5.
Decepção é um sapato caro e bonito que você namorou durante meses na vitrine de uma loja. No dia em que você consegue comprá-lo, descobre que ele é desconfortável. Aparenta a felicidade, quando na verdade causa dor. Era essa a sensação que permeava cada célula de Christian. Ele andava na rua, sentindo que as pessoas o olhavam e sabiam o que tinha acontecido. Era como se sua roupa estivesse tingida com uma mancha vermelha enorme, e os outros o chacoteavam por causa disso.
Desolado, Christian não sabia se ia para casa, se ficava na rua, se mendigava a atenção de William. Tudo soava ruim. O que ele queria de verdade era mergulhar no oceano do nada e ser tomado pela anestesia da inexistência. Mas precisava tomar um rumo, pois o dia se esvaía, e a noite começa a apontar. Talvez fosse melhor voltar pra casa, fingir uma dor de cabeça e se trancar no quarto. Foi o que ele fez.
Em casa, Christian se enfiou no banheiro, deixando a água lavar suas angústias e desinfetar o cheiro de Pedro Miguel, que parecia estar impregnado na sua alma. Ele queria gritar, quebrar, bater, esmurrar, mas acima de tudo, queria saber o porquê.
Depois de um demorado banho, Christian vestiu o seu pijama e se jogou na cama, se cobrindo completamente com um edredom. Teresa, como é típico das mães, não se convenceu da desculpa da dor de cabeça. Christian havia chegado tarde, abatido e não jantara. Para ela, havia algo além. Como mãe, ela conseguia transver.
- Christian? – Teresa bateu na porta do quarto do filho, entrando sem esperar a resposta do mesmo. – Eu trouxe um leitinho quente com canela, pra você.
- Não quero – respondeu Christian sem descobrir a cabeça.
Ela colocou a caneca com o leite sobre o criado-mudo do quarto, e sentou-se na borda cama do rapaz, dizendo:
- Dor de cabeça é a desculpa mais batida, para quem quer esconder seu real sofrimento – ela disse. – Você sabe que eu e seu pai sempre respeitamos a sua privacidade e da sua irmã, nunca forçamos uma conversa. Mas não consigo ficar inerte quando vejo um dos meus filhos tomado por uma tristeza profunda.
- Eu estou bem – disse Christian com a voz chorosa.
- Não. Você não estar – afirmou Teresa retirando o edredom de cima dele.
Os olhos de Christian estavam inchados e vermelhos. Teresa só o tinha visto daquela forma quando ele assumiu sua homossexualidade.
- Eu estou péssimo – ele abraçou ela apertadamente, dando vasão ao seu choro.
- Você quer me contar o que aconteceu? – perguntou Teresa.
- Não – respondeu Christian. – Eu só preciso que você fique aqui comigo.
- Tudo bem – Teresa respeitou a decisão dele.
Ela já havia passado pela adolescência e sabia muito bem que quando alguém na idade de Christian se encontrava naquele estado, só podia significar uma coisa: desilusão amorosa. E, com toda a sua experiência, Teresa sabia que o melhor a fazer, era dar espaço e tempo para o filho. Quando Christian resolvesse que era hora de se abrir, então ela estaria pronta pra ajudá-lo da melhor forma possível. Contudo, ela julgou que seria de muito valor deixar um conselho, previamente.
- Sabe, filho, seu avô me dizia que quando estamos abatidos, desolados, vencidos, temos que aparentar exatamente o contrário. Não por fingimento, mas é que, os abutres só atacam um corpo caído. Quando estamos fracos, aí é que devemos ser fortes. Pois um problema, muitas vezes, é tão difícil quanto o fazemos ser.
Christian limpou os nariz e agradeceu sua mãe, tomando o leite de uma vez só. Depois de dar um beijo Teresa, ele deitou de lado, e fechou os olhos, se sentindo um pouco melhor do que estava. Teresa o enrolou com o edredom, lhe dando um beijo antes de sair.
A decepção de Christian não ia passar tão rápida quanto a ardência que estava sentido, por conta do sexo selvagem que tivera com Pedro Miguel. Todavia, sua mãe estava certa com relação a não demonstrar fraqueza. Ser o viadinho que sonhava com contos-de-fadas era a última imagem que Christian queria deixar para Pedro Miguel. Se ele encarou o que eles tiveram, apenas como uma experiência sexual, estava tudo certo. Seria assim que Christian iria levar. E que fosse pro inferno Pedro Miguel e seu capuz, e se William teimasse nessa frescura, Christian o mandaria também no mesmo pacote.
No dia seguinte, depois de uma noite de sono profundo e sem sonhos, Christian acordou bem disposto. Os fatos do dia anterior pareciam estar envoltos por uma bruma. Ah, não, ele não acordou pensando que tudo não passara de um sonho. Christian apenas resolveu deixar o passado aonde é o seu lugar: para trás. Quando ele desceu para o café, sua mãe já tinha ido trabalhar, mas seu pai aguardava ele e Suzana, para leva-los para a escola. Christian comeu rapidamente, sentindo que aquele era um dia para se estar bem. Antes de saírem, ele encontrou um bilhete de sua mãe no banheiro:
“Fique bem. Com amor, mamãe.”
Na escola, o humor de William era o mesmo. Mas Christian resolveu aderir à indiferença do amigo. Ele ainda não tinha visto Pedro Miguel, e ficou feliz por isso. Pois não tinha certeza se sua segurança e força eram realmente sólidas. Entretanto, Christian seria submetido pelo teste de fogo ainda naquela manhã.
Quando a primeira a aula estava na metade, Pedro Miguel irrompeu pela sala, meio estabanado. Parecia que tinha sido atropelado por um caminhão. O modo como estavam suas roupas e o cabelo mal penteado, denunciava que ele tinha se vestido às pressas.
- Está atrasado, Pedro Miguel – reclamou a professora de História.
- Desculpe, professora, eu... – ele e Christian se encararam
- Menos desculpa e mais ação – ela o interrompeu com impaciência. – Forme par com... – ela correu os pela sala – Christian.
Christian sentiu como se tivesse engolido um gato raivoso. Pedro Miguel parecia compartilhar do mesmo sentimento, mas como não queria levantar nenhum tipo de suspeita, achou melhor não recusar o par, até porque a porque, Débora, a professora de História, não costumava dar escolha, nesse sentido.
- Qual é o trabalho? – Pedro Miguel perguntou de cabeça baixa, quase sem fala.
- Temos que fazer uma resenha crítica sobre a guerra fria, enfatizando a influência dos dois sistemas político-econômicos que se confrontavam. – respondeu Christian, com extrema formalidade.
- Ainda bem que meu par é você, porque eu sou péssimo em história – Pedro Miguel ensaiou um sorriso debilíssimo.
- A discussão é em dupla, mas cada um deverá apresentar seu próprio trabalho escrito – explicou Christian. – Eu já havia feito algumas anotações quando estudei o capítulo. Só tive que aprimorar o texto, mas isso foi algo rápido. Então, eu já terminei o meu trabalho. Quando concluir o seu, me avise, pois temos que entregar juntos.
Pedro Miguel tinha levado um tapa na cara, com as palavras de Christian. Ele, no entanto, não disse nada. Não por falta do que dizer, pelo contrário, ele queria falar muitas coisas, mas não tinha coragem.
O antigo admirado de Christian até tentou, mas não conseguiu desenvolver uma linha do trabalho exigido. Ele fazia e apagava, não conseguindo sair nem da introdução. Com Christian tudo parecia ser tão simples, mas ele se sentia só, preso.
- Po... posso, consultar suas anotações? – pediu Pedro Miguel, quase sussurrando.
Ele não sabia de onde tinha tirado forças para fazer aquele pedido, mas tentou apelar para a gentileza de Christian, mesmo sabendo que o “não” era iminente.
- Fique à vontade – disse Christian, empurrado suas anotações para ele. – Só não copie na íntegra o que eu escrevi, pois se a Débora ver os nossos trabalhos parecidos, creio que ela não terá muita dificuldade em saber qual é o original.
- Certo! – Pedro Miguel sentiu um alívio.
Os dois não se falaram mais durante a aula de história, e em nenhuma outra. Na saída, Christian ainda teve que presenciar uma ceninha forçada de Pedro Miguel se pegando com Fernanda, mas ele manteve sua postura, e fingiu não ver. É claro, que o fato de Pedro Miguel estar beijando a moça, mas o olhando de esguelha, como que esperando que tipo de reação Christian teria, não passou despercebido pelo rapaz.
A noite, enquanto Christian terminava suas tarefas escolares, seu celular tocou. Era William, mas ele não atendeu. Sua vontade era desabafar com o amigo, como fizera tantas vezes. Mas ele queria que o amigo sofresse um pouco, por ser tão turrão. O celular continuou a insistir, então Christian o desligou e atirou para o lado. Estava cansado, e já era quase meia-noite. Só a luz de seu quarto continuava acesa na casa, bem com sua janela, que permitia a entrada de um vento seco e quente.
Com todas as tarefas da escola concluída, Christian resolveu que era hora de descansar. Seus olhos já ardiam, irritado com a luz da tela do computador. Christian escovou os dentes, vestiu seu pijama e foi fechara a janela, antes de ir pra cama. E ao fazer isso, ele quase infartou com o susto que levou. Ele estava lá. Apoiado na sua moto e usando um casaco branco com capuz. Christian recuou para trás, antes que o encapuzado o visse. Ele parecia distraído. Estava com a cabeça inclinada para baixo, aparentemente, mexendo num celular. Christian concluiu que ele devia ter lhe mandado uma mensagem, então resolveu religar o celular.
Haviam duas mensagens. Uma era de William e a outra do encapuzado. Christian ignorou completamente a primeira, abrindo a do dito cujo, parado no seu bairro.
“Te achei muito triste hoje. Senti vontade de falar com você, na hora da saída, mas percebi que não estava bem. Só que agora, não posso mais adiar isso. Quer descer?”.
Christian foi tomado por um ódio mortal. Quem Pedro Miguel pensava que era para brincar com os seus sentimentos? Ele o tinha achado triste? Depois de tudo o que acontecera, ele esperava o quê? Queria que ele, Christian, estivesse feliz pela “honra” de ter transado com o grande Pedro Miguel? Sem falar, que a ceninha com a Fernanda fora patética. Era o absurdo dos absurdos, pensava Christian. Ele já não aguentava mais a tática da frieza. Queria extravasar. Queria dizer tudo que estava entalado, para aquele cretino. Estava decidido! Christian iria até lá fora pôr o ponto final nisso.
Vestido de pijama, ele desceu o mais rápido que pode, sem se preocupar em fazer barulho, tamanha era sua indignação. Abriu a porta principal, e foi em direção ao encapuzado, quase correndo. As sombras das árvores das ruas, ocultavam o rosto dele, mas para Christian, não importava, pois ele conhecia cada traço das ficções de Pedro Miguel.
- Você é retardado, sadista, sofre de Alzheimer ou algo do tipo? – quase gritou Christian, parando à alguns metros de distância. – Deve ser divertido pra você, não é? É tão fácil imaginar o que você pensou: “Ah, eu vou provar o viadinho da escola, depois simplesmente eu descarto. Ele já tá acostumado a dar mesmo pra qualquer um, por que me preocupar com sentimentos? É só comer e pronto”.
O encapuzado permanecia à mesma distância, sem demonstrar qualquer reação. Christian não tinha a menor a pretensão de se aproximar de Pedro Miguel. Parecia que a raiva que ele tentara enterrar, emergia com violência, como um fogo que queima o interior do monturo, e surge de uma vez no topo do lixo.
- Foi bom pra você? Eu superei as suas expectativas? Satisfiz as suas necessidades? – Christian ofegava. – Pois saiba, que a nossa transa, Pedro Miguel, foi a minha primeira vez. E não podia ter sido pior. É. Gays tem sentimentos, por mais que seu pai diga que não. O que mais me revolta, é que eu sabia que estava pisando em areia movediça, mas mesmo assim, resolvi apostar. Apostei tudo, e perdi.
Christian ficou em silêncio, esperando uma reação do outro, um protesto, uma justificativa infundada, qualquer coisa.
- Você não fala nada? – Christian não aguentou esperar a reação do outro. – Fala alguma coisa, desgraçado!
“Amo-te quanto em largo, alto e profundo
Minh’alma alcança quando, transportada, sente, alongado os olhos deste mundo, os fins do ser, a graça entressonhada.
Amo-te a cada dia, hora e segundo
A luz do sol, na noite sossegada e é tão pura a paixão de que me inundo
Quanto ao pudor dos que não pedem nada.
Amo-te com a dor, das velhas penas com sorriso, com lágrimas de prece, e a fé de minha infância, ingênua e forte.
Amo-te até nas coisas mais pequenas, por toda vida, e assim DEUS o quiser
Ainda mais te amarei depois da morte.”.
O encapuzado recitou, saindo das sombras e removendo o capuz, deixando seu rosto totalmente à mostra, às vistas de um Christian muito espantando.
- Quando você recitou esse poema, há quase três anos, em uma apresentação de fim de ano da escola, eu percebi que o amigo do meu irmão me despertava outros sentimentos, além de uma simples admiração ou amizade.
- Érico? – Christian estava boquiaberto. – Era você? O tempo todo, era você?
- Sim, Christian – confirmou Érico, ficando mais próximo do outro, que estava um pouco receoso. – Eu sinto algo muito forte por você. E não é uma simples atração, como imagino que esse Pedro Miguel deve sentir.
- Ah, meu Deus, que vergonha – Christian tampou rosto. – Eu falei tudo aquilo, pensando que...
- Não se preocupa – Érico segurou nas mãos de Christian. – Não é você que tem que se sentir mal. É ele. De qualquer forma, estamos quites.
- Quites? O que quer dizer?
- Você bisbilhotou na minha pasta, então, acho que depois de tudo que ouvi, estamos em situação equiparada.
- Ah, os desenhos... – Christian ficou ruborizado. – William te contou, não foi?
- Não foi necessário – disse Érico. – Só a cara que você fez naquele dia lá em casa, depois de ter ficado sozinho na garagem com a pasta, me fez deduzir o que tinha acontecido. Olha você pode me achar um pervertido, mas...
- Eu não achei – disse Christian, um pouco mais calmo. – Só fiquei surpreso, pois o William tem certeza de que você é hétero. E eu nunca pensei o contrário.
- Não foi por medo que eu nunca me assumi, se quer saber – afirmou Érico. – Eu, talvez erroneamente, queria fazer isso apenas quando eu encontrasse alguém bacana. Mas a tia Laura sabe, aliás, foi ela que me apoiou quando resolvi contar para os meus pais. Infelizmente, quando a gente estava se dando bem, eles morreram naquele acidente de carro.
- E porque você nunca contou pro William? – perguntou Christian.
- Um pouco de receio – respondeu Érico. – Eu tinha medo que ele reagisse mal e sofresse com isso. Nós já perdemos tanta coisa que...
- Mas ele reagiu bem quando eu disse que era gay – afirmou Christian.
- Eu soube disse recentemente – esclareceu Érico. – Mas, pode ser que ele pense diferente, em se tratando do irmão.
- É possível – Christian ainda estava sem graça.
Por alguns segundos, os dois ficaram apenas se encarando.
- Não era eu quem você queria, não é mesmo? – perguntou Érico.
- Bom... eu jamais esperava que você fosse o encapuzado. Eu gostava de outro cara, a ideia de pensar que ele estava me mandando todas aquelas mensagens, depois de me salvar naquela boate, soava muito bem.
- E o que eu faço com o meu sentimento, por você? – perguntou Érico.
- Érico... eu não... Eu não te amo. Pra mim você era simplesmente o irmão do meu amigo. Eu supus que talvez você sentisse algo por mim, depois de ver os desenhos. Mas nunca imaginei nós dois. Eu estou ferido profundamente, mas mesmo assim, ainda não consegui deixar de gostar do outro.
- Eu entendo e te respeito – disse Érico. – Quero apenas que você me diga se há esperança ou não.
- Sempre há esperança – sorriu William. – Não sabe como me fez bem. Me senti tão especial sendo admirado por uma figura misteriosa.
- Você ainda não viu nada. Mas vai ver – Érico lhe deu um beijo na bochecha, perto canto da boca, e pôs na mão de Christian a pasta de couro.
- São os desenhos?
- Sim – respondeu Érico, indo em direção da sua moto. – São seus agora.
Érico foi embora, não sabendo quanto havia feito bem a Christian. Na rua deserta o amigo de William, sentiu que algo de bom estava porvir. Ele voltou para dentro de casa, antes que a mãe se desse conta de sua saída, se é que já não havia percebido, depois do que falara em alta voz, quando achava que o encapuzado era Pedro Miguel.
Já no seu quarto, Christian abriu a pasta, sentido o cheiro do “Meu Egeu”. Folheando as páginas ele viu novamente os desenhos. Era ele, completamente nu, sendo acariciado por Érico, no que parecia ser uma colina. Os desenhos eram sensuais e reais, apesar de Christian achar que os seus desenhos eram melhor que a realidade. Ele sabia que não amava Érico, mas queria que aquilo fosse adiante, agora sem mais nenhum capuz.
Antes de dormir, Christian abriu a mensagem de William e leu.
“Desculpa amigo, por não ter confiado em você. Vi os desenhos do Érico antes dele sair. Que porra era aquela?! Ele vai ter muito que me explicar.”.