– Capítulo 12 –
Nossa vida juntos
Parado diante da janela do quarto, Miguel, ainda nu, observava o nascer do sol, enquanto Conrado ainda dormia todo contorcido na cama. A noite passada tinha sido realmente intensa e maravilhosa. Como sua vida havia mudando tão rápido. Parecia que tinha sido ontem, que ele ainda era um jovem com medo do inferno, cheio de conflitos internos, reprimindo os desejos de sua natureza, lutando contra o amor (batalha inútil).
O sol nascia imponente, repelindo qualquer resquício de sombra, abrindo um novo dia.
- Que visão linda! – a voz rouca de Conrado despertou Miguel do transe.
- Bom dia! – Miguel virou-se para ele.
- O que você faz acordado há essa hora minha vida?
- Estou assistindo o nascer-do-sol – Miguel abriu um sorriso enorme. – Me acompanha? Conrado se espreguiçou e foi ao encontro do outro, também nu. Os dois se abraçaram, colando suas bocas em um beijo suave. Conrado o abraçou por trás, roçando seu queixo na nuca de Miguel. Os raios de sol invadiam o quarto banhando os corpos dos dois.
- Está preparado para amanhã? – perguntou Conrado, bem perto do ouvido de Miguel.
- Acho que sim – Miguel sorriu, virando rosto para ele para mais um beijo.
- Vai dar tudo certo! – Conrado o apertou. – E se der errado a gente acerta.
Miguel riu e disse:
- Eu não sei que eu fiz para merecer tanto amor, para merecer um cara incrível como você.
- Você nasceu! – Conrado o virou com força, beijando com muito desejo.
Os dois fizeram amor, mas dessa vez com mais suavidade e calma, diferente da noite passada.
Naquela manhã Miguel queria voltar para o seu trabalho no hospital. Já se sentia totalmente recuperado. Além do mais, iria pirar se não ocupasse sua mente na véspera da viajem.
Contra a vontade de Conrado, os dois voltaram as suas atividades normais. Miguel estava se corroendo de saudade das suas crianças. Então, depois de um rápido café, foram para o hospital. Miguel saiu em disparada para oncologia infantil, assim que chegaram.
- Bom dia meus amores! – ele entrou junto com Conrado.
- Tio Miguel! – Liara veio ao seu encontro explodindo de felicidade.
- Oi minha princesa! – Miguel a abraçou beijando suas bochechas demoradamente. – Estava com tanta saudade de vocês.
Outras crianças vieram ao encontro de Miguel, no mesmo estado de alegria que Liara. Ele nunca tinha ficado tanto tempo longe delas.
- E eu? Não ganho beijinho também? Ninguém sentiu saudade de mim? – Conrado fez um bico fingindo que ia chorar.
- A gente sentiu saudade sim tio Conrado – João abraçou as pernas dele.
- Sentimos sim! – confirmou Liara, abraçando a outra perna.
- Eu também! – Conrado se abaixou acolhendo todos com seus braços enormes e calorosos.
Liara se voltou novamente para Miguel e disse:
- A tia Júlia disse que você estava doentinho.
- Estava sim, meu amor – Miguel confirmou. – Mas agora o tio está novinho em folha.
- E o seu cabelo não caiu? – perguntou João.
- Não meu lindo – Miguel se abaixou ficando da altura do menino.
- Ainda bem – João sorriu. – O seus cachinhos são muito bonitos para caírem.
Miguel lançou um sorriso terno e complacente.
- Que tal uma brincadeirinha para começarmos o dia? – propôs Conrado.
- Eba! – algumas crianças exclamaram, enquanto outras apenas expressaram sua concordância com um sorriso tímido.
- Então vamos lá – Conrado gesticulou com as mãos. – O nome da brincadeira “Não Deixa Meu Beijo Cair”.
Miguel olhou para ele com o cenho franzido, tentado entender que brincadeira maluca a mente insana do seu namorado havia planejado.
- Eu começo – Conrado ergueu o dedo indicador para cima.
Ele se aproximou de Miguel e lhe deu um beijo longo, bem próximo ao canto de sua boca.
- Agora tio Miguel tem que repassar o beijo para outra pessoa antes que ele caia. – explicou Conrado.
Miguel continuou parado, apenas rindo para ele, encantado com a atitude simples e linda do namorado.
- Anda tio Miguel! – Conrado ordenou. – Meu beijo vai cair.
Miguel despertou do transe e agarrou João, estalando os lábios na sua bochecha. Joãozinho mais que depressa foi em direção a Liara repassando o beijo, e assim o beijo foi sendo passado de criança em criança. Para aquelas que estavam muito debilitadas, deitadas nas camas, Miguel e Conrado recebiam seus beijos e levavam para a criança mais próxima. Todos se divertiram muito com a simples brincadeira, porque na verdade, o que mais contava ali, era a dedicação do casal para com aquelas crianças. Miguel e Conrado eram essenciais no tratamento, pois todo o amor e atenção que ele dedicavam, reconfortava aqueles pequenos seres, postos à prova de fogo ainda na idade tenra.
A manhã passou mais rápida do que o desejado por Miguel e Conrado. Ainda precisava de muito tempo para matar toda a saudade que sentia de seus pequenos, mas já era hora de partir.
Não voltariam à tarde para trabalhar, pois Luciano os dispensara para se prepararem para viajarem. Mesmo com toda essa ocupação, Miguel só tinha alguns momentos de distração, e logo o seu pensamento voltava para viajem do dia seguinte. O reencontro com sua mãe era a pauta principal de sua concentração.
- Para de se martirizar, cordeirinho, com essa ansiedade – disse Conrado, observando o semblante do namorado. Os dois voltavam para mansão de carro.
- Ansioso, nervoso, com medo – Miguel entrelaçava os dedos das mãos. – Estou me consumindo.
- Relaxa amor – Conrado acariciou a perna do outro. – Tenho certeza que vamos voltar dessa viajem soltando fogos.
- Deus te ouça – Miguel falou quase como um sussurro.
Já na mansão, eles tomaram banho, almoçaram, e ficaram deitados na cama, descansando bem à vontade. Júlia e Luciano pegariam o expediente direto, pois havia uma reunião do Conselho do hospital importantíssima.
- Posso de fazer uma pergunta? – Conrado acariciava o cabelo de Miguel, que estava deitado sobre o seu peito.
- Vai em frente – a voz de Miguel era sonolenta.
- Você já tinha ficado com outro cara antes de mim? É que você é o primeiro.
- Não... – Miguel respondeu hesitante, acariciando o peito de Conrado.
- E nunca sentiu nada por outro homem?
Miguel ficou por um instante em silêncio, até que começou a falar.
- Há algum tempo, um pastor amigo do meu pai veio passar uma temporada aqui na cidade, ele se hospedou junto com seu filho, Caio, na minha casa. Eu e o Caio nos tornámos amigos rapidamente. Conversávamos horas a fio. Fazíamos tudo juntos. Nossa cumplicidade era muito grande, a maior que eu havia tido com uma pessoa até aquele momento. Com ele eu não tinha receio de conversar certos assuntos inerentes à adolescência, sabe?
- Sei... Sei... – Conrado resmungou não gostando muito do que ouvira.
- No dia da sua partida, eu chorei muito – Miguel se aninhou mais no peito de Conrado.
– Então, quando ele se despedia de mim, disse que me deixaria algo para que eu nunca o esquecesse, e, principalmente, para que eu soubesse que a vida e Deus, estão além das paredes e do teto de uma igreja. Ele me beijou.
Conrado se mexia inquieto, com a cara fechada devido ao modo como Miguel relatava o acontecido; tinha certo tom de nostalgia.
- E você deve ter retribuído o beijo com muita vontade.
- Na verdade eu dei um tapa na cara dele.
- Tomou distraído! – Conrado gargalhou.
- Ele não me disse nada, apenas sorriu e foi embora.
- Cara de pau!
- Desde esse dia, minha cabeça se tornou um caos – Miguel falava com tristeza. – Não havia um só momento em que eu não me culpava, pois sentia que algo dentro de mim efervescia desesperado para explodir. Tentei namorar algumas garotas, mas tudo em vão. Christiane foi a única pessoa com quem tive coragem de conversar, pois estava a ponto de enlouquecer.
- Nossa! Esse manezão mexeu tanto com você assim?
Miguel ergueu a cabeça e olhou para Conrado, vendo sua cara emburrada.
- Não era ele, e sim o verdadeiro Miguel lutando para sair – ele tentou explicar. – Mas só quando encontrei um chato, mimado, tarado e o amor da minha vida, é que eu tive coragem de ser quem sou.
- Sei... Sei... – Conrado torceu a boca para o lado. – Aposto que você ainda se lembra do Caio.
- Claro que sim! Eu não tenho Alzheimer – Miguel sorriu.
- Palhacinho – Conrado fechou os olhos.
- Amor. Eu não acredito que você tá com ciúme de um cara que ficou no passado.
Conrado ficou em silêncio.
- Foi você que perguntou – Miguel observou.
- Mas não precisa relatar, todo meloso. – Conrado disse secamente.
- Deixa de ciúme bobo, Conrado?
- Não! – Conrado, de olhos fechados, segurava o riso.
Miguel subiu em cima de seu peito, sentando-se bem perto do pau de Conrado, encostou sua boca bem perto da dele e sussurrou.
- Não existe ninguém mais importante do que você para mim. Eu te amo.
Conrado abriu os olhos lentamente, e ficou admirando a beleza de seu namorado, até que abriu um sorriso e disse:
- Você é minha vida. Se o otário do Caio não foi bom o suficiente para ti ter, ele que se foda. Você é meu!
- Pra sempre seu!
Eles se entregaram ao desejo incandescente, e fizeram amor até os seus corpos dizerem: chega. Claro, um “chega” que duraria pouco tempo.
Os dois adormeceram agarradinhos, impregnados com o cheiro um do outro.
Miguel acordou eram 15 horas. Ele olhou para o lado e viu que Conrado ainda dormia, respirando calmamente. Saiu devagarinho da cama, e foi tomar um banho, evitando barulhos mais bruscos. Vestiu-se e ligou para Christiane.
- Oi Miguel, tudo bem? – Christiane atendeu.
- Sim, estou bem – Miguel respondeu rapidamente. – Chris eu preciso de um favor seu.
- Manda primo.
- Você pode vir me pegar aqui agora na casa do Conrado?
- Claro. Mas aconteceu alguma coisa?
- Depois eu te explico – Miguel estava enigmático. – Vou te esperar no portão.
- OK! Chego aí daqui a pouco.
- Ótimo. Até já – Miguel se despediu.
- Até – Christiane desligou
Miguel se certificou de que Conrado ainda dormia e saiu do quarto, rumando para fora da mansão.
Meia hora depois, o carro de Christiane estacionou na frente do portão da casa da família Jadão.
- Desculpa a demora, mas é que teve um acidente na avenida principal e tive que pegar outro caminho.
- Não tem problema – Miguel entrou no carro.
- E pra onde vamos? – perguntou Christiane se roendo de curiosidade.
- Para a casa do pastor Oliveira – respondeu Miguel com uma naturalidade inacreditável.
- Você ficou maluco? Bateu com cabeça? Tá chapado? Fumou um? – Christiane não acreditou no que ouvira.
- Eu preciso vê-lo.
- Pra quê? – ela balançou a cabeça reprovando a atitude do primo. – Não faz o menor sentindo.
- Christiane, por favor, é importante para mim.
- O Conrado sabe disso?
- Lógico que não. Ele não aceitaria de forma alguma.
- E está coberto de razão.
- Chris, é o seguinte: eu vou falar com o pastor, com ou sem a sua ajuda, então, não se sinta forçada aí – Miguel foi direto.
Christiane socou o volante várias vezes e manobrou o carro, soltando fogo pelas narinas. Os primos foram todo o trajeto em silêncio. Miguel olhava para as ruas movimentadas, concentrando os seus olhos nas mães com os filhos, imaginava-se junto com a sua.
Quando o carro parou na frente da casa do pastor Oliveira, Christiane ainda perguntou:
- Tem certeza que quer fazer isso?
- Não! Mas eu preciso fazer isso – Miguel respondeu, descendo do carro em seguida.
Ele e Christiane foram em direção à porta, que estava semicerrada. Os dois primos entraram com certa cautela, olhando para todos os lados, como se temessem que um leão feroz os atacasse subitamente.
A casa estava uma bagunça, os móveis cobertos de poeira e uma porção de pratos sujos e embalagens de comidas instantâneas espalhadas pelo chão.
- Quem está aí? – uma voz arisca ecoou do gabinete do pastor.
Miguel e Christiane ficaram parados na sala, esperando o predador se apresentar.
Um homem magro, cabelo grande, barba por fazer e mal asseado, se apresentou.
- Pai?! – Miguel se sentiu sensibilizado diante do estado deplorável do pastor Oliveira.
- Não me chame de pai seu imundo! – o pastor berrou.
- Miguel você não precisa passar por isso – Christiane segurou em seu braço, tentando o levar.
- Quero falar-lhe – Miguel se soltou de Christiane.
- Saia da minha casa! – o pastor tinha os olhos cheios de ódio. – Eu não o conheço. O meu filho Miguel morreu, junto com minha esposa, junto com minha igreja.
- Pai...
- EU TENHO NOJO DE VOCÊ! QUERO QUE QUEIME NO INFERNO!
- Vou deixá-lo em paz – uma lágrima escorreu dos olhos de Miguel. – Mas antes queria que soubesse que amanhã estarei indo ao encontro da minha mãe. E dessa vez, ninguém vai poder me separar dela.
- Quero que você dois se danem – o pastor cuspiu.
- Eu nunca quis que as coisas caminhassem por esse rumo – Miguel limpou o rosto. – Lamento muito que o senhor não me entenda. Se não podemos ter tudo, eu escolho a felicidade, e ela está com o Conrado.
- SAIA DAQUI DEMÔNIO!!!
- Que Deus esteja com o senhor – Miguel deu as costas.
- Parece que Deus está mostrando para o senhor, o quanto aprovava suas posições – Christiane foi irônica.
Miguel e ela foram embora, deixando para trás um trapo do que fora o pastor Oliveira.
No caminho de volta para a mansão, Miguel soluçava baixinho, limpando as lágrimas que teimavam em escorrer dos seus olhos. Era o fim da relação dos dois.
Em casa, ele voltou para o quarto para ver Conrado.
- Onde você estava?! Eu te liguei um milhão de vezes e só dava na caixa postal – Conrado estava desnorteado.
- Eu desliguei o celular – Miguel respondeu de cabeça baixa.
- Aonde você foi?
- Estive com meu pai.
- O quê?! Como assim?
- Por favor, Conrado, não brigue comigo – Miguel começou a chorar. – Eu precisava vê- lo, antes de viajar, precisava encarar os caminhos opostos que seguimos. Foi o fim de tudo.
- Oh, meu amor – Conrado não conseguiu mais repreendê-lo. – Eu estou aqui.
Os dois deitaram abraçados e ficaram por muito tempo daquele jeito, até que Miguel tivesse se acalmado.
À noite, fizeram apenas um lanche leve e foram dormir cedo. A manhã vindoura seria deveras intensa.
***
- Dirija com cuidado Conrado, e qualquer coisa não hesite em me ligar.
- Pode deixar pai – Conrado remexeu os olhos, demonstrando está estupefato de tanta preocupação.
- Tenho certeza de que tudo vai dar certo – Júlia deu um beijo em cada um de seus meninos. – Vai ter sua mãe de volta Miguel.
Miguel sorriu emocionado, abraçando com força sua amiga.
- Obrigado por tudo que vocês fizeram por mim. Eu sei que nunca vou conseguir retribuir a altura, mas prometo me esforçar a esse respeito.
- Eu que devo uma vida a você Miguelzinho – Luciano o tomou nos braços. – Se não fosse por você eu não teria o meu Conrado de volta.
- Está tudo muito lindo, emocionante, meloso, mas precisamos pegar a estrada cordeirinho. – Conrado se fez de impaciente.
- Fica calmo aí apressadinho – Christiane se manifestou. – Deixa pelo menos eu me despedir do meu priminho predileto.
- Só todo seu – Miguel se jogou nos braços dela, recebendo um abraço de urso.
- Boa sorte meu lindo – ela sussurrou no ouvido dele. – Que tudo aconteça de forma que venha a superar as suas expectativas.
- Obrigado Chris! Você esteve do meu lado nos momentos mais difíceis e eu te agradeço do fundo do meu coração – Miguel também falou baixinho.
- Agora que o todo mundo já atuou no drama, será que podem deixar eu e o cordeirinho partimos logo? – Conrado pôs as mãos na cintura.
- Vai logo seu chato – disse Christiane abraçando o namorado marrento de seu primo.
Miguel e Conrado entraram no carro e saíram, ainda acenando pela janela, até desaparecerem na curva.
- Nem acredito que estou tão perto de ver minha mãe – Miguel comemorava com um riso bobo.
Conrado o olhou com satisfação, apertando sua coxa.
- Você merece toda a felicidade mundo – disse ele. – Mas... Ah, deixa pra lá.
- Fala amor.
Conrado balançou cabeça, dando a entender que não era algo importante, mas seus olhos diziam o contrário.
- Fala logo, Conrado – Miguel ficou um pouco mais sério.
- É que... – ele mordeu o lábio nervosamente. – Bem... Você já pensou na reação de sua mãe quando souber...
- Que eu sou gay?
- É.
- Claro que pensei – Miguel entristeceu o semblante. – Existe a possibilidade dela não aceitar o nosso relacionamento.
- E é nessa hora que eu danço – Conrado falou sentindo um nó na sua garganta bloquear a voz.
Miguel o fitou demoradamente antes de dizer:
- Não mesmo!
Conrado abriu um sorriso amoroso para o namorado, ao ouvir sua fala convicta.
- Eu quero muito reencontrar minha mãe, muito mesmo – Miguel prosseguiu. – Mas haja o que houver, não vou abrir mão do nosso amor.
- E se tiver que escolher?
- Você não ouviu o que eu disse? “EU NÃO VOU ABRIR MÃO DO NOSSO AMOR”.
Conrado sentia o coração acelerar, sentia todo o amor de Miguel unir-se ao seu numa inteireza divina.
- Eu te amo, meu cordeirinho – Conrado apertou novamente a coxa de Miguel.
- Eu mais ainda – Miguel pôs sua mão sobre a do namorado, expondo sua aliança reluzente.
Surpreendentemente, a cidade ficava na região. Miguel e sua mãe estavam relativamente perto um do outro, mas por ironia destino, não estavam juntos, ou melhor, pela crueldade do pastor.
- Notei que você não está usando um mapa – observou Miguel. Conrado ficou alguns instantes mudo antes de explicar:
- Eu não te contei. A cidade onde sua mãe está era onde morávamos antes da minha mãe morrer.
- Cheguei a cogitar isso – Miguel concentrava sua visão na paisagem frontal. – Então deve estar com as emoções à flor da pele.
- Um pouco – Conrado falou quase sussurrando. – Já faz tanto tempo... Minha vida toda foi construída lá.
Silêncio.
- Trouxemos muita bagagem – Miguel comentou.
- Eu suponho que teremos que ficar por algum tempo na cidade, afinal você vai conhecer sua mãe, e isso definitivamente não é como preparar um miojo. – Miguel riu. Existem momentos que somos tomados por um prazer masoquista. A situação de nervosismos é tão intensa, que começamos a rir, no limite de suar sangue. Qualquer comentário por mais bobo que pareça, é a válvula de escape de uma gargalhada, que
dada à situação introspectiva, deveria ser um choro.
A viajem seguia tranquila. Por longos espaços de tempo, eles não trocavam uma palavra. Vagavam pelos seus próprios vales de lembranças – Conrado –, ou vales de expectativas – Miguel.
- Quando voltarmos dessa viajem, eu quero morar com você no nosso cantinho – disse Conrado seriamente, como se naquele momento deixasse de ser um moleque mimado, e assumisse uma postura madura e adulta.
- E eu posso entender isso com um quase casamento?
- Não. Você deve entender isso como um casamento mesmo – a voz de Conrado era grave.
- Então é sim.
Miguel encostou sua cabeça no ombro do namorado, com as bochechas em brasa. Era incrível o poder de Conrado de deixa-lo ruborizado, mesmo depois dos dois já estarem envolvidos na mais profunda intimidade.
Viajaram ininterruptamente até a hora do almoço. Conrado estacionou em um posto na estrada, e os dois foram almoçar na churrascaria do estabelecimento, depois que Conrado abasteceu o carro.
Miguel quase não comeu, pois estava um pouco nauseado da viajem. Conteve-se apenas com um energético de laranja.
Os dois não demoraram muito, e pegaram novamente a estrada. Miguel estava abastecido de alguns livros e muitos chicletes, que o acalmavam.
A segunda parte da viajem foi mais dinâmica, os dois conversavam sobre o futuro, principalmente na possibilidade de ingressarem na faculdade. Conrado, antes da morte da mãe, havia decidido seguir os passos do pai na careira médica, mas todos os seus objetivos foram abandonados com a grande dor. Miguel, seu resgatador, agora o conduzia de volta para os mesmos anseios de quando era um jovem cheio de sonhos, e o contrário também era verdade. O amor por Conrado fizera Miguel enxergar as coisas a partir de horizontes mais amplos.
A noite começava a mudar o cenário. O carro estava fora do perímetro urbano, ladeado por campos abertos e pastagens.
- Precisamos encontrar um lugar para passar a noite – Miguel olhava para escuridão, apreensivo.
- É? Mas se continuarmos na estrada, nós vamos chegar cedo da manhã – afirmou Conrado.
- Continuar a noite? De jeito nenhum – Miguel foi incisivo. – Estamos muito cansados, e essas estradas são praticamente desertas. Vamos dirigir até encontrarmos um lugar para ficarmos.
- Tem certeza? É que se a gente prosseguir...
- Não meu amor – Miguel falou com doçura. – Prudência e uma boa noite de sono, é o que precisamos agora.
Conrado sorriu, sem mais questionar o que era obviamente sensato.
Tiveram que dirigir por apenas mais ou menos dois quilômetros, até avistarem um hotelzinho simpático. Não era lá essas coisas, mas diante do estado de esgotamento total que eles se encontravam, qualquer barraca com um teto e uma cama, era um palacete.
Conrado pediu um quarto e subiu junto com Miguel. Depois de um banho quente, se jogaram na cama e caíram em um sono súbito. Realmente, não havia a menor possibilidade de dirigirem durante a noite inteira.
Bem cedo, tomaram um café bem caseiro e saboroso, oferecido pelo hotel, e partiram, antes do nascer-do-sol.
- Falta pouco cordeirinho – Conrado informou, quando eles já haviam, deixado o hotelzinho quilômetros atrás.
Miguel apenas respirou fundo, estufando o peito ao máximo, sentindo um embrulho no estômago, somado a pequenas descargas elétricas que bloqueavam seus sentidos em intervalos de segundos.
Já por volta das nove horas, cruzaram por uma placa que tinha o seguinte escrito: SEJA BEM-VINDO A ALVORADA DO NORTE.
- Chegamos cordeirinho – Conrado falou com um leve tremor na voz.
Miguel engoliu a seco. Uma onda de pensamentos e sensações invadiu a sua mente, em uma velocidade que tornava impossível a concentração em uma só coisa.
Não demorou muito e eles avistaram o que parecia ser um sítio. No portão principal, havia uma placa com o escrito: ESPAÇO RECOMEÇAR.
- É ali – Miguel apontou. – É um lugar lindo!
- Sim, é. – Conrado manobrou o carro e o guiou por uma curta estrada de pedra até o portão.
Miguel desceu rapidamente, e caminhou até o interfone que avistou.
- Bom dia, em que pessoa ajudar? – uma voz feminina atendeu o interfone.
- Aqui é Miguel Fernandes Oliveira, eu gostaria de falar com a Sra. Edite Ferreira, por favor. – Miguel se apresentou.
- Está falando com ela meu rapaz – a voz ficou apreensiva. – Você é o filho que procura pela Silvia, certo?
- Exatamente – Miguel falou nervosamente. Conrado estava parado ao seu lado.
- Vou recebê-lo em alguns instantes, por favor, me aguarde.
- Eu espero.
- Nos vemos daqui a pouco – Edite desligou.
Minutos depois, uma jovem senhora de expressões mansas e com modos que lembrava essas mãezonas dos seriados de TV, se apresentou ao lado de um rapagão robusto, desses que transbordam a masculinidade pelos poros, onde a linha que separa a beleza e a virilidade é tênue.
- Oh, meu Deus! – a mulher levou a mão à boca, assim que pôs os olhos em Miguel.
- Olá... – Miguel não sabia o que dizer direito.
A mulher lançou-se no pescoço do rapaz o abraçando com força, deixando algumas lágrimas rolarem. Miguel ficou um pouco assustado, mas não recuou.
- Como Deus é misericordioso – a mulher repetia ainda abraçada a Miguel.
- A senhora é Edite Ferreira?
- Sim – ela respondeu se desvencilhando dele. – Desculpe o meu jeito, mas é que todos nós de certa forma passamos a fazer parte da história da Silvia. Oh, meu Deus, você é muito parecido com ela. O cabelo, os olhos, a pele, o jeito doce, tudo. – Edite estava boquiaberta diante da escancarada semelhança.
- É realmente impressionante – o rapaz que acompanhava Edite se manifestou.
Conrado o lançou um olhar como se quisesse alertar que ele estava pisando em terreno privado.
Os quatro adentraram no sítio. Edite mostrava todas as dependências externas enquanto eles caminhavam para uma casa azul cercada por um alpendre. Na residência, conversaram bastante, choraram absurdos e sorriram exageradamente. Edite não quis adiantar muita coisa sobre Silvia, pois acreditava que era ela que tinha que contar tudo ao filho, mas falou superficialmente sobre os problemas que a mãe de Miguel havia enfrentando e sua recuperação na clínica. Miguel, por sua vez, mostrou a ela as cartas e as fotos, que vieram só reforçar o que Edite já tinha certeza.
- Bem, Miguelzinho – ela limpava as lágrimas. – Quando você ligou para cá, eu tive muitas dúvidas quanto a sua história, e o fato de não ter aparecido como o combinado me fez acreditar que tudo não tinha passado de um trote, pois muita gente conhece a história da Silvinha, mas ao vê-lo naquele portão, não tive a menor dúvida que estava diante do desejado filho dela.
Miguel sorria em meios às lágrimas.
- Agora pergunto a você: está preparado para encontrar sua mãe?
- Tenho esperado por esse momento com se minha vida dependesse disso. – Miguel desabafou.
- Então vamos – Edite se levantou, os chamando.
Conrado e Miguel a seguiram de carro, enquanto ela ia à frente, no seu próprio veículo. Andaram cerca de dois quilômetros, até o inicio da cidade. Conrado achava tudo diferente, mas ainda reconhecia muitos pontos.
O carro de Edite parou diante de um sobrado pintado de rosa com detalhes em branco, muito requintado e espaçoso. Via-se que os proprietários desfrutavam de uma condição financeira privilegiada.
Todos desceram dos carros e se aproximaram do portão.
- Essa é a casa da sua mãe – Edite apontou.
Miguel fez uma varredura por todo o imóvel, admirado com tanto cuidado e bom
gosto.
No jardim, uma mulher de cabelos cacheados, cor de trigo, plantava algumas
mudas. Ela estava de costas para o portão, onde as visitas estavam paradas.
- É ela? – Miguel apontou para a mulher já sabendo a resposta.
Edite apenas disse que sim com a cabeça.
Miguel foi para mais perto do portão, andando lentamente.
- Mãe? – ele chamou em voz alta.
A mulher parou o que estava fazendo, e virou o pescoço lentamente, até que os seus olhos encontram os olhos de Miguel. As duas figuras se encarando, num reconhecimento de almas.
- Miguel? Miguel?! – Silvia gritou, vendo a confirmação no rosto de Edite.