nenhum tipo de carta ou frase motivacional. Os pais do garoto poderiam ler, e criar uma nova confusão estava fora de cogitação. Certamente, ele entenderia o simbolismo. Vencidos tantos tropeços e reviravoltas, a jornada fluminense chegava ao fim.
Três dias depois
O marasmo da quinta-feira foi interrompido pela presença súbita de Flávio na minha sala:
- Ia te chamar na cantina, mas tem gente demais lá. Liga a televisão, rápido! – vibrava – Coloca em algum canal de notícias.
- Como assim?
- Vai logo! – ele estava bastante afobado.
Tranquei a porta e sintonizei, aflito. Imagens ao vivo mostravam diversas viaturas na frente de um edifício, e a calçada estava tomada por populares. Não entendi exatamente o que estava assistindo, mas o título no rodapé da reportagem me fez arregalar os olhos:
- “Filho do Deputado Silveira é preso após denúncia de estupro envolvendo menores”, li em voz alta.
Encarei o rosto do meu funcionário, que me olhava radiante:
- A gente conseguiu...
- A gente conseguiu, porra! – gritei, puxando-o para um abraço – Como você soube?
- Está em todos os lugares, Guto. Pode olhar – ele riu.
Em êxtase, liguei o computador e continuei a procurar por notícias similares. Os grandes portais destacavam o ocorrido em suas páginas principais. Fiz questão de ler um por um:
- “Escândalo político liga membros da família Silveira a propinas pagas à Polícia Civil do Rio de Janeiro”;
- “Secretário de Segurança se cala sobre o assunto. Delegado será escutado amanhã”;
- “Vídeos mostram cenas de pedofilia e negociação com motel. Escola também será investigada”;
- “Conta hackeada do comandante da Polícia Federal foi o pontapé inicial para a operação”;
- “Justiça garante que a identidade das vítimas será mantida em sigilo”;
- “Parlamentares já articulam cassação do Deputado. Partido pede afastamento”;
- “Opinião: Onde estão os valores da tradicional família brasileira agora?”.
Cada manchete me enchia de orgulho. Era um efeito dominó sem fim. Um fato abria precedentes para outro, e mais outro ainda maior. Golias sucumbia ao tiro certeiro de Davi:
- Eles foram muito rápidos!
- Nem eu esperava tanta agilidade assim. Isso é raro – meu colega destacou sentado na poltrona.
- Precisamos comemorar. Vou intimar o Guga.
- Tô dentro! Vou reforçar pra ver se ele se anima – ele não se aprofundou sobre o silêncio prolongado do terceiro membro – Ah, e qualquer outro “assunto” a ser resolvido, pode me chamar – mudou de assunto – Você sabe que eu não resisto a um bom plano mirabolante.
Gargalhamos. A euforia tomou conta do ambiente de trabalho pelo resto do dia. Na cantina, o assunto tomou conta das rodas de conversa e o burburinho no meio de tantos outros temas que permeavam a crise política do país era evidente. O acontecimento teria desdobramentos importantes a partir dali, e a formação da Liga do Mal passara a ser totalmente imprevisível.
Em casa, passei a noite revendo os noticiários, ainda estupefato. Ver Júlio saindo algemado e escoltado em rede nacional não tinha preço. Nunca fiquei tão satisfeito por dar início a uma vingança. A insistência, no fim das contas, valeu cada segundo disposto.
Prestes a dormir, escutei uma notificação do celular. Era uma resposta tardia de Vinícius, que quebrou o silêncio no snapchat com uma foto do presente presa na parede do seu quarto. A arte abstrata evidenciava umas das frases proferidas pelo principal aliado nos filmes do vigilante solitário:
“Um herói pode ser qualquer um, mesmo um homem fazendo algo simples como consolar e colocar um casaco em volta de um garoto, para que ele saiba que o mundo não acabou (James Gordon)”.
Logo abaixo, na legenda da imagem, uma simples frase resumia toda a nossa trajetória:
- “Obrigado por tudo...”.
Sorri. Pela primeira vez, naquela semana, me permiti um sorriso genuíno, daqueles que significam um mundo de sensações simultâneas, e aflorava com vigor o doce sabor da vitória.
(continua)
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Oi Pessoal! Peço desculpas pela demora prolongada! Acabo de sair de uma jornada puxada de trabalho, vida social zero e mudança (ô coisa chata). Por outro lado, esse capítulo estava extenso (ainda maior do que o publicado), e levei um bom tempo para revisar. Enfim, aqui está ele! Para tranquiliza-los, estou prestes a entrar de férias, então creio que poderei dar uma acelerada na escrita! Drica Telles (VCMEDS), me alegra que também esteja por lá! Jeff08, não morra não (rs)!! Obrigado pelos elogios! Plutão, pois é, as paixonites juvenis sempre cegam a gente né? Faz parte do aprendizado. O ruivo também manda beijos! Irish, fico feliz que tenha gostado! A partir de agora, prepare-se para novos rumos (alguns surpreendentes). Mais uma vez, agradeço todos os votos e comentários. Até aproxima! Abração!