– Capítulo 15 –
Assumindo a antiga carga
UM MÊS DEPOIS...
- A convivência com seu pai não deve estar nem um pouco fácil, não é? – Júlia perguntou a Miguel, enquanto os dois analisavam uma porção de prontuários.
Ele apenas a olhou e fez um gesto de confirmação.
- Você tem tomado muito analgésico – Julia falou com uma preocupação médica.
- Não tenho dormido direito. – Miguel tentou justificar. – E fico muito mal em ver o Conrado sofrendo por esta situação.
- Ele nos disse que você sente tonturas constantes e até desmaios, e também que estava com muita irritação à luz. Precisa se cuidar Miguel.
- Tenho me alimentado mal, e acho que o estou com algum problema oftalmológico.
- Foi uma decisão muito difícil, voltar para casa do seu pai. – observou Júlia. – Não consigo imaginar a sensação de estar ajudando alguém que amamos, quando o que essa pessoa tem a nos oferecer é um rancor venenoso.
- Não tento confrontá-lo, e não revido suas provocações. – Miguel estava muito abatido.
– As enfermeiras plantonistas, que tentamos, não suportaram o convívio com ele. Acho que ele me queria, para dar-me o “castigo merecido”. Só a Ana, a empregada, que decidiu ficar.
- Eu sei que ele é seu pai e estar em uma situação muito difícil, mas isso não lhe dar o direito de arrastar você para o abismo.
- A vinda da minha mãe para a cidade tem me ajudado a me manter firme, além é claro, do Conrado, da minha irmã e do pai dela e de você e do Luciano.
- Conte comigo sempre que precisar.
Miguel levantou-se e saiu.
Na casa do pastor, ele encontrou seu pai lendo um jornal, sentando na cadeira de
rodas.
- Cheguei – Miguel entrou indo até o seu pai. – Como está?
- Por que insiste nisso. – perguntou seu pai, baixando o jornal.
- Como?
- Já faz um mês que você está na minha casa, “cuidando de mim”, mesmo eu deixando bem claro que não quero sua presença. Por que continua? É algum peso de consciência, ou uma tentativa de redenção?
- Eu não sinto arrependimento ou culpa por amar quem eu amo. – respondeu Miguel com a voz fatigada. – Mas por mais que eu esteja cheio de mágoas com relação ao senhor, não consigo seguir em frente como se nada tivesse acontecido.
- Não preciso de sua pena.
- Não é pena. É... Bem, se o senhor não sabe o que é não serei eu a dizer. Com licença – Miguel virou-se, mas antes de deixar a sala seu pai o interrompeu dizendo:
- Sua mãe esteve aqui.
- O que ela queria?
- Depois de me dizer alguns desaforos, falou que estava preocupada com sua saúde – disse o pastor. – Está doente?
- Exausto, com certeza – Miguel arfou. – Este último mês tem sido muito difícil.
Por alguns segundo, uma centelha de preocupação percorreu os olhos do pastor, mas logo as feições austeras retornaram.
- Ana? Sirva o meu almoço – ele gritou. – Essa empregada nunca aprende os meus horários.
O pastor manobrou a cadeira, dando as costas para o filho, sepultando qualquer resquício de sentimento paterno que ainda sobrara.
Miguel fez o caminho inverso, e invés de ir para o quarto, saiu novamente de casa, e foi andar um pouco. Conrado havia viajado com o pai a trabalho, mas voltava no mesmo dia.
Andou por um curto espaço de tempo, até que sentiu a mesma pontada na cabeça e se apoiou em um muro, sentido muitas náuseas. Com o corpo inclinado como se quisesse vomitar, ele ficou alheio a todos os movimentos da rua, e não percebeu quem era. Uma pancada forte lhe tirou os sentidos, e ele desmoronou no chão totalmente desacordado.
***
Quase no final do dia, a campainha do pastor Oliveira tocava insistentemente.
- Já vai! – o pastor berrou, direcionando a cadeira de rodas para a porta. – Gente mal- educada.
Quando abriu a porta deu de cara com Conrado e Silvia.
- Ah, não, os dois vieram me azucrinar – o pastor afastou a cadeira, dando as costas para os visitantes.
- Onde está o Miguel? – perguntou Silvia.
- Não faço a mínima ideia – respondeu o pastor com desinteresse.
- Como assim? – Conrado se aproximou um pouco dele. – Estou ligando há horas para o celular dele, e só dá na caixa postal. Fui à casa da dona Silvia, achando que ele estava lá e ela disse que não o vira durante todo o dia.
- Ele não está aqui com você Antônio?
- Já disse que não!
- Mas ele saiu, ou disse alguma coisa? – perguntou Conrado.
- Há muito tempo a vida do Miguel deixou de ser do meu interesse. – o pastor olhou para Conrado. – Agora façam um favor para mim, não me amolem com assuntos inúteis.
- É mesmo impressionante a sua capacidade de destruir tudo ao seu redor – disse Silvia.
- Não estou interessado em ouvir o que pensa ao meu respeito Silvia. – o pastor já ia saindo.
- Mas você vai ouvir, queira ou não! – Silvia bloqueou a passagem da cadeira, mirando o pastor com fúria.
Ele não disse nada, apenas recuou diante do tom alterado de sua ex-esposa.
- Já faz mais de um mês que ele está aqui nessa prisão, sendo torturado pelo carrasco que você é – Silvia começou o desabafo. – Está definhando por sua causa. Usando de suas últimas reservas de força e virtude, e precisa de muitas, para suportar o seu desprezo e seu rancor, enquanto se dedica a essa sua vida miserável.
- Eu não pedi para que ele fizesse nada por mim! Já o mandei ir embora diversas vezes – o pastor bradou.
- “Não pediu”? – Silvia repetiu estarrecida. – E desde quando esperamos o pedido daqueles que amamos para agirmos em favor deles? Mas não adianta falar de amor para você, não é mesmo?
- Chega dessa conversa! – o pastor contornou a cadeira por Silvia. – Por que não cheira um, e me deixa em paz?
- Seu...
- Estamos perdendo tempo aqui, Silvia – Conrado a interrompeu. – Vou ligar para Christiane.
Ele saiu da casa, sacando o celular.
Sozinha com o pastor, Silvia ainda lhe disse uma última coisa antes de sair:
- Esteja certo de que assim que eu encontrar meu filho, eu vou tirá-lo daqui nem que seja á força. – Silvia saiu.
Do lado de fora, Conrado estava escorado no carro com uma cara de muito preocupado.
- Conseguiu falar com a Christiane? – perguntou Silvia se aproximando do rapaz.
- Sim.
- E então?
- Ela disse que não falou com o Miguel hoje – respondeu Conrado umedecendo os lábios.
- Ah, meu Deus, o que aconteceu com meu filho?
- Não seria melhor chamar a polícia? – perguntou Conrado.
- Eles não vão fazer nada antes de completar as vinte quatro horas do desaparecimento – informou Silvia. – E também quero acreditar que não aconteceu nada demais, talvez ele apenas saiu para espairecer um pouco.
- Eu não vou ficar parado esperando notícias – Conrado ficou ereto. – O Miguel não está bem para ficar andando sozinho por aí.
- E o que você vai fazer?
- Vou sair pelas ruas à procura dele, alguma coisa pelo menos eu vou fazer. – Conrado abriu a porta do carro
- Eu vou com você – disse Silvia.
- É melhor que fique para o caso dele voltar para casa – sugeriu Conrado. – Como ficou bem claro agora pouco, o pastor não tem nem uma preocupação pelo filho.
- Você tem razão – concordou Silvia muito apreensiva.
Conrado partiu.
***
Miguel começou a se mexer lentamente, recobrando os sentidos, mas completamente desnorteado, sem saber o que tinha acontecido.
Ele sentiu suas mãos presas pelo o que ele julgou ser uma algema. Estava jogado em um piso de madeira. Nada, além disso, era possível divisar, pois o lugar estava completamente tomado pela escuridão.
- Socorro! – ele começou a gritar. – Têm alguém aí? Socorro! Alguém me ajude.
Miguel ouviu uma porta ranger e passos se aproximarem apressadamente dele.
Sua primeira reação foi se encolher, pressionando as pernas contra a o abdômen.
Subitamente uma luz forte ascendeu deixando-o cego, e com os olhos extremamente irritados, impossibilitado de saber quem estava presente.
- Finalmente acordou belo-adormecido. – uma voz rouca ecoou como uma ameaça. – Achei que teríamos que começar a brincadeira com você ainda dormindo.
- Quem está aí? Por que está fazendo isso comigo? – Miguel tentava colocar as mãos sobre a testa, para fazer sombra para os olhos, mas estas estavam voltadas para trás, dolorosamente voltadas para trás.
- Como é que se diz mesmo? Ah, lembrei, quem é vivo sempre aparece – uma sombra se formou sobre Miguel. Alguém se posicionou defronte a luz, bloqueando a luminosidade excessiva.
Miguel teve um sobressalto quando enxergou o rosto da figura. Sim, um fantasma do passado estava de volta, e agora parecia mais perigoso do que nunca. Acariciando sua cabeça raspada, ele se aproximou de Miguel e tocou seu rosto.
- Você não achou que eu ia deixar barato para você?
- O que você quer Pezão.
- O mesmo que eu – uma voz feminina entrou no ambiente. – Varrer você de vez das nossas vidas.
- Michele – Miguel a reconheceu.
- Você vai terminar tudo com o Conrado por telefone, vai dizer que tem outro e é pra ele não te procurar.
- Esse seu plano? – Miguel falou com desdenho. – É claro que ele não vai acreditar. Como você é patética.
- Seu infeliz – Michele se precipitou sobre Miguel e estalou um bofete no rosto dele. – Eu não sei que tipo de feitiço você lançou sobre o Demolidor, mas eu vou reverter isso.
- Calma garota – Pezão segurou o rosto de Miguel analisando a marca dos dedos de sua comparsa. – Olhando bem pra ele, sabe que não é difícil imaginar como o fodido do Conrado ficou viciado em comer ele. – Pezão deslizou sua mãe pela coxa de Miguel e indo em direção de sua bunda.
- Não toca em mim seu porco! – Miguel debateu suas pernas.
- Calminho, calminho – Pezão sacou um revólver calibre 40 e encostou na cabeça de Miguel. – Foi muito difícil fugir da cadeia. Não pense que dessa vez vai ser apenas um trote como antes. Eu só lamento não ter mais tempo, eu ia adorar meter em você, te mostrar o que é um macho de verdade. – Miguel choramingava, com a arma apontada em sua direção.
Pezão virou-se para Michele, e atirou o celular de Miguel para ela, dizendo:
- Liga logo pra ele, nosso tempo está esgotando.
- Meu Conrado – Michele apertou o celular, enquanto procurava na agenda o número.
O aparelho começou a chamar, então Pezão cortou o entusiasmo de Michele, tomando o celular.
- Eu quero falar com ele – Michele tentou recuperar o aparelho.
- De jeito nenhum – Pezão, pôs o aparelho no ouvido. – Não vou arriscar meus planos nas mãos de uma rejeitada.
- Miguel, onde você está meu amor, nós todos estamos preocupados – Conrado atendeu.
- Que lindinho – disse Pezão.
- Quem está falando? – Conrado ficou nervoso.
- Não reconhece mais a voz de seu irmãozinho de guerra?
- Pezão?!
- Sabia que não tinha me esquecido.
- O que você está fazendo com o celular do Miguel? Onde ele está?
- Calma Demolidor, vou deixar ele te dar um “oi”.
Pezão pisou com força no tornozelo de Miguel lhe arrancando um grito horrível
de dor.
- Miguel meu amor – Conrado sentiu um nó na garganta ouvindo o grito dele. – Eu vou te matar Pezão!!!
- Chega de conversa fiada – disse Pezão. – O negócio é o seguinte: eu estou te esperando naquela cabana abandonada na primeira estrada a direita perto do “Inferno”, você sabe onde fica, a gente já deu muita festinha aqui.
- Eu estou indo pra aí – disse Conrado.
- Só mais uma coisa Demolidor; nada de polícia na parada – disse Pezão. – Ou quem paga é o teu viadinho aqui, que, aliás, tem uma bunda deliciosa. Tá comendo bem, hein Demolidor? – Pezão riu.
- Seu desgraçado eu vou... – Pezão desligou o celular.
Imediatamente Conrado discou o número de Silvia e ligou para ela. A mãe de Miguel atendeu imediatamente.
- O encontrou? – ela perguntou.
- Silvia preciso que você mantenha a calma, é o seguinte...
***
Meia hora depois o carro de Conrado estacionava na frente da cabana. Michele saiu correndo em direção a ele, pronta para um abraço, mas Conrado a empurrou e entrou com muita pressa na cabana.
- Miguel?! – ela ia se aproximando do namorado, mas foi impedido.
- Nada disso – Pezão apontou a arma para cabeça de Miguel. – É melhor você ficar bem paradinho. Esvazie os bolsos!
Conrado hesitou.
- Esvazie os bolsos ou eu estouro os miolos dele – Pezão seguro no gatilho.
Conrado enfiou as mãos nos bolsos e retirou um canivete.
- Tentando bancar um de esperto pra cima de mim, não é Demolidor? – Pezão riu. – Pega o canivete Michele.
Michele obedeceu.
- Eu te amo Conrado – ela sussurrou enquanto tirava o objeto dele.
- Pezão, vamos fazer um acordo. Eu pago o que for, e te ajudo a fugir.
- Acabou Conrado – Pezão declarou. – Não estou aqui para negociar, e sim para por o ponto final nessa história – ele puxou Miguel pelo cabelo, e o segurou de costas, colocando arma na cabeça dele.
- Conrado sai daqui! – Miguel gritou chorando.
- Cala boca! – Pezão puxou o cabelo dele para trás. – Eu preciso pensar em qual dos dois vou matar primeiro. Acho que vai ser você Demolidor, pois eu não suporto traíra.
Pezão apontou a arma para Conrado e segurou no gatilho.
- Não! – Michele gritou distraindo Pezão por alguns segundos.
Miguel mordeu a mão de Pezão.
- Desgraçado! – Pezão o empurrou no chão, e disparou na direção de Conrado.
Michele se jogou na frente e recebeu o tiro em cheio.
- Eu te amo Conrado – ela caiu no chão.
Todos ficaram em choque, mas logo foram despertados pela sirene da polícia.
- Você chamou a polícia seu desgraçado – Pezão vociferou. – Eu não vou voltar para aquele inferno – Pezão segurou Miguel novamente, que estava caído chão, e pôs a arma na sua cabeça.
- Tenta alguma gracinha e ele morre.
- Conrado!
- Miguel!
“Aqui é a polícia saiam com as mãos para cima.”
Os faróis iluminavam todo o lugar. Pezão saiu andando e trazendo Miguel de refém.
- Miguel! – Silvia gritou de longe.
Ele apenas olhou para ela, mas não respondeu.
- Eu mato ele se alguém se aproximar! – Pezão gritou. – Joga a chave do seu carro!
Conrado entregou.
Pezão e Miguel entraram no carro e partiram em disparada rumo ao asfalto.
Estavam Luciano, Júlia, Christiane e Silvia junto com a polícia. Uma perseguição começou. Vários carros seguiam o de Pezão e o de Miguel, em alta velocidade.
- Você vai nos matar seu louco! – Miguel gritava no carro.
- Não, só um de nós vai morrer hoje, e será... Ah!!! – um caminhão na contramão atingiu o carro dos dois, na curva do asfalto, arremessando o veículo ribanceira a baixo. Conrado que vinha no carro de seu pai, logo atrás, soltou um grito de pavor. Todos pararam, ouvindo o barulho do carro capotando ladeira a baixo. Conrado desceu e saiu correndo.
- Miguel! Miguel! – ele chorava muito. – Miguel!
Uma explosão ribombou, levantando uma enorme quantidade de chamas e fumaça negra.
- NÃO!!! – Conrado chegou perto da ribanceira vendo o seu caro incendiado – MIGUEL!!! – Conrado gritava com todas as suas forças. Ele tentou descer a ribanceira, mas Luciano chegou e o deteve pelo braço.
- Eu preciso salvá-lo pai, eu preciso – ele chorava desesperadamente.
- Conrado... – Luciano o mantinha preso.
- Ele está precisando de mim pai – Conrado tentou arrancar o seu braço da mão de Luciano, mas logo também foi segurado por um policial de meia-idade.
- Não há mais nada a fazer. – disse o agente balançando a cabeça em lamento. – A garota baleada também morreu.
- Meu filho! É o meu filho! Meu Miguel!!! – Silvia chegava ao local totalmente devastada pela cena de horror.
As grandes labaredas iluminavam todo o acostamento. O rosto de Conrado era uma máscara de sofrimento.
- Silvia, me diz que não é verdade, eu sei que ele não morreu – Conrado se lançou aos braços dela, desabando em um choro pesado e profundo.
Seu colar com a metade da asa pendia em seu peito suado. Ninguém era capaz de expressar sua dor em palavras. Christiane e Júlia, abraçadas, choravam desesperadamente ao lado de Luciano, que limpava suas lágrimas em cascatas. O choro e o barulho do fogo intenso eram as únicas coisas que quebravam o barulho daquele lugar escuro e frio.
Conrado caiu de joelhos se soltando de Silvia, e ficou apertando o colar contra peito, de olhos fechados. Aquela sensação da perda, onde a dor sufoca a respiração, e o fato de estar vivo, sem a pessoa querida, é comparável a sentir uma espada de dois gumes atravessando a divisão da alma, e por mais que você chore, grite, xingue, esmurre algo, não é suficiente para escapar da sensação. É quando percebemos quão frágil somos, e a angústia confirma nossa mortalidade, e fim inevitável.
- Con...Conra...Conrado – Conrado ouviu alguém chamando seu nome, em um gemido fraco.
Por um momento ele achou que estava apenas imaginando.
- Conrado – o gemido parecia ecoar de sua mente. – Conrado.
- Miguel? – ele atendeu quase como um sussurro.
- Conrado? – dessa vez foi mais nítido.
- Miguel!!! – ele gritou.
Todos olharam para ele achando que era apenas um lamento.
- Ele se foi meu filho – Luciano pousou sua mão no ombro do filho.
- Não! Ele está vivo – Conrado se levantou rapidamente e correu para a ribanceira.
- Conrado? – o chamado se tornava cada vez mais claro.
- O que você está fazendo Conrado? – Luciano tentou o impedir, acompanhado de todos que estavam ali, mas era tarde, Conrado já desci a ribanceira.
- Conrado? – o gemido agora suou engasgado, como se algo liquido estivesse acumulado na garganta.
O filho de Luciano olhava para todos os lados, sentindo o calor do fogo incomodar sua pele.
- Volte aqui Conrado! – Luciano ameaçava descer também.
- Ele está vivo! – Conrado gritou, escorregando para perto de uma moita.
Miguel estava todo ensanguentado, arremessado para bem antes de onde o carro
caiu.
- ELE ESTÁ VIVO – Conrado olhou para os outros.
- Vivo? – Silvia indagou. – Meu filho está vivo?
- Alguém me ajude! – Conrado clamou, enquanto repousava a cabeça de Miguel em seu braço. – Eu sabia que você não tinha me abandonado meu amor.
- Não vai se livrar assim tão fácil de mim. – Miguel forçou um sorriso.
Conrado beijou-lhe os lábios pálidos e sujos de terra. Logo Luciano e um policial desceram para junto de Conrado.
- Já chamamos o corpo de bombeiros. – disse o policial.
- Ele está vivo pai – Conrado explodia de felicidade.
- Sim filho, ele está – Luciano confirmou examinado Miguel. – Mas precisa urgentemente de cuidados.
- Ele está vivo!!! – Conrado se ergueu, olhando para Júlia, Christiane e Silvia, que acompanhavam tudo lá do alto.
Miguel perdeu os sentidos, mantendo um sorriso singelo no rosto. Ele e Conrado possuíam uma conexão tão forte que ia além da compreensão física, e foi essa ligação que o salvou.
Na mesma intensidade que sentimos a dor da perda, sentimos a felicidade de recuperarmos aquilo que mais amamos.
***
- Eu não acredito que a Michele morreu para me salvar – Conrado conversava com Christiane na sala de espera do hospital Jadão. Júlia e Silvia também falavam alguma coisa, um pouco mais afastadas dos outros dois.
O estado de Miguel era estável. Ele sofrera algumas fraturas e escoriações, mas nada tão grave. Por um milagre de Deus, da vida, do amor, ele foi cuspido para fora do carro, na primeira capotagem. E surpreendentemente, o caminhão que os atingiu, destruiu apenas o lado do motorista, assim, Pezão já estava destroçado antes mesmo do carro explodir. Seu corpo fora completamente destruído pelo fogo.
- No final das contas, ela mostrou que ainda existia algum sentimento bom em seu coração – Christiane falou. – Bem diferente do pastor, que ao saber que ele estava vivo, simplesmente desligou na cara da tia Silvia.
Conrado fez um gesto de indiferença, deixando claro que a posição do pastor não tinha nem um valor para ele.
- É incrível com as coisas mudam tão rápido e tão radicalmente. – Conrado levou um copo descartável com água até a boca.
- O ser humano é a maior de todas as contradições do mundo – filosofou Christiane. – Uma pessoa pode ser responsável pelas piores tragédias, e também ser a maior remediadora delas.
- Felizmente a segunda opção está viva, e sendo bem cuidada – Conrado sorriu para si. – Meu Miguel.
Luciano entrou na sala de espera, de jaleco. Todos se levantaram subitamente, e olharam com ansiedade.
- Ele vai dormir até amanhã – declarou o médico com o olhar um pouco vago. – Tomou uma medicação muito forte.
- Eu vou passar a noite aqui – disse Silvia.
- Eu também – manifestou-se Conrado.
- Filho, você está muito cansado, eu recomendaria que fosse para casa, Silvia já vai ficar aqui.
- Concordo com seu pai Miguel. – Christiane disse.
- Mas se ele acordar e precisar de mim. – Conrado argumentou.
- Como eu disse, ele vai dormir até amanhã.
- Mas pai...
- Se por um acaso improvável, ele vier a despertar e pedir para vê-lo, eu prometo que trago você. – Luciano garantiu.
- Tudo bem – Conrado aceitou.
- Pegue as chaves do meu carro – ele entregou para o filho, lhe dando um abraço de consolação. – Dirige com cuidado e descansa bem, ok?
Conrado lhe deu um sorriso.
- Acho que vou pegar uma carona com você, Conrado – disse Christiane.
- Vamos lá Chris.
Os dois se despediram de todos e foram embora.
Júlia ficou encarando Luciano, como se sentisse que ele escondia algo. Depois que Silvia saiu para fazer uma refeição, a madrasta de Conrado aproveitou e chamou o marido para irem até o seu consultório falarem a sós.
- Algum problema Júlia? – ele perguntou assim que fechou a porta do consultório.
- Essa pergunta deveria ser minha, não? – Júlia devolveu.
- Não entendi – Luciano desviou o olhar, fugindo dos olhos interpelativos de sua esposa.
- O que você não contou para eles?
Luciano ficou em silêncio, como se não conseguisse escolher as palavras certas para falar.
- Doutor Luciano, qual o diagnóstico do paciente Miguel Fernandes Oliveira?
- Evidentemente, pedi uma bateria de exames para averiguar qualquer lesão interna, especificamente um traumatismo craniano, pois Miguel bateu muito forte com a cabeça.
- E?
- A noite está sendo muito difícil Júlia, por isso peço que você não diga nada por enquanto.
- Claro – Júlia se sentou.
- O Miguel há muito tempo apresentava sintomas suspeitos – começou Luciano. – Eu confesso que cheguei a acreditar que fosse apenas algum tipo de convalescência simples, em vista do momento difícil pelo qual ele está passando ao lado do pai.
- Sim.
- Mas as coisas são muito piores do que nós imaginávamos Júlia – Luciano pôs a mão na garganta a sentindo seca.
- É tão grave assim – Júlia sentiu um amargo na boca.
Luciano retirou de um envelope o resultado de uma tomografia, e entregou para a esposa. Júlia estudou o exame por alguns minutos, até que soltou um suspiro de lamento.
- Há uma dilatação no encéfalo!
- Sim.
- É o que estou pensando que é?
- Amanhã eu providenciarei exames mais detalhados, e...
- É o que estou pensando? – Júlia alterou um pouco o tom de voz.
- Sim, Júlia. – Luciano levou a mão ao rosto não segurando as lágrimas. Ali ele havia se despido de sua roupagem médica, restando apenas um pai desesperado. – Como vou dizer isso para ele? Como vou dizer isso para o Conrado?
- Quantas vezes você deu uma notícia dessas para um paciente?
- Muitas – ele respondeu. – Mas em nenhuma delas...
- Foi para o amor de seu filho.
- Sabe o que isso significa não sabe? – Luciano baixou a cabeça.
- Meu bem... – Júlia tentava atenuar.
- Parece que a vida quer brincar com nossas emoções de forma cruel. – Luciano desabafou. – O passado parece ter se reencarnado e batido mais uma vez na minha porta. Não sei se vou suportar tudo isso de novo Júlia. Conrado não vai aguentar passar por esse pesadelo mais uma vez. Eu não sei o que fazer. Conrado está tão feliz, e serei eu a mais uma vez cravar-lhe uma lança no peito. – Luciano começou a chorar.
- Eu não posso dizer que você vai conseguir – Júlia acariciava seus cabelos, enquanto ele repousava no colo da esposa –, mas posso garantir que não estarão sozinhos nessa batalha. Mesmo que o resultado final seja o pior, estaremos juntos, e juntos permaneceremos até o fim.
- Eu te amo tanto – Luciano a beijou, sentindo o gosto salgado de suas lágrimas.
Os dois ficaram abraçados, despencando sobre o outro, suas angústias, medos e vulnerabilidade.