– Capítulo 02 –
Um encontro inesperado
Conrado apenas se assustou com um estranho na casa – disse Miguel, se soltando das garras do rapaz. – Apenas um infeliz mal-entendido. – Miguel olhou pra ele esperando uma confirmação.
- É isso mesmo Conrado? – perguntou seu pai, sem perceber o canivete escondido na mão dele.
- Sim – respondeu secamente o filho. – Dá próxima vez, me avisa quando for abrir a casa para qualquer um entrar, ou alguém pode sair ferido. – Ao dizer a última frase, ele olhou no fundo dos olhos dourados de Miguel, como se o desafiasse a contar para o seu pai sobre o assalto.
- Por favor, Conrado, hoje não – Luciano Jadão passava repetidamente as mãos nos cabelos loiros, em sinal de total exaustão. – Será que você é incapaz, de agir como gente pelo uma vez na sua vida?
- Já terminou? Então pode voltar para o seu jantarzinho de merda, e me deixar em paz! – cuspiu fogo o filho rebelde.
Enfadado daquilo tudo, Luciano saiu da presença dos dois se esquecendo de resgatar Miguel do lobo. Não queria travar mais uma briga com seu filho, que ele sabia que faria qualquer coisa pra tornar o inferno que virou sua vida, um pouquinho pior.
- Bem, eu já vou indo então – Miguel foi se retirando, mas sentiu um puxão brusco pelo braço, que o trouxe novamente para a posição inicial.
- Qual é a tua, hein mané? – Conrad o olhava com determinação. Seus narizes, olhos, bocas, estavam a alguns milímetros de distância. Os rostos quase colados compartilhavam um hálito quente e arfante.
- Eu só quero voltar para o jardim, nada mais – respondeu Miguel com o coração a ponto de explodir. Aquela situação de adrenalina estava de certa forma o... Excitando? Não! Definitivamente ele precisava sair dali.
- Já sabe o que acontece se abrir essa boquinha – disse Conrado, olhando de forma diferente para os lábios de Miguel. Ele salivou um pouco.
- Já disse pra você que não vou contar nada.
- Certo! – Conrado o soltou.
- Só tem uma coisa que eu queria que você me explicasse. – Miguel falou, enquanto se recompunha.
- Hã?! – Conrado franziu o cenho, não acreditando na ousadia do rapaz. – Explicar o quê, seu otário?
- Por que você atira essa família maravilhosa no lixo? – perguntou Miguel.
Conrado soltou uma gargalhada nervosa, pressionando a língua na parte interna esquerda da sua bochecha, enquanto girava o rosto para o lado em sinal de incredulidade.
- Tu é comédia mesmo, né? – o herdeiro Jadão disse. – Vaza daqui antes que eu perca a paciência contigo moleque. Tá abusando muito da sorte.
- Eu não acredito em sorte. Acredito em Deus – Miguel lançou um sorriso cândido, como se fosse uma ovelha tentando convencer o coiote a não devorá-la.
- Era só o que me faltava, a merda de um crente querendo me falar da bosta de sua igreja engana-trouxa.
- Eu tenho pena de você Conrado.
Conrado não gostou do que ele disse. Levou aquilo como insulto. Miguel percebendo, logo tratou de remendar sua frase.
- Não se ofenda. Não estou falando de pena de desprezo, e sim de condescendência.
- E eu posso saber o porquê de tal “privilégio imensurável”? - Conrado usou o cúmulo da ironia.
- A dor – disse Miguel com segurança.
Subitamente, Conrado trocou a máscara irônica por uma que era um misto de nostalgia amarga com revolta. Ele não sabia como, mas Miguel havia acertado com toda força no seu ponto mais frágil e machucado.
- Seus olhos estão cheios dela – continuou o filho do pastor. – Parece que ela tem te atormentado por muito tempo não é? Você precisa...
Antes que ele terminasse, Conrado o segurou pelo pescoço e o prensou na parede, esganando sua garganta. Miguel começou a lacrimejar, batendo com os pés, suspensos, na parede, tentando arrancar a mão forte de Conrado de sua garganta. O rapaz já estava vermelho e desesperado por ar. Os olhos de Miguel aflitos, porém doces, encaravam Conrado com um brilho profundo, o que fez com que Conrado o soltasse.
- Sai daqui! Sai daqui! – ele gritou para o rapaz que ainda buscava ar.
Cambaleando, Miguel o deixou sozinho, e saiu da casa, sentindo muita dor na garganta.
- Já ia buscar você, fiquei muito preocupada com sua demora – disse Júlia Jadão, indo ao encontro dele.
- Está tudo bem Júlia – disse Miguel, um pouco desconfortável.
- Sua cara não é das melhores, você está sentindo algum mal-estar? – insistiu Júlia.
- Estou bem, mas a senhora, quer dizer, você parece estar preocupada – observou Miguel a tensão da dona da casa.
- Fui informada de que a pianista que ia tocar não pôde vir – ela suspirou fundo. – Sem música não dá, os convidados já estão observando.
- Eu posso tocar alguma coisa, ou cantar – se ofereceu Miguel, já quase totalmente recuperado.
Júlia ficou em silêncio.
- Que ideia minha, desculpa, foi só um momento de devaneio – Miguel achou que ela não tinha gostado.
- Não. É acho ótimo – entusiasmou-se Júlia. – Você faria isso mesmo por mim?
- Claro! Será um prazer, pessoal até, eu diria – Miguel abriu seu lindo sorriso iluminado.
- Então vem comigo – Júlia arrastou Miguel pelo braço em direção a um piano posto em um míni palco diante das mesas dispostas. As pessoas conversavam animadamente, e se serviam com os inúmeros garçons que circulava com champanhe e canapés. Mas sem música, o jantar parecia que não tinha vida.
Miguel tomou o assento do piano muito nervoso, enquanto Júlia o abandonava, para o seu desespero. Ele ficou encarando o piano de cauda. Como era lindo e atraente, ele pensava. Só tinha contato com um vertical, usado na igreja e, não podia tocar nada além do que estava no cancioneiro teocrático.
Encantado com um monumento ante seus olhos, o rapaz começou a dedilhar o teclado alvinegro. Imediatamente as pessoas se viraram sintonizadas pelo som do piano. Miguel estava esplendoroso, sentado alinhadamente. Seus cachos reluziam, beijados pela luz resplandecente da superfície espelhada do piano. O filho do pastor começou a dar sentindo aos toques, introduzindo uma música que ele sabia que Júlia amava: “Angel” da Katherine Jenkins – http://www.youtube.com/watch?v=1hsSIt9Rw20.
Os convidados, já em quase sua totalidade, voltaram suas atenções para o rapaz de voz aveludada e cativante. Miguel cantava com uma suavidade e perfeição, que eram potencializadas pelo seu talento com o piano. Os olhos do público brilhavam. Suas bocas semicerradas arfavam surpresa e satisfação pela excelência do seu desempenho.
Da mansão Jadão, um vulto mergulhado no ambiente a meia-luz, observava a interpretação de Miguel. Era Conrado, por trás da vidraça de seu quarto, voltada para o Jardim. Seus olhos encaravam as costas empertigadas de Miguel. Ele não sabia por que,
mas não conseguia parar de admirar aquela criatura intrigante. A voz de Miguel lhe dava aquela sensação de liberdade que temos quando em um sonho podemos voar. Era estranho e difícil de admitir, mas Conrado não podia negar que havia algo de incomum em Miguel.
Por um momento ele quase deixou que seus sentidos o traíssem. Quase permitiu que a raiva e o rancor o deixassem. Mas ao perceber que seu coração estava envolvido por paz, ele logo voltou pra si, e deixou a janela. Havia negócios para aquela noite.
Conrado Desceu as escadas e saiu da mansão em seu carro, tendo cuidado para não ser visto, o que seria muito fácil, pois todos os convidados estavam totalmente atentos a Miguel, incluindo seu pai e Júlia.
A dois quarteirões de sua casa, Pezão o aguardava junto com Azeitona e duas garotas. Ao ver os companheiros a sua espera, Conrado voltou a ser o Conrado de antes. A voz de Miguel agora era apenas um derradeiro eco, quase incompreensível.
- Demorou por que, Demolidor? – disse Pezão fazendo um cumprimento-código com Conrado.
- Chateação familiar – respondeu Conrado, tocando na mão de Azeitona – Conhece?
- Meu pai tá na cadeia, minha mãe na calçada, então... Eu estou no paraíso – respondeu Pezão.
- Também não tenho do que reclamar mano – falou Azeitona. – Minha família sabe quem que manda.
Todos pareciam muito contentes com a exposição de seus relacionamentos familiares.
- Eu estava com muita saudade de você, Demolidor – insinuou-se uma das garotas. Ela era de um loiro oxigenado e vulgar.
- Já com saudade? Achei que ontem tinha varado essa bucetinha satisfatoriamente. – disse Conrado passando a mão entre as pernas da garota.
- Eu nunca me canso de você Conrado – os dois chocaram seus lábios um no outro, em um beijo-mordido.
A outra garota, de cabelo preto, vendo a empolgação de Conrado com sua amiga, puxou Pezão para si, beijando sua boca com fome. O do moicano logo tratou de atolar sua mão na bunda generosa da morena.
- Esses nossos namorados estão muito tesudos Maria – disse a loira para a amiga.
- Concordo Michele – respondeu ela para a oxigenada.
- Namorados? Olha pra isso Pezão – sorriu alto Conrado, afastando Michele. – Gatinhas, o que a gente faz não tem nada haver com namoro.
- E disso não podem reclamar, por que o serviço é bem feito – completou Pezão, tocando na mão de Conrado.
- Conrado Lima Jadão não é propriedade exclusiva, e sim de uso público de toda bucetinha gostosa.
- Se quiserem, eu posso ser o namorado das duas – disse Azeitona tentando passar o braço o no ombro de Michele.
- A única coisa que você vai namorar, é minha mão no seu rosto seu gordo ridículo – Michele foi áspera, não pela ousadia de Azeitona, mas principalmente pelo desprezo de Conrado, que ela era mais do que fissurada.
- Chega de papo furado e vamos para o que interessa – Conrado ordenou, fazendo com que todos tomassem seus lugares. Ele, Michele e Azeitona, foram em seu carro esporte luxo. Maria e Pezão, no jipe verde-militar deste último.
Com os dois carros cheios de bebidas e inalantes, que eram consumidas ao volante, eles rodaram a cidade inteira, pichando patrimônios públicos, atirando em alvos incertos, jogando bombinhas em mendigos, quebrando vidraças de lojas, em resumo, tocando terror na cidade. Alucinado, sem limites, sem controle, sem razão era assim que Conrado Lima Jadão anestesiava seus fantasmas.
Satisfeitos com o vandalismo, partiram para o clímax da noite: uma disputa de racha com outro grupo de marginais. Os pontos de encontro mais comuns, eram túneis abandonados ou interditados.
- Essa noite é revanche, Demolidor – sussurrou Pezão para o amigo, assim que eles se uniram com o grupo rival que já os aguardavam. – A gente tem que detonar com eles.
- Certo – Conrado afirmou com a cabeça.
- Como que é? Vão fazer as unhas antes de começarem essa porra! – gritou o rival de Conrado, olhando para ele que conversava com Pezão.
- Te prepara Bola – Conrado se aproximou do seu rival. – Essa noite tu vai terminar na merda.
- Um de nós com certeza vai terminar – riu Bola.
- Atenção! Todos em seus carros! – um cara ruivo e com tatuagens por todo corpo anunciava aos berros.
Os carros roncavam com leões ferozes, e seus motoristas se encaravam como tigres famintos.
- Vai! – o tatuado gritou, vendo só a fumaça e a poeira dos carros que disparam como raios.
A plateia agradecida pirava, gritando, xingando, berrando.
Conrado e Pezão estavam com uma boa vantagem em relação aos outros. Com certeza iriam ganhar a disputa. E foi na mesma velocidade dos carros, que se deram os acontecimentos. Primeiro Conrado viu um vulto, e logo em seguida ouviu um baque surdo e a freada do carro. Ele havia batido em alguma coisa, não em cheio, mas havia batido.
O jipe de Pezão parou abruptamente logo atrás do carro de Conrado, quase colidindo com o mesmo, surpreendido pela freada inesperada. Todos desceram para ver o que tinha acontecido.
- O que você fez cara?! – gritou Michele vendo um homem atirado logo à frente. Ela foi a primeira a ver o que tinha acontecido.
Conrado desceu do seu carro e ficou imóvel, observando um homem jogado no chão. Era o vulto que ele havia atropelado. Os outros carros do grupo rival tomaram a frente gritando:
- Perdeu otário!
- E-e-eu não vi esse desgraçado, ele surgiu de repente – Conrado nervoso, quase não conseguia organizar o que dizia e muito menos dá atenção para os carros que tomavam a dianteira da disputa.
- Vamos vazar daqui antes que a coisa ferre de vez – disse Pezão nervoso. Ninguém se atrevia a verificar se o homem estava vivo.
De repente eles ouviram a sirene da polícia. Pezão, instintivamente, pulou dentro do jipe como uma pantera, manobrando o carro na direção oposta ao som.
- Cai fora Demolidor! – ele ainda gritou, mas Conrado estava nervoso, e não conseguia tirar o carro dali. Azeitona e Michele, como muito medo de serem pegos, subiram rapidamente no jipe de Pezão, que partiu imediatamente. Michele ainda protestou em vão, para que não deixasse Conrado para trás.
Quando o Jadão acordou do transe, percebeu que estava sozinho, e que já era tarde demais. Os faróis da polícia iluminaram todo o túnel.
- Mãos sobre a cabeça! Encosta no carro! – ordenou dois policiais, se aproximando do meliante. Seus sorrisos se abriram de satisfação ao constatar quem era: – Conrado Lima Jadão. O delegado Luís vai adorar te rever.