O despertador toca bem ao lado do meu ouvido, com seu barulho estrondoso, me fazendo pular na cama. Era fim de verão, mas desde cedo o sol aparecia majestoso através das fendas da cortina. De repente, vem um frio na barriga quando lembro que as aulas começam hoje. Rolo mais um pouco pra lá e pra cá, aproveitando meu cobertor mais um pouco antes de começar a me arrumar. Sento na cama, e coloco o pé direito para fora, numa tentativa supersticiosa de começar meu dia bem. Rio de mim mesmo, pois nunca fui de superstições. Me levanto relutante e vou até o guarda roupa para pegar meu uniforme, e então verifico minha mochila antes de ir para o banho. Assim que tiro a camiseta, meu corpo treme em protesto. Ligo o chuveiro e logo vou para debaixo da corrente quente de água, acalmando meus espasmos pelo frio repentino.
Esse ano seria intenso. Meu ultimo ano na escola, como eu esperei por isso. Só fico apreensivo por causa do restaurante, que ocupa muito do meu tempo. E eu amo trabalhar lá. Além de ficar perto dos meus pais, consigo ter um pouco de independência financeira. Mas agora com o início das aulas, minha vida ficaria bastante corrida.
Desligo o chuveiro e logo pego a toalha, me apressando para poder terminar de me arrumar. Não sei se foi por causa do banho, mas parece que ficou mais frio. Me obrigo a pegar um casaco. Desço as escadas e vou de encontro com meus pais, que já estão na mesa tomando café da manhã. Os dois parecem animados conversando algo que não consigo escutar.
- Bom dia. - minha voz ainda está sonolenta, mas meu humor logo se acende ao vê-los com tamanha animação logo cedo.
- Bom dia filho. - minha mãe responde animada enquanto meu pai está ocupado bebendo seu café. - vou precisar que você vá ao mercado pra mim hoje, Edu.
- claro mãe. São coisas pra casa ou pro restaurante?
- pro restaurante, você pode ir um pouco mais cedo e levá-las junto?
- tudo bem. E as coisas no taxi pai, como vão?
- mais ou menos, Edu. Um dos meus homens pediu demissão. Essa onda de assaltos anda assustando as pessoas.
- acho que você deveria ficar só no restaurante e deixar que eles comandassem a frota, Paulo. Já tem gente o suficiente lá.
- Helena, eu trabalho nisso há 20 anos. Não vou largar nada por causa de bandido.
- eu acho que a mãe tá certa, pai. Todo cuidado é pouco. A cidade já não é mais como antes, e você sabe que trabalhar em taxi está ficando muito perigoso. O restaurante já da uma ótima renda pra gente, e ano que vem eu já vou sair de casa, então vão ser só vocês dois aqui. Além do mais, no que eu puder eu ajudo, mesmo de longe.
- eu sei filho, mas a questão não é financeira. Eu gosto do taxi. Sempre gostei. Não pretendo sair de lá tão cedo.
O modo como meu pai falou foi gentil mas ao mesmo tempo "o assunto termina aqui". Então, me despeço deles enquanto estou enrolado terminando minha torrada e meu copo de leite, tentando ser o mais rápido possível para pegar o ônibus. Minha mãe me entrega a lista do supermercado, então avanço para a porta, surpreso pelo frio não ser apenas psicológico. Apesar do sol, a temperatura realmente havia caído.
Ao dobrar a esquina já consigo enxergar a escola. Ando com as mãos no bolso, e com os fios do fone de ouvido balançando pra lá e pra cá enquanto me aproximo do prédio antigo, assim como a maioria dos prédios da cidade. A medida que chego mais perto, já consigo ver algumas pessoas de mochila, alguns carros estacionando por perto, pessoas da minha idade saltando pra fora e rumando ao mesmo destino que o meu. Todos parecem muito entusiasmados. Bem, eu não. A escola onde eu estudo é a com maior qualidade de ensino na cidade. Mas os alunos não são muito corteses. Não é à toa que eu não tenho amigos por lá. Todos em suas bolhas, presos em um mundo perfeito, com suas roupas caras, e fotos de viagens, e sorrisos perfeitos, e vidas perfeitas. A arrogância era palpável.
Ao abrir a porta, o som dos alunos conversando entre si, a agitação, o calor, tudo vem em um misto de frio na barriga que me assusta. Até a poucos minutos atrás, eu não estava ansioso, mas agora estou. Passando por entre a aglomeração da entrada, verifico minha sala no mural de informações.
"Sala 29, segundo andar."
Repito isso na minha cabeça constantemente quase que em modo automático, embora tivesse noção de onde era. Ao chegar, tiro meu casaco e escolho uma carteira. Sempre opto por ficar na frente. Fui o primeiro a chegar, então deduzo que talvez tenha errado na noção do tempo. Logo, mais gente chega, e então a sala está barulhenta, como a entrada da escola. Mesmos rostos. Histórias diferentes de férias super empolgantes. Reviro os olhos. Eu realmente não me encaixo aqui.
O sinal toca e dona Hermes, de biologia, logo aparece pela porta, entusiasmada como sempre. Até funcionaria, se não fosse exagerado.
Ela encosta sua bolsa na mesa e retira uma pasta de plástico transparente, abrindo-a e pegando uma pequena pilha de papéis. Então, entrega uma para cada aluno, seguido de um "bom dia" animador. Corro meus olhos pelo documento. Era o plano de aulas do ano letivo, resumo sobre notas e etc. Então, ela começa uma explicação da qual não consigo prestar atenção. Acabo me distraindo olhando pra fora. O movimento mediano de carros na rua joga meu pensamento pro futuro. Porto Alegre. Meu destino daqui a menos de um ano. O tempo passou voando, e vou sentir falta daqui. Pelo menos, de algumas coisas. Vou sentir falta dos meus pais. Ao pensar nisso, meu peito se aperta. Nunca fiquei longe deles. Embora eu sinta uma enorme vontade de seguir meus sonhos, às vezes sinto medo. E mesmo Porto Alegre estando a 3 horas de viagem e eu podendo vê-los todo fim de semana, as coisas vão ser diferentes. É uma droga esta cidade ser tão pequena a ponto de não ter uma universidade. Assim não precisaria ser tão radical. Me formar aqui e depois me mudar, talvez. Mas eu só adiantaria o inevitável. O sinal toca e então percebo que o quadro está com alguns tópicos, e então me apresso para fazer as devidas anotações. Em seguida, o professor Guedes cruza com a dona Hermes na porta, cumprimentando com a cabeça de forma gentil. E ele não perde tempo. Logo saca seu caderno da pasta de couro escura e da uma breve olhada, e então começa a fazer anotações no quadro. Consigo escutar os protestos dos meus colegas sentados próximos a mim, sobre como ele não perde tempo. Dessa vez, foco na aula e anoto tudo com atenção.
Guedes logo nos pede para formarmos grupos para o que ele chamou de "atividade de boas vindas." Como sempre, optei por ficar sozinho. Ele distribuiu um papel com um determinado assunto, em uma espécie de sorteio, e cada grupo deveria fazer um resumo e apresentar na próxima aula.
O dia passou sem muitos acontecimentos, apenas apresentações de conteúdo e algumas conversas sobre as férias. Logo o sinal de fim da aula toca, e eu pulo da cadeira, e em um segundo estou com a mochila nas costas, seguindo rumo a porta. O dia permanece firme, apesar do frio continuar incomodando um pouco. Chego em casa e logo vou verificar o que tem na geladeira. Não havia percebido que estava com fome, e acabei nem comendo na escola. A ideia de cozinhar me anima ainda mais. Esse era meu hobbie favorito, tanto que esse foi o caminho que escolhi. Ano que vem. Porto Alegre. Gastronomia.
Separo os legumes pra salada em uma tigela, enquanto a carne frita no fogo baixo. Misturo com cebola e tempero, e então faço o arroz. Havia feijão do outro dia, então me poupou tempo. Depois de comer com entusiasmo, lavo a louça e limpo a bagunça que eu havia feito, e então subo para meu quarto. Tiro meu uniforme que cheira levemente a gordura e meu perfume e troco por uma roupa mais confortável. Ao verificar os bolsos da calça, acho a nota de supermercado. Não posso me esquecer disso.
Decido começar a fazer meu trabalho de história. Meu tema era 1a revolução industrial. Bem, isso me ocuparia tempo. Ligo o computador e me afundo no dever, esquecendo o tempo.
Olho para o relógio e são quase 17h. Preciso ir. Pego a lista e a coloco no bolso. Como a lista é um pouco extensa, seria difícil carregar tudo na mão. Precisaria usar minha bicicleta. Não tenho nem certeza se ela ainda está inteira, e espero que esteja.
Ao dar a primeira pedalada, solto um sorriso espontâneo. Fazia tanto tempo que não a usava, que me sinto uma criança. As ruas estavam desertas e silenciosas. Escuto apenas o barulho das pedaladas, minha respiração acelerada e a caixa de plástico vazia se mexendo um pouco no suporte da traseira. As árvores me acompanham durante o caminho todo, formando uma paisagem espetacular. Ao chegar no supermercado, vagueio entre os corredores procurando tudo o que minha mãe havia me pedido. Temperos, verduras, alimentos básicos, tudo pra dentro do carrinho. No fundo, havia uma música um pouco familiar tocando no alto falante dos corredores. Após passar as compras pela moça de sorriso forçado no caixa, sigo até onde deixei minha bike para colocar as coisas dentro da caixa. Ficou um pouco difícil de me equilibrar enquanto andava com no mínimo 10 kg a mais em cima da magrela. Mas o caminho fora relativamente mais curto até o restaurante. Ao chegar, Carlos varria a calçada, e quando viu a quantidade de coisas que eu carregava, correu para ajudar.
- ei moleque, vai com calma. - disse enquanto me salvava das sacolas. - comprou o mercado todo foi?
- quase isso. - digo ofegante enquanto reparto o peso entre eu e ele. - a mãe tá aí?
- faz tempo. Tá lá terminando de fazer as coisas pro buffet.
Entramos no restaurante e seguimos direto para a cozinha. Lá, minha mãe e Fátima, minha tia, revezavam no preparo da comida. O cheiro é ótimo.
- da próxima vez me avisa pra ir de caminhão, mãe. - brinco enquanto largo as sacolas no balcão próximo a ela. Minha tia ri enquanto corta algumas verduras.
- nem foi tanta coisa assim Edu, larga de ser mole. - ela retruca, dando um sorriso e se aproximando para me dar um beijo no rosto. - como foi seu dia?
- foi bom, a escola continua a mesma coisa de sempre. E o pai, não chegou ainda?
A expressão dela muda.
- seu pai foi pra casa, ele não estava se sentindo bem.
Percebo que ela não está falando a verdade, e concluo que minha tia sabe mais do que eu, a julgar por sua expressão ao escutar a resposta da minha mãe.
- tia, me ajuda a guardar as coisas?
- claro, Edu.
Ao chegarmos na despensa com as coisas, fecho a porta e olho com curiosidade para ela, que entende minha expressão.
- tia, o que aconteceu?
Ela hesita por uns instantes, então me fala.
- sua mãe encontrou seu pai num bar aqui perto. Ele não foi pro táxi hoje. E nem vai vir pra cá.
Consigo ouvir o tom de desaprovação em sua voz, e eu encolho os ombros. Achei que meu pai havia melhorado em relação a bebida. Mas ele é muito instável quanto a isso.
- e minha mãe, disse o que?
- nada, Edu. Como sempre.
Termino de guardar as coisas em silêncio, mas com uma certa revolta por dentro. Por que minha mãe é tão passiva? Gostaria de poder enfrentar ele, e ela que pode, não o faz. Eu temo pela saúde dele. Há anos que ele tem esse vício, e eu sei que isso pode o prejudicar. Isso com certeza estragou meu dia.
Ao sair da despensa, coloco meu avental e vou para fora da cozinha ajudar a atender o pequeno público que já estava lá. Já havia escurecido, e eu nem havia percebido. Enquanto pego minha bandeja, Carlos passa por mim bastante ocupado com sua bandeja cheia, e me pede gentilmente para atender o cliente na mesa 9. Ao chegar, me deparo com um jovem, mais ou menos da minha idade.
- boa noite. - o cumprimento de forma amistosa, enquanto entrego nosso cardápio de lanches e bebidas.
- boa noite. - sua expressão era tão amistosa quanto a minha, e ele solta um sorriso gentil enquanto pega o menu. - hum, eu acho que vou comer comida mesmo. Dando um tempo nos lanches. - sua expressão se manteve calorosa, enquanto olhava por entre meia ombros, para a mesa de buffet. Eu sorrio de volta, e pergunto se ele gostaria de alguma bebida.
- claro, um refrigerante de limão, por favor.
- tudo bem, eu já volto com o refri. - digo enquanto anoto em sua comanda e deixo sobre a mesa. Ao chegar no refrigerador, perto da porta da cozinha, ouço minha mãe me chamando.
- me chamou, mãe?
- sim filho. Você vai me matar, mas eu preciso que você vá no mercado de novo. Eu esqueci de anotar algumas coisas. Mas são bem poucas.
- tudo bem, deixa eu só terminar de atender um cliente e já volto.
Quando retorno à mesa 9, o rapaz já havia se servido, e me olhava enquanto eu trazia sua bebida. Ele era realmente atraente. Apesar de parecer da minha idade, seu jeito é aparência eram sei lá, diferentes. Parecia um pouco mais adulto. E seu rosto não era familiar. Nunca havia o visto pela cidade, o que é difícil de acontecer, julgando o quão pequena ela é. Tento não olhar tanto para não parecer louco. Após lhe entregar o refrigerante, ele agradece e eu saio um pouco depressa demais para atender minha mãe. Após pegar a nova lista, saio rumo ao mercado que havia ali perto. Como não eram muitas coisas, não precisaria ir até o supermercado que eu havia ido mais cedo. O frio havia ficado mais intenso, fazendo eu colocar meus braços em volta do meu corpo, me abraçando. As compras não demoraram muito. Ao descer a rua em direção ao restaurante, percebo que uma silhueta se forma ao longe, na mesma calçada que a minha. A rua estava deserta, e minha garganta seca. Atravesso a rua, e vejo que a pessoa repete minha ação, e então entro em pânico. Faltava apenas duas quadras para chegar ao restaurante, e eu estava barrado. Respiro fundo e sigo frente, esperando ser apenas exagero da minha parte. Mas quando vejo aquele homem de roupa escura, touca e um rosto nada agradável me fechando na parede, meu coração deu um soco no meu peito.
- fica quietinho ai, e me passa tudo.
- eu não tenho nada, cara.
- passa tudo moleque. Anda.
Eu estava tremendo. Por sorte havia esquecido meu celular lá. E minha mãe havia me dado o cartão de débito pra fazer as compras.
- To falando serio cara, só To com as compras e um cartão de banco. Não tenho mais nada.
Ele então revista meus bolsos e as sacolas. Com seus movimentos brutos, as coisas caem tudo no chão. Então, eu escuto passos em nossa direção, uma voz familiar grita.
- ei, cai fora.
Meu Deus, o garoto da mesa 9. O assaltante então revida.
- cai fora você, moleque.
- deixa ele. - sua expressão era dura, confrontando o homem, que dá um sorriso de escárnio e se vira em direção a ele.
- e você, o que você tem aí?
Mal termina de falar, e recebe como resposta um soco. Então, começa a briga, e eu entro em pânico total. Será que ele estava armado? Eu tinha que fazer alguma coisa, mas minhas pernas não me obedeciam. Quando consigo sair do lugar, vejo que o assaltante é golpeado com um chute no rosto e cai no chão. O garoto da mesa 9 então saca um canivete do bolso. Isso não ia terminar bem.
- cai fora daqui cara. Ninguém quer confusão. Eu não quero te machucar. Só sai daqui.
O bandido, ao ver a lâmina reluzente na mão do garoto, se encolhe. Ele levanta, olha bem pra nós dois, e bufa.
- que se foda.
E então, sai mancando pela rua escura e desaparece do nosso campo de visão. Eu olho atordoado para o garoto, que me pergunta se eu estou bem. Eu confirmo com a cabeça. E então, como que se tivéssemos ensaiado, começamos a rir ao mesmo tempo. Eu nem sabia quem era aquele garoto, mas ele acabara de me ajudar.
- e você, tá bem?
Logo após eu fazer a pergunta, percebo que seu olho está machucado. Ele percebe e então coloca a mão no local, e solta um gemido de dor.
- vem comigo, tem uma caixa de primeiros socorros lá no restaurante.
- não precisa.
- claro que precisa, olha o seu rosto.
- é sério, não precisa, eu moro aqui perto. Mas obrigado mesmo assim.
- eu que agradeço. De verdade, obrigado.
- não precisa agradecer.
Então, eu lhe dou um sorriso de agradecimento com um misto de culpa pelo seu machucado. Não quero nem pensar no que poderia ter acontecido, com aquela faca. Ele me retribui o sorriso, e então se vira para seguir sei caminho, enquanto eu pego as coisas que caíram no chão e coloco de volta nas sacolas. Isso foi realmente surreal. "Que merda foi essa que acabou de acontecer?" Foi insano. A adrenalina ainda corria mas minhas veias enquanto eu entrava no restaurante. Chegando na cozinha, minha mãe me vê e acho que minha expressão a assusta.
- o que foi Edu? E que demora pra ir no mercado ali do lado.
- eu quase fui assaltado, mãe.
O rosto dela empalidece, e eu começo a rir. Acho que ainda estou no momento pós traumático. Automaticamente ela pula em mim e começa a me analisar dos pés à cabeça, enquanto me enche de perguntas.
- mãe, eu to bem, eu juro. O cara nem levou nada. Um rapaz me ajudou na hora.
- mas e ele, tá bem? Onde ele tá?
- ele tá bem mãe, só com um olho roxo. Mas ele disse que mora aqui perto.
Minha mãe ainda está em choque, e eu acho que ela está exagerando. Eu decido pegar as coisas e guardá-las para ver se o clima melhora. O tempo passou voando, e quando me dou conta, o restaurante fechou. Enquanto eu varro o chão e limpo as mesas, fico lembrando do que aconteceu. Aquele garoto realmente foi muito corajoso. Fico preocupado em relação a seu olho. "Eu deveria ter feito alguma coisa." Fiquei parado igual um idiota enquanto ele e o assaltante trocavam socos e chutes. Sou um mole mesmo.
Sigo para casa quieto, apenas admirando a noite fora da janela do carro entre os borrões das árvores e o céu limpo e brilhante. Minha mãe deixa minha tia em casa no meio do caminho, então seguimos para nossa casa. Ao chegar, enquanto minha mãe estacionava o carro na garagem, eu faço a frente e abro a porta da sala, me deparando com meu pai dormindo no sofá, e a televisão ligada em um canal qualquer. Vejo duas latas de cerveja vazias no chão próximo dele. Pego-as com desaprovação e jogo-as no lixo da cozinha. Ainda bem que minha mãe não viu. Isso seria ainda pior pra ela, depois do que minha tia me contou mais cedo. Subo direto para meu quarto e ligo o computador. Preciso terminar meu trabalho de história. Normalmente eu não desanimo sobre coisas da escola, mas talvez meus colegas tenham razão. Professor Guedes não perde tempo. Eu estou esgotado, meu dia foi muito mais agitado do que eu pensei que seria, e eu ainda tenho umas dezenas de páginas pra resumir e imprimir. Quando termino de fazer a síntese dos textos, já são quase 2h da manhã. Coloco tudo pra imprimir enquanto desço para tomar um copo de suco e beliscar alguma coisa. Meu pai já não estava no sofá, então presumo que minha mãe o acordou. - e sentiu seu hálito de álcool.
Ao retornar para meu quarto, pego as folhas avulsas na bandeja da impressora e me sento para dar uma última lida. As palavras já começavam a ficar embaralhadas, e o sono estava me vencendo. "Só mais uma página, e eu acabo." Repetia em minha mente. Então, em algum momento, caio no sono ali mesmo.
Acordo com os raios do sol batendo na minha cara, e então me dou conta do que aconteceu. "Merda."
Estou debruçado sobre a escrivaninha, com o trabalho de história todo espalhado na mesa, e com dor no pescoço. Olho no relógio, e já são 7:15. "Merda de novo." Salto da cadeira procurando por meu uniforme, e cambaleio até o banheiro para escovar os dentes o mais rápido possível. "Por que ninguém me acordou? Não notaram minha ausência na mesa do café?" Me pergunto ressentido. Ao sair do banheiro, consigo ouvir ao fundo o ronco do meu pai. Desço as escadas e vejo um bilhete na geladeira. É a letra da minha mãe.
"Filho, tive que sair mais cedo pra resolver umas coisas no centro. Seu pai está dormindo. Tem café quente em cima da pia. Coma alguma coisa antes de sair. Te amo. Mae. "
Apenas pego uma maçã na fruteira ao lado da geladeira e corro pra porta da frente. "Talvez eu devesse ir de bicicleta. Esperar o ônibus não vai dar tempo." Penso comigo mesmo. Mas o caminho é longo, não vale a pena. Então, avisto o ônibus dobrando a esquina lá embaixo, e corro para o ponto para pegá-lo.
Ao chegar na escola, me seco dos respingos da garoa que havia começado pouco depois de eu entrar no ônibus. Corro até a secretaria para registrar o atraso, e ao abrir a porta, esbarro em alguém. Mesmo antes de ver quem era, já peço desculpas. Mas quando me viro, para minha surpresa, lá estava o diretor Alvarenga conversando com... o garoto da mesa 09.