CAPÍTULO UNICO
Minha família sempre foi muito religiosa. Seguia os princípios cristãos a risca. Fez questão de colocar eu e meus dois irmãos nos colégios mais cristãos da cidade. Tinham horror a gays, e tudo aquilo que as igrejas pregam como errado.
"- Que coisa feia ! - diziam eles, enquanto nós passávamos na rua e víamos um casal de adolescentes correndo de mãos dadas - crianças, não olhem para isso. Eles são aberrações !"
A nossa família prosseguia alegre e unida, até que nós chegamos a adolescência. Meus irmãos continuavam seguindo a risca os princípios cristãos, traziam seus namorados(as) em casa, enquanto eu não trazia ninguém em casa. Mas não era por mal. Eu não me sentia igual aos outros garotos. Tinha fascínio por ver os casais de homens juntos. Não via nada de errado naquilo. Me parecia apenas mais uma demonstração de carinho e afeto, apenas isso. Aos poucos, descobri que os garotos me atraíam. Na aula de Educação Física, aqueles corpos malhados atraiam a minha atenção. Na Igreja, os garotos bonitos membros da banda me faziam acelerar o coração. E foi assim que tudo começou.
"Chegava para mais um culto na Igreja quando de repente vejo um garoto novo no meio dos membros da banda. Lindo, moreno, usava franja, magro mas com alguns músculos, de longe dava para se ouvir a voz grave, olhos castanhos, sorriso branco e lindo. Sempre que eu listava as características de um garoto desta forma, tentava tirar da mente balançando a cabeça, como se isso fosse mudar o meu gosto. Mas eu sabia o que realmente sentia. E o que eu sentia era condenado por todos ao meu redor. Talvez até por ele. A partir dali, todo domingo ele passou a tocar na banda, como baterista.
"- Quem é o novo baterista ?
- O nome dele é Marcelo, porquê ?
- Ele toca muito bem !"
Eu, que já era um grande entusiasta da igreja por causa dos meus pais, passei a ir cada vez mais por causa dele. Porquê ver ele fazia eu me alegrar e porque eu já não conseguia mais negar para mim mesmo qual era o meu real gosto sexual. Eu era uma "aberração", segundo os meus pais, apesar de isso pra mim ser tão natural quanto mudar de voz. Certa vez, ele estava tocando quando percebi que seu olhar estava concentrado na minha direção. Olhei ao redor, buscando ver se havia alguma garota ali para qual ele estivesse olhando, mas não, ele realmente estava olhando para mim. Achei aquilo muito estranho mas nada falei. O culto continuou, terminou. Meus pais como sempre ficavam ainda um bom tempo, conversavam com o pastor, pediam uma pizza, enfim, se enturmavam na comunidade. Eu costumava andar por todo o grande espaço da igreja, que era enorme. Assim, andando, foi que eu encontrei a porta que dá acesso a laje mais alta do prédio. E passei a ir toda vez depois do culto para lá. Naquele dia, porém, quando cheguei ali percebi que já havia alguém.
"- Porquê eu estou sentindo isso meu Deus ? Por um garoto ! - foi só o que eu ouvi quando cheguei. Na hora não entendi o porquê ele estava falando aquilo. Pensei em voltar antes que ele percebe-se, porém não vi um fio desencanado perto da escada e acabei tomando um choque. Como consequência gritei.
- Aí !!! - imediatamente ele virou e me olhou.
- Oh... Como veio até aqui ?
- Do mesmo jeito que você, eu acho.
- Pensei que só eu conhecesse esse lugar.
- Não, eu também conheço. E venho aqui a mais tempo que você, pelo jeito - voltei, assoprando a mão depois do choque.
- O que houve ?
- Tomei um choque num fio desencanado ali.
- Deixa eu ver - de repente ele tocou a minha mão e a puxou. Por algum motivo naquele momento meu coração acelerou, e foi como se a dor tivesse passado - parece que não queimou.
- Não... Tá até passando a dor agora... - nós dois olhavamos para a minha mão, mas de repente ele subiu o olhar e passou a me olhar.
- Qual o seu nome ?
- Ícaro... O seu é Marcelo, não é ?
- Ué ? Como sabes ?
- Me falaram...
- Ah - o sorriso dele era lindo e... Aquela voz... Era incrível !
Nossa relação, durante alguns meses se resumiu nisso. No culto de jovens, depois dos cultos, sem ninguém ver subiamos até a laje e ficávamos oras lá, conversando e vendo as estrelas. Durante esse tempo descobri algumas coisas dele.
"- Então você não namora ?
- Não... Acho difícil que eu vá encontrar a cara metade que eu tanto desejo neste mundo.
- Porquê ?
- Porquê seria proibido... - não entendi na hora.
- E o que você mais gosta de fazer ?
- Tocar,cantar, ver filmes, enfim... Gosto de tudo que nós jovens gostamos. Menos as festas é claro, não vejo nada de bom nelas...
- Parece que eu tenho uma cópia de personalidade "
Nos falávamos também pelo WhatsApp, mas nada mais que isso. Tudo isso mudou quando chegou o Natal e a igreja fez uma festa e levou vários fiéis para um sítio no interior. Dentre esses filmes a minha família e a dele.
"- Ícaro ! - ele gritava, me chamando - Achei que não iria vir.
- Mas nunca que minha família ia perder esse passeio.
- Sei... Então, vamos jogar uma bolinha ?
- Só se for agora !"
A partir daquele dia nossa intimidade aumentou um pouco e ele me convidou para sair algumas vezes. Eu, sempre gostei muito, por que é agradável sair com ele e estar em sua companhia.
"- Então você não gosta de Wasabi ? - perguntava, enquanto comiamos sushi em um restaurante.
- Não, detesto, uma pasta ardida, não tem nada de bom.
- Mas você sabia que ele vai em alguns hossomakis ?
- Sério ?
- É !"
Ele me fazia rir e me fazia sentir-me bem. E principalmente, era muito protetor.
"- O Que ? Aonde você está ?
- Ainda estou no ponto de ônibus. Eu perdi o ônibus e ele está demorando a passar.
- Nossa, mas você pode ser assaltado, já vai dar 00h.
- Eu sei, mas o que posso fazer...
- Você não disse que está num ponto de ônibus bem perto do meu apartamento ?
- Sim, fica a umas duas ruas.
- Então espera, eu vou te buscar aí de moto.
- Mas... E como irei para casa ?
- Amanhã você vai. Agora não é mais hora de estar na rua. Fica de olho que eu já chego aí "
Demonstrava preocupação, sempre ligava para saber se estava tudo bem e se eu queria alguma coisa. Me presenteava.
"- Oi ? - dizia ele, assim que eu saía da escola a noite. Desde aquele dia que eu perdi o ônibus ele vinha sempre que podia.
- Oi... Veio de novo ?
- Sim. Não lembra que eu disse ao seu pai que levaria você para casa toda noite.
- Sim... Mas...
- Eu cumprirei a minha promessa. Tava andando no Centro hoje e vi um ursinho lindo - falou, tirando do bolso um lindo chaveiro de panda - você pode colocar na mochila.
- Ah, que lindinho. Obrigado Marcelo ! "
Aos poucos dentro de mim o sentimento já não era apenas uma amizade qualquer. Era mais. Eu sentia algo a mais por ele. Não queria. Vivia negando para mim mesmo. As vezes até doava os seus presentes, como uma forma de tentar esquecer um pouco o que eu estava sentindo, mas não adiantava de nada. Todos diziam que era errado, que era pecado, mas era o que eu sentia e para mim isso é natural. Uma noite, porém, minha irmã 2 anos mais nova estava acessando o facebook pelo meu celular, já que o dela havia trincado e estava impossível de se mexer. Mas na verdade, ela não estava apenas vendo a rede social. Estava vendo a minha galeria. E ela estava cheia de fotos deles. Tanto nos momentos em que estivemos juntos, quanto fotos que tirei de outros lugares. Obviamente, ela correu para contar a mamãe.
"- Ícaro ! - invadiu o meu quarto de uma vez enquanto eu lia a Bíblia na cama.
- O que foi mãe ?
- Como você explica esse monte de fotos do Marcelo no seu celular ? - gelei na mesma hora.
- Mãe... Eu posso explicar...
- Explicar o que ? E essas montagens ! Que... Que coisa é essa... Você é viado por acaso ? É Marica !
- Não mãe, eu...
- Que não... Tá na cara ! Eu não sou burra ! Que desgosto meu Deus. Ter uma aberração como filho.
- Mãe... Não fala assim...
- Eu falo ! Eu falo porque é isso que você é ! Que nojo eu tenho de você, eu..."
Ela falou tantas coisas feias, me agrediu tanto que em um momento eu não tinha mais forças para ouvir. O meu maior medo é que ela contasse para ele, e ele simplesmente repetisse todo o discurso dela. Eu ficaria com o coração dilacerado. Comecei a ser acusado das piores coisas. De repente nada de bom que eu houvesse feito até ali valia. Não adiantou eu ser um bom filho, respeitar os pais, ter ótimas notas, boa conduta... Nada disso adiantou. Para eles, só o fato de eu gostar de outro homem já anulava todo o resto. E aquilo continuou. E eles contaram para mais gente. E todos me condenavam. E começaram a restringir a minha vida, querer mandar no meu gosto de roupa, do cabelo. Eles não me ouviam. Eles ao menos pensaram se eu não estaria sofrendo ouvindo todos aqueles insultos das pessoas que mais deviam me resguardar do mal alheio. Aquilo já estava ficando insuportável. Eu já não queria mais viver. Foi quando tomei uma decisão. Eu iria me jogar da ponte e tudo isso iria acabar. Tinha certeza que Deus me perdoaria, depois de ver o motivo de ter feito aquilo, o tanto que eu sofri. Peguei o carro do meu pai num descuido dele e sai dirigindo. Tinha apenas 16 anos, mas eu sabia dirigir. Me encaminhei para a ponte mais alta da cidade. Decidi parar o tráfego, para que ninguém viesse me incomodar quando eu estivesse fazendo o ato. Antes de pular, decidi mandar uma mensagem para ele.
" Marcelo, sou eu. Decidi mandar essa mensagem para você, para avisar que não aguento mais viver. Meus pais descobriram uma coisa sobre mim. Que eu me apaixonei por você. E desde aquele momento eles e todas as pessoas me crucificam como se eu fosse a pior pessoa do mundo. Me chamam dos piores nomes. E nem ligam para o meu sofrimento. Você é um ótimo garoto e espero que não sinta raiva de mim quando ler isso. Mas eu não mereço mais ouvir tanta maldade. Não mereço ! Adeus "
Mandei a mensagem, vi ela sendo visualizada e então atirei o celular no meio do chão. Pulei a mureta, olhei para o chão. Era realmente muito alto, não tinha como eu sobreviver a aquela queda. Durante alguns segundos refleti. Busquei inspiração, e pensei se era realmente aquilo o melhor para mim. Eu queria acabar com todo aquele sofrimento. Seria para todos. Para os meus pais, que não mais precisariam ver a minha cara de aberração desfilando pela casa. Para as pesosas, que tinham vergonha da minha existência. E para mim, já que não sofreria com os insultos e com a falta de amor. Olhei mais uma vez para o chão. Já tinha tomado a minha decisão. Eu ia pular. Tomava impulso quando escutei uma voz.
- Não, não faça isso garoto ! - virei o rosto, e vi um homem atrás de mim - você não pode destruir a sua vida assim. Você é muito jovem, tem muito a viver, pode superar o problema que está vivendo. Se pular desta ponte, não vai sobreviver. E não existe outra vida, existe apenas uma.
- Quem é você ?
- Quem sou eu ? A pessoa que quer evitar que o seu fim seja o chão. Me chamo Agnaldo. Tenho 35 anos. Eu... Já lidei com outro suicídio antes ?
- Como assim ?
- Bem... A pessoa que eu amava... Ela... Se matou para aliviar as dores.
- Quem era essa pessoa ?
- Um homem.
- Um homem ?
- É, um homem. Eu sou cantor sabe ? Conheci ele num dos meus shows. Era tão bonito, mas tinha uma família cheia de religiosos, Não aceitavam de jeito nenhum que ele tivesse uma vida fora da igreja - nossa, como era parecida com a minha história - eu tinha consciência da minha homossexualidade, mas ele ainda se descobria. Nós nos aproximamos, começamos a namorar. Tudo continuava indo bem, eu e ele estávamos felizes, até que os pais dele descobriram. Meu Deus, foi um estardalhaço. Naquele época, era considerado doença ser assim. Ele era criticado por tudo, por todos e não me falava nada. Certo dia, eu apenas recebi a notícia, ele havia se jogado da ponte. E eu já tinha até comprado uma aliança de relacionamento, pois queria realmente assumir algo Sério e duradouro com ele. Ele abreviou a vida dele, achando que aquela era a melhor alternativa, que acabaria rapidamente com o sofrimento, mas não pensou no seu redor. No quanto as outras pessoas sofrem também. Seus pais enlouqueceram, pois passaram a se culpar pela morte do filho. Muitos outros pais descobriram a homossexualidade dos filhos. E eu... Eu fiquei sofrendo... Ele tinha tanto futuro... Queria ser Médico. Era inteligentíssimo. E escolheu desperdiçar a única vida que Deus lhe deu. Garoto, não sei seu nome, a sua idade. Mas tenha certeza, essa não é a melhor alternativa - ao ouvir aquilo de alguém, fiquei balançado. Comecei a recuar e, acabei me sentando na mureta.
- A minha história e parecida com a sua. Só que no meu caso, eu sou o filho dos religiosos. Eu estou ouvindo xingamentos. E até agora, eu e o garoto nem ao menos trocamos um beijo. Dói tanto, ouvir tudo aquilo. Que eu pensei que era melhor acabar com tudo isso e fazer eles felizes.
- Seus pais não serão felizes com a sua morte. Pelo contrário, eles se culparao para sempre. Além disso, você aparenta ser jovem. Pode superar isso. Fazer uma universidade. Ser bem sucedido. Você tem a vida inteira pela frente - comecei a pensar. Realmente ele tinha razão. Eu era jovem. Poderia contornar tudo isso. Eu só tenho uma vida, não posso acabar com ela assim. Já ia sair da mureta, quando ouço aquela voz.
- Naaaaooo ! - quando virei o rosto, percebi que era ele, vindo correndo na minha direção.
- Marcelo !?
- Não... Não faz isso, pelo amor de Deus - quando se aproximou de mim, estava ofegante - por favor, sai daí, não se mate, por mim. Eu gosto muito de você, eu... Eu não sei viver sem você ! - ouvir tudo aquilo de repente fez meu coração acelerar. O céu de branco, ficou azul. E parecia que a alegria retornava ao meu peito.
- Marcelo...
- Vem ! - deu a mão, para mim. Eu peguei, e começei a sair. Quando sai, ele me puxou fortemente para um abraço - nunca mais faça isso de novo ! Você sabe o medo que eu senti de te perder ? Você ao Menos pensou no que eu poderia sentir ? - pude sentir suas lágrimas caírem no meu ombro. Eu não aguentei. Todo o extresse do momento veio em forma de lágrimas.
- Eu achava que você iria me odiar quando soubesse.
- Porquê odiaria ?
- Porquê nós somos dois garotos... - ele ficou em silêncio.
- Eu já pensei muito sobre isso... Eu... É tão natural... Eu pensei em deixar tudo acontecer, apenas isso. Não restringir, não negar. Porquê o que eu sinto por você é paixão. Eu estou apaixonado por você - falou, me apertando ainda mais - nunca mais faça isso ! - foi só então que eu notei a real consequência do que eu iria fazer. Sofrimento. Para todos. Todos iriam sofrer com minha morte. Algo que era para aliviar o sofrimento, iria nos fazer sofrer ainda mais.
- Marcelo ?
- O Que ? - beijei o seu rosto.
- Obrigado por não ferir os meus sentimentos - ele virou levemente o rosto, nossos olhos se encontraram. E a força que os mantinham unidos logo uniram também as nossas bocas. Pouca idade, mas uma grande história. O suicídio não é a melhor opção. A melhor opção, é amar !
FIM
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