1ª PARTE
CAPÍTULO 2
ENTRE AQUELE HIDRANTE E AQUELA FARMÁCIA
2004
Jorge agora era delegado. Grande, dono de uma barba já em sua maioria cinzenta, não perdeu o aspecto carrancudo, muito pelo contrário, a solidão e o trabalho fizeram com que sua aparência exalasse mal humor, mesmo que estivesse feliz, sua afeição era a mesma. A vida era cruel e, por hora, ele também. Jorge era jurado de morte todos os dias, tinha grandes inimigos na cidade e por entre os policiais também, porém, seu foco era preciso, ele era o que tinha que ser, estava onde tinha que estar e fazia o que tinha que fazer. Sua vida era o seu trabalho, e ele gostava de ser impecável, chegara até ali sem passar por cima de ninguém e secretamente se orgulhava disso.
Anos atrás chegou perto do suicídio, suas dores eram por demais cruéis com ele, não as cicatrizes, mas sim as dores das saudades, as sequelas que Elaine havia deixado, eram demasiadas profundas. Ele sabia que quem não tivesse vivido o que viveu, não o entenderia e estava satisfeito com não ser entendido, fez da solidão sua casa.
Jorge não gostava de ir pra casa, tampouco tinha coragem de vende-la. As memórias vividas ali, faziam parte de cua carne, gostando ou não. Sua casa era abandonada, irreconhecível se comparada com quando Elaine habitava ali. Por ele, dormiria todos os dias no carro, fazia isso de vez em quando, ou, como estava fazendo agora, dava voltas pelas ruas escuras da cidade com intenção de achar alguma irregularidade e voltar pra delegacia, pois de uma maneira estranha isso o relaxava. Em seu carro Jorge passava pelas ruas em que levava algumas prostitutas para delegacia, ele queria um motivo melhor, como tráfico de drogas ou algum assalto a mão armada se tivesse sorte, mas se não houvesse nada, ele levaria para delegacia algumas prostitutas novamente.
Quase desistindo do seu plano Jorge então recebe uma ligação em que logo percebe que é da delegacia, isso o anima um pouco e ele logo atende:
- Fala! – Diz Jorge que não condiz com a voz dos seus pensamentos a si mesmo e grosseiramente
- Delegado, nós temos aqui algo que talvez chame sua atenção – Disse o o policial tão rápido que se fez difícil de entender.
-Já estou a caminho – respondeu Jorge prontamente.
Aliviado por não ter que voltar pra casa Jorge se dirigiu aliviado e esperançoso que o novo caso o deixasse ocupado a noite inteira. Chegando na delegacia, encontrou Aurélio, na porta do escritório, o atualizando sobre o ocorrido.
-Ele está de volta, Senhor. - Disse aumentando o passo para acompanhar Jorge.
-O que que ele está fazendo aqui agora? – Perguntou Jorge como se sua animação tivesse se esvaído por seus poros.
-Tráfico... E prostituição senhor – Disse Aurélio com esperança de surpreendê-lo, mas em vão.
O Policial abriu a porta de uma pequena sala no fim do corredor onde usavam para interrogatórios e ali sentado estava Mickey, magro, abatido, com feridas em partes do rosto e uma pequena cicatriz embaixo dos lábios próximo ao queixo e inigualavelmente lindo, mesmo que sua incrível juventude tivesse sido roubada dele, Mickey tinha o rosto levemente feminino onde não havia vestígio algum de barba, os olhos grandes e azuis claros, um cabelo curto e tão amarelo que era difícil não chamar atenção por onde passasse.
Jorge não fechou a porta, afastou a cadeira que estava próxima da mesa, respirou fundo e olhou para Mickey que evitava qualquer contato visual.
-Sr. Mickey! – Disse Jorge como se não levasse o garoto a sério – Você pode me dizer o porquê que você está aqui? Pela quarta vez esse ano?
Mickey, permaneceu em silêncio e como se fizesse muito esforço para falar respondeu:
-Eu preciso de... - Começou rocamente.
-Dinheiro? – Respondeu Jorge, como se não levasse Mickey a sério – E você não tá cansado de vir parar aqui? Por que eu tô ficando de saco cheio de ver sua cara Sr. Mickey! – Disse Jorge quase gritando. – Prostituição? É isso agora? O que que você quer pra sua vida rapaz? Você tem 17 anos!
-Não fale como se fosse seu pai! – Gritou Mickey como se tivesse ouvido demais, espairecendo raiva em sua voz.
-Onde ele está inclusive? – Falando no mesmo tom que Mickey – Eu gostaria de ter uma palavrinha com ele.
-Meu pai morreu! – respondeu Mickey desviando o olhar novamente – Chama o Serviço de uma vez, você se livra de mim, eu me livro de você, nós dois saímos ganhando...
-Você sabe que horas são? – Interrompeu Jorge – Que serviço social você quer que eu chame às duas da manhã? O que você quer garoto? - Disse mantendo a voz tão alta que era possível ouvirpelos corredores.
-Comida! – Gritou Mickey,
Fora a primeira vez que Jorge ficara impressionado desde a primeira vez que Mickey tinha aparecido na delegacia, Jorge podia se lembrar de ter se sentido chocado e triste ao mesmo tempo, pois se as coisas tivessem sido diferentes com Elaine, ele teria um filho ou filha de uma idade similar à de Mickey e isso o deixava triste. Os olhos de Mickey eram parecidos com o de Elaine, e Mickey sabia que Jorge não era tão ruim quanto parecia ser.
-Levanta daí, eu te pago um lanche. – Disse Jorge se levantando da mesa, dessa vez evitando olhar Mickey nos olhos.
-...e por favor, me chama de Mike!
-Tudo bem “Senhor” Mike... O que você quer comer?
Jorge saiu e encarou Aurélio, que agora estava sentado falando ao telefone – Senhor?
- Vamos comer, o Policial quer alguma coisa? – Jorge encarou Aurélio com a maior naturalidade possível, como se fizesse aquilo todos os dias, onde Aurélio se encontrou instável querendo saber o que havia ocorrido naquela sala em tão pouco tempo, mas sem coragem de questionar as atitudes do delegado.
- Nã... Não senhor! - Disse encarando Mike.
- Se houver algum problema, resolva! Boa noite! - E saiu, com Mike o acompanhando, dois passos atrás.
-Bo... Boa noite senhor – Respondeu os seguindo com os olhos.
Jorge e Mike saíram pela porta da frente e entraram na vistura policial qe Jorge usava para rondar a cidade. Mike achou estranho estar naquele carro novamente e dessa vez na parte da frente. Os dois permaneceram em silêncio por um tempo, o que pareceu ser a eternidade, mas era apenas questão de segundos, Jorge não sabia começar uma conversa e não entendia porque só agora se sentia desconfortável com a situação, tinha receio de que qualquer coisa que perguntasse parecesse um interrogatório, então toda vez que formulava uma pergunta, desistia de fazer antes mesmo de falar, até que enfim Mike, quebrou o silêncio:
- Por que você é polícia? – Perguntou Mike.
- Por quê? Como assim por quê? Porque eu quis oras!
- Você foi pro exército? – Perguntou Mike corando Jorge, que se sentiu irritado, mas ignorou a irritação para responder Mike.
- Fui sim e lá e aprendi um jogo. Quer saber qual? – Essa a primeira vez que perguntava algo a Mike e sentiu que se saiu bem com o plano de não dar a impressão de interrogatório.- É assim, eu pergunto e você me diz a verdade, depois você me pergunta qualquer coisa e eu te digo a verdade, vamos jogar?
- Um jogo de perguntas e verdades? – Questionou Mike estranhando a proposta – Que jogo besta.
- Bom, originalmente esse jogo tem álcool e umas regras mais complexas, mas presumo eu que você não tenha muita coisa para fazer agora, tem? – retrucou Jorge um pouco ofendido – Eu começo, me diga, quando você veio pra cá e por quê?
-Aí são duas perguntas, eu vou responder a segunda.
- Justo – Surpreendeu-se Jorge num tom irônico.
- Eu vim pra cá , já faz uns meses. Minha vez, você tem família?
Jorge demorou um pouco para responder, segurou o volante mais forte e não desviou a atenção da estrada.
- Não, não tenho família.- Disse sério.
- Por quê? – Mike estava curioso e procurou um contato visual com Jorge, mas não funcionou.
-Aí já é outra pergunta. Minha vez, - Disse rapidamente – Por que você veio pra cá?
Mike, respirou fundo e como se sentisse um vento frio de repente, baixou os olhos e diminuiu a voz com vergonha das coisas que fosse dizer.
- Eu... Meu pai me expulsou de casa por ser gay...
- Hum, e aí? – Perguntou Jorge, ignorando as regras do jogo que acabara de apresentar, tentando disfarçar a surpresa.
- As coisas a partir daí aconteceram tão rápido que eu não se sei direito, eu vim pra essa cidade pra ficar na casa de uma amiga, mas aí as coisas não aconteceram como eu gostaria, ela estava metida em drogas, e como eu estava dormindo na casa dela sem emprego, ela me pediu uns favores... Eu não tinha como dizer não. Ela era tudo que eu tinha... Mas aí, ela teve uma overdose e faleceu, os caras que estavam atrás dela não se importam se ela tá viva ou morta, eles só querem o dinheiro deles e eu preciso pagar... então uma ou outra coisa aconteceu... E bom, eu tô aqui! Minha vez! Você tem alguma cicatriz?
Jorge respirou um pouco como se estivesse processando tudo aquilo ainda e respondeu e se assustou com a mudança de tópico:
-Três: ombro, peito e perna... Chegamos. – Disse, colocando definitivamente um ponto final no jogo.
Os dois entraram no local que Jorge ia de vez em quando para tomar um café. O lugar era uma típica Lanchonete, cadeiras altas, baixas e médias, mesas grandes, pequenas e longas, o garçom que Jorge nunca tinha visto se aproximou deles e perguntou:
- O senhor vai comer alguma coisa?
- Não, só um café.
- Ok, e o seu filho vai querer... - Disse anotando os pedidos num bloco de papel cinza.
- Não, não ele não é meu filho – Disse Jorge rapidamente.
- Mil desculpas senhor – Disse sem demonstrar emoção.
- Tudo bem...
- Desculpas... Então você...
- Mickey – Disse Jorge!
- Mike – Disse Mike o corrigindo e se divertindo com aquela situação.
- Sim, desculpa, Mike, o nome dele é Mike!
- Tem batata frita? – Perguntou Mike, ainda sorrindo
- Temos sim senhor!
Mike olhou para Jorge como se estivesse esperando uma aprovação.
- Peça o que você quiser! – Disse Jorge!
- A maior porção de batatas fritas que vocês tiverem! Ah, e uma Coca de 1 litro, não, 2! 2 litros!
- Sim, senhor!
Jorge, ainda carrancudo e com uma voz normalmente rouca, tentou novamente uma comunicação que não envolvia jogos
- Faz quanto tempo que você não come?
Mike olhou pra cima como se estivesse pensando:
-Defina comer...
-Como assim? – Jorge se flagrou curioso e cada vez mais interessado e triste pelo jovem a sua frente.
- Porque se alimentar é uma coisa, já comer é qualquer coisa que você bota na boca e engole. Mas bom... Eu não me alimento de verdade... Desde que eu saí da casa dos meus pais... Que eu não como, faz... dois dias!
Jorge sentia cada vez mais empatia e entristecido com a naturalidade que Mike lhe contava isso, será se esse tempo todo sem comer é normal pra ele? O que será que ele come então, onde?
- Mas a fome, eu acho, que ela é meio coisa da cabeça da gente sabe? Porque quando a gente tá ocupado a gente nem sente fome direito, aí tudo bem. - Continuou Mike.
Uma parte de Jorge sabia que ele se sentia mais preocupado que o normal. Não sabia porque veio sentir pena dele só agora, já o vira antes e inclusive já tinha visto coisas mais horripilantes na polícia, mas por algum motivo Jorge se sentia desconfortável na presença de Mike.
- E pra onde você vai depois daqui? – Jorge se esforçava para esconder a preocupação – Você tem algum lugar para dormir, pra almoçar amanhã?
- Você passou por um hidrante vindo pra cá, sabe... – Mike, começou a explicar fazendo gestos com a mão - Aquele de esquina com a farmácia? Então, ali tem um beco, você pode me deixar ali, eu me viro depois.
Mike estava descalço, Jorge percebeu isso depois que que Mike encostou acidentalmente o pé em seu joelho.
- Por que você tá fazendo isso? - Perguntou Mike o encarando.
- Isso o quê? - Jorge respondeu com outra pergunta olhando nos olhos de Mike.
- Me pagando comida?
- Por nada.
- Eu não acredito em você... Não vai dar um sermão sobre com a vida nas ruas é perigosa? Pra eu parar de me envolver com esse tipo de coisa, me mandar novamente pro serviço social? Pra seguir o caminho de Deus?
Jorge esperou Mike terminar de falar todas e essas coisas e esperou um pouco mais, caso tenha esquecido algo, e respondeu secamente:
-Isso seria algo que seu pai faria... E eu não sou seu pai! - Disse grossamente.
Pela primeira vez na noite, Mike se impressionou com algo que Jorge disse e permaneceu quieto até sua batata e seu refrigerante chegar.
Quando a comida chegou Jorge pode ver que Mike estava realmente com muita fome, tanta fome que sua satisfação chamou atenção até do aposentado na mesa ao lado e a garçonete que atendia no balcão, ambos encaravam Mike para vê-lo comendo.
Jorge sabia que era inútil fazer qualquer pergunta enquanto Mike estivesse comendo, pois ou ele não falaria ou pior, ele falaria com a boca cheia. Então Jorge preferiu se ater ao seu cafezinho.
Se passaram cerca de dez minutos para Mike devorar seu lanche.
- Pronto? – Perguntou Jorge, já tendo ingerido três xícaras de café.
- Aham – Confirmou Mike colocando a mão sobre a boca para disfarças os mini arrotos.
-Vamos então! – Disse Jorge, colocando três notas de dez embaixo do pires sobre a mesa.
Novamente no carro, Jorge já não sentiu a esfera pesada como foi da primeira vez, mesmo que não muito confortável, ele já se encontrava livre para fazer as perguntas ou afirmações que quisesse.
- Nós acabamos de passar o hidrante e a farmácia! – Disse Mike – Era logo ali!
- Você vai pra minha casa – afirmou Jorge – eu tenho um quartinho que não uso, deve estar sujo, mas tenho lençóis e travesseiros limpos.
- Sua casa!? – Mike não entendia o que estava acontecendo – Por quê?
- Você está incomodado com o que eu estou fazendo por você? - Perguntou nervoso. - Jorge sabia que seria o que Elaine faria se estivesse ali, ela tinha o coração enorme e não deixaria aquele jovem nas ruas, sabendo o que poderia acontecer.
- Não senhor – disse Mike ainda assustado e com os olhos arregalados – eu só não entendo o motivo.
- Vamos dizer que você me lembra alguém! E sem mais perguntas, por favor. E não se acostume... Isso é temporário.