O CRIME DOS VIEIRA DE MELO - Parte 07
UM FOGARÉU ENTRE AS PERNAS
O sol já estava alto quando João Paes Barreto abriu os olhos ainda sonolentos. A primeira coisa que viu foi um negro de cócoras sobre o tronco à beira do rio. Este tinha uma carabina de cano longo apoiada nas coxas e olhava distraidamente para uns galhos que eram levados pela parca correnteza. O jovem espreguiçou-se, sem dar muita atenção ao negro. Este sequer voltou-se quando ouviu o balbuciar do moço. Mas falou, ainda sem se virar:
- Bom dia, sinhozinho. Vejo que teve uma noite movimentada.
- Bom dia, Mtumba - cumprimentou finalmente o jovem - O que faz aqui?
O negro desceu do tronco, apanhou as roupas do rapaz e levou-as até ele. Só então, respondeu:
- Como o sinhozinho não apareceu no engenho, eu vim procurá-lo bem cedo. Não achei a vossa montaria, mas li os rastros no chão. Contei quatro pegadas de mulher e duas de montaria. Uma delas parecia de uma égua, já que levou rola bem aqui, onde se vê os cascos mais afundados e apenas seis pisadas - apontou o negro, sem olhar para o jovem que se vestia.
- Está ficando descuidado na leitura de rastro, Mtumba - riu o jovem - apenas três mulheres estiveram comigo, e não quatro como deduziu.
O negro, que tinha os cabelos encarapinhados todos brancos, mas não aparentava ser um idoso, olhou com o cenho carregado para João Paes Barreto. Parecia que ia responder de forma agressiva ao jovem. Mas respirou fundo, cuspiu na areia uma mancha amarronzada de fumo mascado e falou tranquilamente:
- Quanto mais velho, menos besta eu fico. O sinhozinho esteve observado e não percebeu. Está esquecendo os ensinamentos que venho lhe dando desde que você era ainda um pimpolho.
João Paes olhou ao redor, visualizando as pegadas na areia, mas ainda estava convencido de que o negro havia contado mal o número de mulheres. Claro que sempre confiava no velho escravo, mas não ouvira ninguém se aproximar do rio a não ser a sinhazinha e as duas negras. Antes que ele perguntasse, o negro apontou para uns arbustos próximos. O jovem foi até lá e examinou o chão. Haviam pegadas não muito profundas na terra. De pequenos pés, indicando pertencerem a uma mulher. No entanto, não ultrapassavam os arbustos, voltando dali para a estrada. Realmente: alguém estivera espiando. Só não dava para saber se espiava dali antes ou depois que a sinhazinha havia ido embora. Mediu com o olhar o tamanho das marcas deixadas e comparou-o com as outras pegadas. Sim, pertenciam a uma pessoa que não era nenhuma das irmãs. Ficou preocupado. Será que a sinhazinha havia sido seguida, quando voltou à noite para encontrar-se com ele?
Nesse ínterim, o negro despiu-se totalmente. Antes, vestia-se como um lorde: tinha uma cartola de feltro na cabeça e portava um casaco de tecido caro, talvez importado da França ou Inglaterra. As calças brancas de linho eram coladas ao corpo, deixando ver, pelo volume, que era muito bem dotado. Um colete de seda e uma gravata do mesmo tecido completavam sua indumentária. Estava melhor vestido do que o sinhozinho. No entanto, não calçava sapatos. Seus pés eram grandes e seus passos firmes, apesar de já beirar os setenta anos. Depois de arrumar cuidadosamente as roupas no tronco, lançou-se ao rio, nadando com desenvoltura. Mergulhou algumas vezes e finalmente voltou à margem. Vestiu-se e depois levou dois dedos da mesma mão aos lábios, assoviando alto. Uma mula, carregada de mercadorias em duas cestas de cipós, uma de cada lado, apareceu de entre as árvores, relinchando. O negro lhe afagou o focinho e pegou-a pelas rédeas.
- O sinhozinho vai precisá de mim? - perguntou ao jovem que sentara-se no tronco para calçar as botas de couro de canos longos.
- Sim. Foi bom você ter aparecido. Preciso ir buscar meu cavalo no Engenho Pindobas - disse o moço - e vou precisar da mula com provisões. Vamos oferecer sua mercadoria lá.
- A sinhazinha, filha do arrendador do engenho, é quem esteve com o sinhozinho? Se assim foi, o patrão vai me desculpá, mas não é saudável irmos até lá - argumentou o negro.
- E por que não seria saudável? - inqueriu o jovem, com ar divertido.
- Dizem que o arrendador, um senhor Francisco de Tal, é tido como homem violento. É apadrinhado do fidalgo Bernardo Vieira, que destruiu nosso quilombo em Palmares. Não gosta de negros. Ele pode estar lá e não apreciá a minha presença.
- O Engenho Pindobas possui vários negros e precisa da mão de obra deles para moer a cana. E, para todo efeito, você estará vendendo as minhas mercadorias. Ele não irá querer me fazer nenhuma afronta - rebateu João Paes.
- Se o sinhozinho permitir, eu tenho ideia melhor - resmungou Mtumba.
O negro não disse mais nada. Puxou a mula pelas rédeas e seguiu acompanhando o sinhozinho. Ambos estavam a pé, pois a mula estava muito carregada. Havia galinhas vivas, amarradas pelos pés e penduradas nos cipós das cestas, de cabeça para baixo. Também tinha roupas masculinas e femininas nos cestos, misturadas com farinha de mandioca, temperos em potes, carne seca, toucinho, além de várias peneiras e abanos feitos de palha. Havia sacos de pólvora, esferas de chumbo para serem usadas como munição, e uma série de quinquilharias comuns aos mascates da época.
Ana de Faria estava à janela do primeiro andar da casa grande, quando avistou os dois se aproximando do engenho. Não reconheceu o moço imediatamente. Mas, quando o fez, sentiu um baque no coração. O moço mostrava-se corajoso em procurá-la, mas poria em risco um novo encontro entre os dois. O pai ainda estava em casa e iria estranhar a visita do rapaz. Ficou sem saber o que fazer. Procurou as duas negras que mandara dar-lhe um recado e não as encontrou. Gritou por elas, mas ninguém atendeu. Então perguntou por elas à escrava Eulália, que estava agora cuidando da limpeza da casa grande.
- As duas escravas por quem a sinhazinha procura estão no tronco. O patrão mandou açoitá-las logo cedo, assim que voltaram do rio, depois de dar o recado que a sinhazinha mandou - disse a negra, que devia ter a mesma idade de Ana de Faria.
A moça gelou. Se estava nervosa com a vinda do moço, ficou mais ainda em saber que as duas irmãs haviam sido flagradas depois do mandado dela. Temeu que seu pai já soubesse do encontro com o jovem, retirando essa informação às custas de chicotadas no lombo das pobres escravas. Era preciso avisar ao rapaz de que ele não deveria se aproximar da casa grande. Seu pai não deveria encontrá-lo ali. Aí a negra Eulália avistou os homens se aproximando da casa e olhou maliciosamente para a moça, perguntando-lhe:
- Ah, lá vem o moço com quem a sinhazinha se encontrou ontem. É muito corajoso em vir aqui, depois de foder aquelas irmãs oferecidas. Duas putinhas da pior qualidade.
Do que está falando? - perguntou a sinhazinha, lívida.
A outra deu um riso sarcástico e se afastou, sem se explicar, voltando aos seus afazeres. Ana de Faria teve ganas de esbofeteá-la. Percebeu que a negra havia alcaguetado as irmãs, e quem sabe ela própria, ao senhor do engenho. Sabia que existia uma grande rixa entre as negras da senzala e as que cuidavam da casa grande. Todas queriam o status de estar junto aos patrões. Mas estava muito preocupada com a visita do jovem e precisava fazer algo imediatamente. Depois cuidaria da escrava Eulália. E esta teria o castigo merecido, apesar de ser contra o espancamento de negros. Entrou em seu quarto e trancou a porta com o grande ferrolho. Arrependeu-se e destrancou-a, novamente. Correu para a cama e deitou-se, cobrindo-se com o lençol.
O pai de Ana de Faria avistou a dupla se aproximando. Chamou um dos filhos, que estava por perto. Este veio armado com uma carabina, quando percebeu a arma que o negro portava. Ele olhou para o pai, interrogando-o de forma muda. O senhor Francisco de Souza disse para que ficasse atento, pois não conhecia os visitantes. O rapaz escondeu-se por trás de uns barris que estavam empilhados perto da casa e aguardou os acontecimentos.
João Paes cumprimentou o homem que aguardava à sombra do alpendre.
Não disse seu próprio nome, mas apresentou o velho escravo e completou oferecendo mercadorias. O dono do engenho, no entanto, estava de cara amarrada. Vociferou:
- Vosmecê não é o cabra safado que andou se enxerindo para a minha filha lá no rio?
João Paes foi pego de surpresa. Não esperava por essa recepção agressiva. Muito menos, que o homem soubesse de suas intimidades com a filha.
- Acho que está havendo um grande engano, meu senhor. Eu nunca vim nesse engenho e não conheço sua filha - gaguejou ao mentir.
- Eulália - berrou o homem - venha já para cá.
Mais que depressa, a negra deixou seus afazeres e assomou à porta da casa grande. No entanto, ao ver o negro ao lado do sinhozinho, tomou um enorme susto. Reconheceu-o de pronto. Aproximou-se dos visitantes e ajoelhou-se aos pés de Mtumba, fazendo reverências, para a surpresa do senhor e do seu filho, que permanecia escondido.
- O que está fazendo? - berrou o senhor do engenho - Que diabos está acontecendo?
- Que me perdoe o meu senhor e dono, mas este é o meu amado rei. Um guerreiro valoroso e muito respeitado pelo povo de Angola - disse a escrava, com os olhos brilhantes de orgulho. Nós pensávamos que estivesse morto.
Mtumba pediu para a jovem se levantar e beijou-a na testa. Depois olhou-a, por um instante, bem dentro dos olhos, para depois dizer:
- Antes do povo branco me tornar escravo, fui um rei estimado, senhor. Acredito que muitos dos negros deste engenho pertenceram à minha tribo. Fomos derrotados pelos paus de fogo dos brancos e trazidos de Angola para esta terra distante, porém nunca fui capturado aqui. Agora, tornei-me um rico comerciante - explicou o altivo negro, com voz muito calma.
- Tornou-se um maldito mascate, isso sim - rugiu o português - e que diabos veio fazer em minhas terras? Quem é esse branco que viaja com um negro repugnante?
João Paes crispou os punhos, mas o negro fez um gesto imperceptível para que ele não se alterasse. Puxou o jovem pela manga da camisa, fazendo com que ele desse um passo à frente.
- Este é meu escravo, que me ajuda a vender as mercadorias que importei da Inglaterra - disse o negro, sem alterar a voz.
Francisco de Souza fez cara de espanto, antes de falar:
- Escravo? E quem já viu branco ser escravo nessas terras de Meu Deus? Pior ainda: escravo de um negro sujo? - Bufou o homem, quase tendo um troço.
- Se vocês brancos tem o direito de escravizá um negro, por que não tenho o direito de fazer o mermo com um branco? Tenho bastante dinheiro que dá prá sustentá-lo! - Mtumba enfrentava o dono do engenho sem, no entanto, alterar a voz.
O senhor de terras olhou demoradamente para João Paes. Estava incrédulo das palavras do negro. Mas o jovem apenas baixou a cabeça humildemente, como se fosse submisso ao velho comerciante.
- Você não tem vergonha de se submeter a um negro desclassificado desse? - perguntou o português, quase escarrando de asco do rapaz.
A robusta senhora, mãe de Ana de Faria, assistia a tudo lá do primeiro andar da casa. Ao ouvir os berros do pai, a moça saiu do quarto e assomou à janela, postando-se ao lado da mãe.
- Você não me engana. Eu te vi saindo da casa já tarde da noite. Depois vi as duas negras saírem, assim que te deixamos no quarto. Deixei teu pai dormir, pois não queria um escândalo, e ordenei que a preta Eulália seguisse as irmãs até o rio. Ela as flagrou fornicando com um jovem, que acredito piamente ser aquele jovem ao lado do mascate - disse baixinho, mas rangendo os dentes, a matrona.
A moça ficou branca como uma vela de oratório. Estava se tremendo toda, quando tentou negar o que a mãe afirmava. Mas a senhora estava convicta do que falava, mesmo sem saber o motivo da filha ter aceitado o enxerimento de um escravo de negros, pois acreditava que o mascate estava dizendo a verdade. Viu duas lágrimas escorrerem dos olhos da filha e ficou convencida da sua culpa. Sussurrou entredentes:
- Não vou me submeter ao escândalo de ver minha filha perdida com um imprestável vassalo de tição. Assim que seu pai se resolver com esse mascate nojento, vou contar que nossa filha agora passou dos limites. Lembre-se de que está prometida ao filho do nosso protetor, e eu não vou deixar você jogar na lama a honra da nossa família!
Ana de Faria pretendia correr de volta ao quarto, chorando. Não pela vergonha de ter sido descoberta, mas sim por causa da decepção em saber que o jovem fornicara com as escravas. Mas aí, ouviu seu pai perguntar de novo ao moço:
- Responda à minha pergunta, desclassificado. Andou se enxerindo para a minha filha, lá no rio?
Antes que o jovem fizesse menção de responder, a negra Eulália adiantou-se e disse com firmeza:
- Não, meu senhor, não foi esse jovem que encontrei lá no rio. E eu menti sobre as escravas fornicando. O senhor e meu dono me perdoe, mas eu estava com raiva delas por motivos meus e achei que era a oportunidade de me vingar das duas.
- Joaquim! - gritou o homem, olhando em direção às barricas - leve essa maldita negra mentirosa para o tronco e dê-lhe uma surra!
- Não, meu senhor, não me bata. Eu não quero morrer de apanhar no tronco. Tenha piedade...
Joaquim, o filho do dono do engenho que estava escondido e armado, veio com sua carabina e pegou a negra apavorada pelo braço. Arrastou-a à força, pretendendo levá-la ao pelourinho. Esta berrava por perdão, olhando para o mascate e o moço ao seu lado. Pedia ajuda com o olhar. Porém, o próprio dono de terras berrou a solução:
- Quer trocar seu escravo branco por minha negra mentirosa, mascate?
Quando João Paes ia intervir, o negro falou tranquilamente:
- Meu escravo é forte, jovem e muito trabalhador. Troco-o por três negras do sinhô. E ainda lhe volto um vestido de seda para a senhora sua esposa.
A proposta pegou o homem de surpresa. Até seu filho parou de arrastar a negra, esperando ouvir a resposta do pai.
- Feito. Mas eu escolherei as outras duas negras para a troca - retrucou o senhor gorducho.
João Paes fez um sinal imperceptível para o negro, indicando que ele aceitasse. Este resmungou algo e o dono de engenho deu nova ordem ao filho:
- Traga as duas que estão lá no tronco. Que peguem suas tralhas e sigam o maldito mascate!
- Tem mais uma coisa, senhor - voltou a falar o negro - eu vim em busca de um garanhão fugido. E sei que ele está nesta propriedade.
O homem foi tomado de fúria. Vociferou para Mtumba, dando um passo à frente, fazendo menção de esbofeteá-lo.
- Está insinuando que roubei seu cavalo, negro maldito???
- Não senhor. Tenho respeito por vossa senhoria e sei que não faria um ato tão torpe. O bicho escapou das rédeas e correu atrás de uma égua. Se vosmecê me permite, posso chamá-lo com um assovio.
Sem esperar que o plantador de cana autorizasse, o negro pôs dois dedos nos lábios e emitiu um silvo. Logo, ouviu-se um barulho de trote e apareceu um garanhão seguido de uma égua. Este veio diretamente para perto do negro e encostou-lhe o focinho na mão, como se procurasse comida. Depois, encostou a cabeça nas costas do jovem, como se lhe fizesse um afago. Estava de pau duro e molhado, como se estivesse fodendo a égua.
- Entre já no seu quarto, para não ver essa pouca vergonha - disse a matrona para a filha, que fez imediatamente o que a mãe disse, quase sem disfarçar o sorriso de felicidade no rosto. A negativa da negra, dizendo ter mentido, abrandou seu coração. Na verdade, nunca acreditara mesmo na traição do jovem, por quem se achava apaixonada. Deitou-se na cama e fechou os olhos, se pondo a sonhar com a coragem e esperteza dele para se aproximar da casa grande. Deu uma coceira gostosa entre as pernas, e ela percebeu estar excitada. Os bicos dos seios estavam também eriçados. Levantou a saia de tecido rude e levou a mão à vulva. Um fogaréu parecia consumir todo o seu corpo. Lembrou-se de que a mãe costumava friccionar a boceta enquanto levava a rola do seu pai no rabo...
FIM DA SÉTIMA PARTE