1ª PARTE
CAPÍTULO 5
AURÉLIO, FREDERICO E JORGEMike estava acostumado com a sensação de acordar sem saber ao certo onde estava, normalmente não sabia, e dessa vez não foi diferente, era como se o conforto o fizesse desconfortável. Identificou como um quarto o local onde estava e desconhecia os travesseiros. A cortina dançava no ar por conta da janela aberta e a brisa que estremecia o ar, talvez tenha acordado assustado por conta dos pássaros lá fora ou por causa do ar fresco que invadia suas narinas. Ele levou um tempo considerável para perceber que aquilo não era um sonho e ainda estava mais assustado do que qualquer outro sentimento que se ousaria sentir.
Logo após se identificar fisicamente, Mike tentou se recordar, sem sucesso, de que dia era, seus dias eram atropelados, ele estava sempre perdido na semana, mas aquele dia lhe lembrava dos domingos de manhã que acordava cedo para ir à igreja e o cheiro de bolo de fubá vindo da cozinha inundava o quarto.
Lembrou que estava com fome.
“Seu Jorge ainda está aqui? Hoje é....? Ele trabalho aos ...sábados?”
Um calendário longo e cinza ao lado do interruptor branco marcava o dia 15 de junho, o que para ele não tinha importância alguma, pois tinha nada para fazer.
Fome.
Mike se levantou, e notou que o que estava vestindo não lhe pertencia, estava descamisado, mas vestindo uma bermuda branca que lhe servia perfeitamente, não poderia ser do Jorge, pois ficaria absurdamente grande nele, de quem seria então? Com a intenção de não fazer barulho, ele abriu a porta formando um vão suficientemente grande para enxergar a cozinha e perceber que não havia ninguém na casa, as janelas estavam abertas e as cortinas da sala também esvoaçavam sobre o sofá, agora, cheiroso.
O relógio sobre o armário marcava quase meio dia, Mike andou até a geladeira e ficou impressionado, pois agora os produtos que se encontravam ali, não estavam próximos de passar da validade.
Entre a massa de tomate e o novo vidro de azeitonas, havia um prato com arroz, salada e bife, embolados num plástico transparente e um bilhete escrito “Para o Sr. Mike”.
Mike riu e devorou aquilo em 3 minutos.
“Que horas ele chega? O que eu faço até lá?”
A casa estava limpa e pela primeira vez linda, não pela comida na geladeira, mas pela maneira diferente como via as coisas agora, a soma de positividade pelo bilhete, a bermuda nova, a noite bem dormida e o heroísmo de Jorge.
Não sabia o que estava sentindo, mas era bom. Lembrou da música “Oh Happy day”.
Mike voltou para cama e encarou o travesseiro branco ao lado e sem saber o propósito de sua ação, apertou contra seu peito e cheirou profundamente, “Nós dormimos juntos?” no momento em que fez isso, percebeu uma alteração e certo movimento em sua nova bermuda branca, Mike não era tão ingênuo ao ponto de não saber o que era aquilo e o que significava, pois lembrava da sensação de ver o seu vizinho descamisado cortar a grama, mas agora era diferente, não era só prazer, era algo a mais e exatamente esse ‘algo a mais’ que não compreendia, era tão forte que o assustava e esse medo era demasiado bom.
Mike adormeceu novamente abraçando o travesseiro com o cheiro de Jorge e acordou num susto quando ouviu o escancarar da porta, seu primeiro pensamento foi saber se caberia embaixo da cama, mas antes de executar qualquer ação, ouviu a voz de alguém dizer rapidamente:
- Aqui, aqui, aqui! - Dizia alguém apressadamente.
No mesmo movimento que antes, porém mais depressa, Mike, abriu a porta só para ver o que estava acontecendo ali na sala e enxergou dois rapazes de roupas idênticas, que logo depois reconheceu serem uniformes. Eram policiais, ajudando uma outra pessoa a repousar sobre o sofá.
- Tem certeza de que está bem? Nós podemos mandar alguém aqui para te ajudar – Mike reconheceu a voz de Aurélio, que parecia preocupado.
- Não, eu estou bem, eu só preciso deitar um pouco, mas obrigado pela ajuda – A voz de Jorge parecia mais rouca e grossa que o normal, havia uma faixa branca em sua perna. – Eu me viro a partir daqui – Concluiu Jorge.
- O senhor tem certeza? – Outro policial já havia entendido o recado e estava se retirando do recinto, quando Aurélio parou sobre a porta e perguntou – Eu posso mandar alguém vir trazer comida se o senhor preferir... – Jorge cortou Aurélio como se estivesse mais aborrecido com ele do que com a situação em si.
- Eu já falei que estou bem Aurélio, eu sei me virar – Aurélio se surpreendeu e num aceno com a cabeça se retirou da sala e fechou a porta. Mike esperou ouvir o carro se afastar para correr em direção à Jorge. Abriu a porta do quarto onde estava, em três largos passos alcançou jorge no sofá e se ajoelhou.
- O que... como... mas o que aconteceu...? – Vomitou as palavras tão rápido que nem ele se entendeu.
- Calma, isso foi um acidente no trabalho... acontece... – Disse Jorge tão calmo que irritaria qualquer um, inclusive Mike.
- Como assim acidente de trabalho? Você faz isso sempre? Como é que você ainda está vivo? - perguntou indignado.
Jorge se sentiu irritado com toda aquela preocupação, mas também gostava, a três dias atrás, tudo o que tinha era o vazio e o silêncio como companhia, toda essa recepção apesar de desnecessária estava o deixando mal-acostumado e ele estava gostando de se mal desacostumar.
- Você quer parar de falar? – Disse Jorge tentando não ser grosso, olhando para Mike, revendo a cicatriz e lembrando do que tinha acontecido a algumas horas atrás – Eu já fui para o hospital, eu tô bem, está tudo certo, eu não vou pro trabalho por alguns dias e só. - Olha, eu estou bem... A única coisa negativa é....
- O quê? O quê? – Perguntou arregalando os olhos - Você não vai poder...
- A coisa negativa é que eu vou depender da sua comida por um tempo e eu não quero comer bolo todos os dias. – Disse Jorge, cortando Mike novamente num tom irônico.
- Você tá achando isso engraçado né? – Mike estava aliviado e ofendido ao mesmo tempo, nesse momento ele levantou para ir até a cozinha – Já que serei seu empregado por alguns dias então, Vossa Alteza gostaria de beber alguma coisa? – Disse ironicamente, segurando o riso.
Jorge fingiu pensar em algo, fazendo uma cara exageradamente duvidosa e respondeu:
- Hum, eu acho que champanhe e caviar me cairia bem agora...
Mike deu mais uns passos para trás e abriu a geladeira
- Nós temos Iogurte e lasanha de micro-ondas, pode ser?
- Pode! – Concordou Jorge num aceno.
E quando Mike se aproximava com uma bandeja e iogurte de morango para dar a Jorge a porta abre novamente e a figura de Aurélio aparece com uma arma na mão.
Aurélio encarava Mike, que se mantinha imóvel, o afrontando com os grandes olhos azuis arregalados, Aurélio intercalava a visão para Jorge e sem entender nada, disse:
- O que que ele tá fazendo aqui? – Segurando a arma, de uma maneira diferente da que quando abriu a porta.
- Ele é um convidado - Disse Jorge sério - Aurélio, me dê a arma. – Mesmo machucado, a voz rouca e grossa de Jorge, mantinha-se impassível, seu olhar de autoridade emudecia qualquer pensamento que pudesse se espalhar no ar.
- Na verdade essa arma é sua. – Disse Aurélio não tirando os olhos de Mike, que se atinha a sua embalagem de iogurte – Você esqueceu no carro... - Continuou.
- Obrigado, você pode deixar a arma no sofá. – Disse Jorge pausadamente mantendo a voz grave.
Finalmente Aurélio estabeleceu um olhar ao de Jorge e o olhava de uma maneira diferente agora – Espero que o senhor se recupere logo – Acenou com a cabeça, olhou novamente para Mike, virou-se, saiu e fechou a porta.
- Esse moço sempre me deu calafrios – comentou Mike, logo após Aurélio ter fechado a porta, ainda encarando a maçaneta para ter certeza de que ela não se mexeria novamente.
- Ele tem os motivos dele para ser assim – Disse Jorge olhando para o chão.
- Que histórias? – Mike tinha se aconchegando no outro sofá depositando o iogurte no seu colo como se estivesse preparado para ouvir algo que durasse por horas.
- Bom... – Jorge começou, como se algo nele doesse além da perna - ... Eu e o pai dele éramos amigos...
- Vocês brigaram? – Interrompeu Mike.
- Você vai deixar eu continuar a história? - Perguntou Jorge, arregalando os olhos.
- Desculpa! – Pegou a almofada e sua esquerda e arregalou mais os imensos olhos azuis prestando bem atenção no que Jorge tinha a dizer.
- Uns vinte e tantos anos atrás mais ou menos, o pai dele, Frederico, era como se fosse um irmão para mim, fomos ao exército juntos, ele não falava muito, mas eu também não, nos entendíamos no silêncio, ele era um nego quieto e muito esperto, mas ele tinha um temperamento muito difícil, se irritava fácil, perdia a paciência o tempo todo, eu dizia para ele “Você tem que se acalmar cara, você vai acabar se metendo em encrenca”, eu era a única pessoa que ele escutava. Por um tempo ele sossegou, casou, teve um moleque, que naceu no inverno de noventa, e deu o nome do avô dele que tinha o criado, Aurélio. – Jorge sorriu fechando os olhos – Meu Deus, eu nunca tinha visto um homem daquele tamanho tão bobo por causa de uma criança, eu o invejei muito pois... – houve uns segundos de silêncio – os anos passaram e Frederico era uma pessoa completamente diferente da que ele costumava ser, ele agora pensava nas suas ações, sabe? Dizia que queria ver o filho numa boa Universidade, fora da cidade, economizava seu dinheiro, tinha feito uma poupança no nome de Aurélio, Frederico era o homem mais feliz do mundo, e eu me espelhava nele.
Mas em junho, lá por... noventa e seis? Ou noventa.... - Jorge apresentava dificuldade ao lembrar das datas – O Aurélio tinha oito anos então era noventa e oito, isso! Naquela época, havia um festival aqui na cidade, era algo tipo festa junina, ali no centro, várias pessoas traziam tudo quanto é tipo de comida caseira, suco de tudo quanto é sabor, haviam mesas e cadeiras por toda a praça e um parque para as crianças. Eu e Frederico e mais uns outros três conhecidos, éramos sempre os guardas nessas festividades, até que uma gangue de motoqueiros apareceu.
Eu e o preto, como eu o chamava, imediatamente reconhecemos o líder deles, havíamos começado uma briga com eles em um bar a duas cidades daqui... Época que Aurélio nem existia ainda... bom, a coisa ficou feia, eu lembro que Frederico quebrou uma garrafa de cerveja no rosto dele e bateu tanto que achávamos que o cara tinha morrido, os amigos dele acabaram botando fogo no bar, muita coisa aconteceu em pouco tempo, nós fugimos e eles foram presos. Frederico ficou nervoso, mas eu o acalmei dizendo que eles não poderiam nos encontrar porque não havíamos deixado qualquer tipo de rastro, nome, ou qualquer coisa que eles pudessem nos identificar ou saber onde morávamos... – Jorge respirou fundo - aparentemente eles conseguiram essa informação e eu... nós não sabíamos como... Nós sabíamos que aquilo era sinônimo de problema, quando aquele cara tirou o capacete, nós sabíamos que era ele... como eu esperava que ele estivesse morto – Jorge fez mais um silêncio, enquanto Mike dessa vez só aguardava ao invés de interromper – Não me entenda mal, mas é que o cara era problema, batia na esposa, espancava o filho, uma porcaria daquelas era melhor para o mundo, morto, enfim... Quando ele tirou o capacete, vimos que metade do rosto dele era cicatriz, parte da cabeça estava queimada enquanto outra parte tinha cabelos longos e escuros, ele tinha um olho totalmente branco, devia ser de vidro, e perdido metade de uma sobrancelha, ele parecia horrível, e estava horrível, o nego e eu sabíamos que daria problema.
O importante era tirar as pessoas dali, pois elas não tinham nada a ver com aquela situação, e o cara era louco, Frederico se afastou da praça com a intenção de chamar a atenção dele e tirá-lo de perto daquele lugar. Enquanto eu recuava as pessoas daquele centro percebi que o motoqueiro não estava atrás de Frederico, mas atrás de mim, e foi quando ele sacou a arma e deu o primeiro tiro na minha direção que as pessoas começaram a correr em pânico, Frederico teria atirado nele, mas estava muito longe e as pessoas corriam para todo os lados, era perigoso acertar uma delas. Aurélio ainda era um moleque, ele estava brincando naquele parque perto da mãe, que imediatamente começou a procurar o marido, mas ela estava perto de mim. Ela já estava preparada para aquele tipo de situação, pois conhecia o marido, ela também não era fácil. Eu continuei a ser alvo de tiros, nenhum me acertou, eu estava entre várias pessoas e gritava para que elas se abaixassem, mas o pânico e o desespero eram muito grandes, haviam muitas crianças lá, então eu corri no lado oposto da multidão, fui para a parte do parque, não havia ninguém lá! Eu seria um alvo fácil, não teria erro, foi quando ele me olhou e deu uma risada com aquela boca torta e cicatrizada, ele estava a uns vinte metros de mim, ele apontou a arma e disparou, mas antes que eu pudesse fazer a mesma coisa... - Jorge pausou por um segundo - Frederico entrou na minha frente e a bala que era pra acertar meu coração, perfurou o pulmão de Frederico, que ao ajoelhar conseguiu dar um último tiro que atravessou a cabeça do motoqueiro, equipe policiais chegaram logo após e prenderam o resto da gangue. A ambulância não demorou, mas... Já era tarde. Frederico deixou uma criança chorando e uma mulher muito zangada. Enfim, Aurélio hoje é policial por causa do pai, assumiu um compromisso com a cidade, é o único que tem a capacidade para me substituir daqui uns anos... E não sei como que uma pessoa tão calma saiu de dois pais completamente... enfim. Ele deixou para Aurélio o distintivo, e como você pode ver, o desejo de se tornar Policial, e para mim um conjunto de facas.... Na verdade, ele não deixou para mim... sua esposa não queria aquilo enquanto tivesse uma criança em casa, eu já deveria ter dado a ele, mas essa é a única coisa que eu tenho dele, então... Ainda não. Eu fiz parte da vida dele, sabe? Ele me respeita muito e eu o respeito também. O senso de justiça dele às vezes é distorcido, mas ele é justo. Acho que é isso...
Mike olhava atônito para os lados tentando disfarças seus olhos vermelhos e marejados de água
Mike? - Perguntou Jorge falando mais baixo.
Hã? - Respondeu Mike ainda pensando em tudo que acabara de ouvirVocê vai me dar esse iogurte ou não? – Pediu Jorge estendendo a mão esquerda.
