“Se me chamar eu vou, ao som que furta cor, que furta coração, que leva emoção, eu vou, eu vou...” (Se me chamar eu vou, Chiclete com Banana).
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O tabuleiro repousava na mesa, com as peças devidamente organizadas. As pistas estavam todas ali e, até então, seguia as regras à risca. Na toca do mais estranho e desconhecido inimigo, fui atrás de argumentos plausíveis, e eles estavam longe de ser o que esperava.
Aquele jovem inocente (ainda que duvidasse) poderia alardear que “o jogo virou, não é mesmo?”, e eu poderia calmamente lembrar que “não se pode vencer todas”, mas a situação ia além. Éramos dois homens se encarando numa sala, prestes a se colocarem numa batalha de provações e enfrentarem a verdade exposta. Encarnei o detetive e abri o envelope do enigma.
As respostas poderiam ser cruéis, e dificilmente favoreceriam os dois lados. Cabem aos jogadores aceitarem suas proezas e vislumbrar o resultado do mistério com sutil admiração.
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Coronel Mostarda:
Instantes antes da elucidação:
- Você... Como?
Uma guerra de informações contraditórias se iniciou na minha mente. Não conseguia entender, nem encaixar os itens do intricado quebra-cabeça.
- Foi no ano passado, durante uma festa para os calouros – mantinha a distância na varanda, ainda analisando cada reação minha – Eu era um deles. Desisti de um curso de administração logo no início e resolvi apostar tudo de novo, por um interesse pela arquitetura.
- Ele... Te estuprou? – precisava escutar uma confirmação às imagens capturadas.
- Posso deixar o vídeo rodando até o fim, se quiser comprovar – seguia com os braços cruzados.
- Não faça isso... – realmente, não teria estômago.
Se aquilo era uma artimanha, teria que fazer uma rápida reflexão. Ou os seus pretextos eram altamente elaborados e ensaiados, ou iria entrar em contradição em algum momento:
- O que aconteceu? – mantinha a desconfiança.
- Havia uma atração, não sei explicar direito. Não era nada explícito, rolava uma admiração velada. Quando veio conversar comigo nesse dia, mal pude acreditar... É bem clichê, mas para mim era como um conto de fadas acontecendo: o popular se insinuando para o excluído. Qualquer pessoa agarraria essa chance.
Além de desvendar, seu lamento parecia querer encontrar uma justificativa razoável para também se convencer da vantajosa armadilha que acabara preso.
- Tudo naquele papo parecia encantador. Talvez não tenha percebido a manha galanteadora ou ele tem mesmo o dom da conquista. O cenário era novo e não queria transparecer a inexperiência. Fui eu quem alardeou a necessidade de uma bebida para me soltar mais.
Minha incredulidade mesclava-se ao semblante intrigado sobre os pormenores daquela história.
- É claro que quando tudo se concretizou, meu teor alcoólico alcançava níveis alarmantes. Não sei se a minha caipirinha estava batizada ou se já faziam esse procedimento na época. Independente disso, não tinha clareza dos fatos. Deduzi o que rolou, obviamente, mas sem a gama de detalhes.
- Você foi o primeiro?
- Provavelmente, não tenho certeza.
“Um segredo a menos, aparentemente...”, tentava me organizar calado. Alexandre atuava com Cláudio, iniciando a carreira fora da lei com Adriano. O problema é que cada refutação levava a outra trama ainda sem lógica:
- Porque ainda continuou amigo de um ser humano tão imbecil?
- Eu não continuei. Simplesmente fingimos desconhecer o ocorrido. Falávamo-nos pouco, era melhor para ambos. Posteriormente, quando resolvi agir, foi a única forma que encontrei de arriscar uma aproximação.
- Como assim?
- Augusto... – vacilou – Demorei um tempo para entender que algo muito errado aconteceu comigo, e possivelmente seja um pouco complicado explicar isso agora – se avizinhava vagarosamente – A questão é que quando alcancei esse discernimento, percebi que as ações persistiam, e em grupo.
“Explicar o que?”, não tinha capacidade de acompanhar a sua cronologia, devido às interrogações se propagando na minha cabeça.
- Como soube disso? – buscava me concentrar e aproveitar cada brecha por um possível rastro.
- Sobre a dinâmica? Pesquei alguns boatos e burburinhos que rolavam na faculdade...
“Balela”, não engoli a justificativa.
- Você tem ciência de que esses atos são criminosos, certo? Quer dizer, isso que está gravado – fugiu do tema para focar no pen drive.
- Quer mesmo falar sobre crime? Depois de tudo que passou ainda se juntou a eles. Existe paradoxo maior?
- Não me juntei. Talvez a questão aqui seja o que você quer realmente enxergar...
- Enxergo o que a realidade me mostra – cortei a ousadia.
- Então creio que goste de viver com a parcialidade dos acontecimentos.
- Mas... Que merda é essa? – irritei-me – Por favor, sem rodeios. Aonde quer chegar?
- Nunca se perguntou o que realmente sucedeu naquele dia?
- Sim, a cada maldito segundo. Sempre procuro refletir sobre a minha estupidez ao cair na lábia dos seus colegas.
- Não me refiro a esse aspecto. Acho que não estou sendo muito explícito – coçou a testa momentaneamente – Nunca se passou pela sua cabeça o motivo do meu sumiço?
“Ou seja, foi calculado, é isso?”, perguntei em silêncio. Algo me dizia que muitos podres seriam desenterrados naquela reunião, mas estava determinado a mergulhar em cada minúcia sobre a origem daquele imbróglio.
...
Com a chave inglesa:
Encarei sua mirada, interrogativo:
- Vou te dar uma chance de tentar me convencer sobre a sua inocência. Espero que seja criativo, pelo menos.
Já instalado na sala, sentado à mesa de jantar, ele prosseguiu:
- Procurei me manter apartado a maior parte do tempo, por isso estava atrás do trio elétrico. Não buscava nenhum tipo de diversão ou coisa similar. Demorei a acreditar que estávamos trocando olhares e mais ainda quando veio falar comigo. Digamos que no meu mundo a probabilidade de isso acontecer é bastante remota. Mas você veio e, desculpe a sinceridade, foi incrível.
A sua boca ensaiou um meio sorriso tímido que me tele transportou àquela quinta-feira promissora de carnaval, quando o seu jeito desengonçado de dançar enchia-me os olhos e fazia-me fantasiar mil possibilidades de aventuras com o garoto atraente. Senti um ar de nostalgia.
- Independente das suas intenções, que não cabe debater aqui, a companhia estava agradável e divertida. Achava que a noite poderia ser interessante, até eles aparecerem.
O tom da voz perseverava bastante sisudo, procurando elucidar ponto por ponto:
- Não esperava algo tão súbito e me vi obrigado a criar uma farsa, por isso o apresentei como um amigo. À medida que procuravam inseri-lo na prosa, comecei a ficar preocupado sobre o que viria a seguir. Nunca tinha presenciado o time em ação, e não tinha noção de como interceptavam os indivíduos. A única solução que encontrei foi tentar me desvencilhar do bando novamente. Foi quando te disse...
- Que ia ao banheiro... – completei, repassando a cena mentalmente.
- Isso – parecia contente com a minha memória – Fiquei esperando uma atitude, tentei colocar de um jeito mais sério, rezei para que me seguisse e saíssemos juntos... Mas foi em vão. Não podia deixar claro o desespero, e para piorar, Júlio e César resolveram me acompanhar.
Um telão no meu cérebro trabalhava sem parar, evidenciando cada flash de Adriano alheio às opiniões dos colegas, visivelmente desconfortável, sem que eu pudesse identificar o problema. É incrível como o destino pode mudar a sua vida em uma fração de segundo. Estava prestes a beijar um pretendente, aproveitando o embalo romântico da música e num simples instante, tudo mudou. Apertei os olhos, pesaroso.
- No caminho, ficaram insinuando o que já temia: me parabenizaram pela primeira presa da farra, que tinha feito uma boa aquisição e poderia ser recompensado mais tarde. Enfim, frases que só ampliavam o meu pânico. Decidi ir realmente ao sanitário do carro de apoio para forçar uma separação, enquanto compravam a bebida. Foi quando bati o martelo sobre fazer o inconcebível para alerta-lo. Mas quando voltei...
- A gente não estava mais lá – aéreo, relembrei a ideia de Alexandre de ir para a parte da frente do cortejo. Era uma maneira mais fácil de sugerir uma saída, dada a aglomeração do público – O César me ofereceu uma cerveja e Júlio avisou que você estava caçando e flertando com outros caras. Esperei o que pude, mas concluí que tivesse desistido.
Sua expressão revelava que aquela informação também era nova para ele:
- Eu não fiquei com ninguém, e isso infelizmente não posso comprovar. Sou um cara muito introspectivo...
- Continue o seu esclarecimento – cessei a biografia, impaciente.
- Tudo bem... – acatou o pedido – Rodei por toda aquela área, procurei os dois ao redor dos ambulantes, tentei vistoriar outros espaços, e nada. Fiquei assustado ao notar o tempo que já tinha perdido e resolvi tardiamente voltar ao apartamento.
- Deixe-me adivinhar: não teve coragem de paralisar o ato? – ironizei.
- Não reconheci a rua e me perdi duas vezes. Saímos todos juntos e confesso que não prestei atenção. Quando cheguei, já era tarde demais...
Enterrei a face em minhas mãos, procurando me esconder. Era um álibi e tanto, crível até, mas não tinha certeza se estava disposto a aceitar.
- Antes de subir, o zelador avisou que eles tinham saído há alguns minutos, ajudando o “visitante” que estava passando mal. Perguntei a direção e me apressei em tentar localiza-los. Alcancei mais uma vez a multidão e percebi que o bloco já tinha partido. De novo, refiz o mesmo trajeto entre o circuito e o edifício e finalmente te encontrei, duas quadras depois.
Levantei a cabeça, intrigado com aquela parte misteriosa:
- Onde? – arqueei a sobrancelha.
- Você estava encostado em um poste, agasalhado por diversos sacos de lixo e latas de cerveja. Alguns foliões faziam chacota do seu estado. Analisei se estava bem, mas sua fala soava um pouco embolada. Perguntei onde morava e escutei apenas “perto”– fez as aspas com as mãos.
Era impossível recordar desse momento. Tratava-se de uma etapa completamente obscura na minha mente. Ainda assim, aquela frase ilustrava perfeitamente um sentido para o estado e o cheiro da minha roupa na manhã posterior.
- Insisti diversas vezes, batendo no seu rosto para que não dormisse, até você balbuciar o nome do prédio onde morava. Pesquisei no celular se o endereço era real, e perguntei a alguns porteiros nas cercanias se ficava muito longe. Deixa-lo em segurança passou a ser um compromisso.
“Qual a probabilidade de encontrar alguém bêbado, desacordado numa calçada qualquer, em pleno carnaval?”, queria depositar alguma credibilidade naquela interpretação, mas mantinha-me cético. Adriano avançou:
- Com muito esforço, passei um braço em volta do meu ombro, e tentei prestar socorro. Algumas pessoas no caminho tentavam ajudar, mesmo que fosse só para pedir passagem. Você ainda andava trepidante, mas não respondia mais nada. Demorei uns vinte minutos para encontrar o lugar, e não foi nada fácil. Às vezes sentia o dorso dormente, ou esbarrávamos em pedestres desavisados, mas sobrevivi. O resto deve ser de seu conhecimento... – suspirou.
“Augusto, você tem noção do estado que te encontrei ontem? Na entrada do apartamento! Apagado, sujo, largado no chão...”, a bronca de Marcela durante a ressaca se formou com exatidão perante o meu olhar perdido.
“O seu amigo lhe trouxe. Você não estava se sentindo bem...”, misturando-se com a fala do Senhor Moreira, quando decidi investigar a câmera de segurança antes de retornar a São Paulo.
- Eu... – ele parecia arrasado – Eu sinto muito por tudo...
- Porque não chamou a polícia? Bradou aos quatro ventos o que eles poderiam fazer? Fincou o pé para que não saíssemos de lá? Você poderia ter feito muito mais! – insistia em algo que pudesse manter o crédito da culpa.
- Qualquer conduta drástica me colocaria em perigo também. Todos sabem onde moro e estudo. São quase parte do meu cotidiano. Queria ter agido mais rápido, mas não consegui – ficou cabisbaixo.
Uma breve quietude se fez. Não havia evidências reais, é verdade. A sua ausência fugaz e posterior auxílio para me deixar em casa foram explanados. Invenção ou não, a crença só era cabível a mim, por enquanto.
- O que mais aconteceu? – não tinha tempo para me compadecer com a triste narrativa. Precisava de mais respostas.
- Como assim?
- Sua bela versão só engloba o primeiro dia. E os outros?
Ele pareceu surpreso pelo desejo de dar continuidade ao tema, mas prosseguiu:
- Na sexta-feira, o assunto foi esse. Sem muitos detalhes do ato em si, disseram que não puderam me esperar, mas que agora eu já sabia como funcionava: malícia, álcool adulterado e sexo. Sempre que surgisse um potencial alvo, todos se encontravam no apartamento, era a regra número um. Passaram a me tratar como um integrante que atendia bem aos desejos da equipe e se fizesse bem o dever de casa, poderia participar na próxima. Aquela situação me deixou muito assombrado.
- Quantas vítimas ao todo?
- Em Salvador, só você. Não sabia se o melhor a fazer era ficar de vigia ou acompanha-los e tentar evitar novos encontros. Avaliei advertir a administração ou o síndico, mas teria que me incluir na acusação.
- Em sete dias, com tantas oportunidades, só descolaram um trouxa? – interrompi nervoso.
A sua postura parecia incomodada com as minhas sequências irônicas:
- Sim, em parte graças a mim – mantinha a seriedade – Naquela mesma manhã, quando saíram para almoçar, sabia que precisava fazer mais. Pelo menos mais do que a minha coragem permitia. Sem que notassem, abri e vasculhei todas as bagagens. Não sabia ao certo o que procurava, mas imaginei que não deveria ser tão complicado encontrar soníferos ou substâncias do tipo. Encontrei alguns frascos e esvaziei, colocando água no lugar. Concluí que era aquilo que colocavam na bebida. Por sorte minha, ou incompetência deles, os dias seguintes se resumiram a beijos isolados e tentativas fracassadas.
- Mas na terça-feira vi a mesma armadilha sendo refeita – relembrei a circunstância de Eduardo.
“Pronto, agora não tem desculpa...”, queria fechar o cerco.
- Eu sei – disse com tranquilidade, deixando-me de orelha em pé – Não tinha certeza se o rapaz estava muito interessado ou se havia algum estoque da droga escondido que passou despercebido. Acho que se safou a tempo e percebeu no que tinha se metido, porque depois escutei o César reclamando que “tinha sido por pouco”.
- Porque não foi ajuda-lo?
- Pensei que só estivesse querendo algo casual. Tinha total firmeza de que todas as mochilas foram analisadas e ele não poderia ser dopado... Estava enganado.
A entonação cheia de culpa naquela frase voltara a ter um grande peso.
- Como sabe o que eu vi?
- Percebi que Alexandre se afastou com ele, sem deduzir o perigo. Só quando Cláudio veio me avisar para esperar um tempo e seguir para a “festinha”, entendi que um novo golpe estava em curso. Não erraria dessa vez. Chegaria à rua, pediria auxílio policial e daria fim ao pesadelo.
- E não fez isso por que... – gesticulei com as mãos para que adiantasse logo, querendo entender o desenrolar daquela etapa.
- Porque assim que dobrei a última esquina, notei a sua presença atrás de uma árvore, observando tudo – foi categórico – Também vi que aguardou todos se deslocarem, ofereceu ajuda e o levou para a sua casa. Foi quando percebi que fui longe demais. O meu envolvimento poderia se voltar contra mim.
- Como assim?
- Sei lá, achei que já soubesse de tudo e que iria tomar providências. Pensei que poderia me meter numa grande enrascada.
“Você não está de todo errado...”, ponderei.
- Naquele mesmo dia, cismei em dormir fora, inclusive. Separei todas as minhas coisas e fiquei um tempo no playground prevendo que as autoridades poderiam chegar a qualquer momento, mas nada se verificou. Criei uma paranoia interna e encerrei todas as minhas redes sociais e grupos de aplicativos. Viajei com um propósito muito claro, e tudo tinha ido por água abaixo. Queria sumir e manter distância...
“Ele é mais reservado. Tem mais intimidade com Alexandre e não é muito ligado nessas coisas virtuais...”, lembrei a réplica de César ao questionamento sobre a ausência de Adriano nas conversas. De fato, havia um motivo para não encontra-lo na minha investigação.
- Sabe... – levantei-me inquieto – Todas essas lacunas são muito bem preenchidas, mas algo não faz o menor sentido. O que anda fazendo com quatro estupradores, garoto?
Após uma longa respiração, entregou a sua estratégia:
- Foi a única forma que encontrei para acusa-los. O carnaval era a minha chance de ouro para dar um fim ao esquema, mas fui ingênuo e deu tudo errado. Há muito tempo espero uma brecha para reunir provas, e ela apareceu – apontou para a televisão – Finalmente vou denuncia-los.
“Sei que não terei sossego até terminar o que comecei”, “Entendi o seu desejo de fazer valer uma definição utópica de justiça”, “Sua emoção imprevisível vai te corroer, e não sei se estou preparado para vislumbrar o que vai sobrar no final”... Sem pedir licença, toda a discussão com Gustavo sobre os meus atos voltou à tona.
“Ele... ele está se vingando?”, o choque após a demorada percepção era nítido na minha feição.
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No salão de jogos:
Voltei a sentar, ainda pasmo.
- Preciso beber um copo d’água – Adriano atravessou a sala e se dirigiu à cozinha – Aceita algo?
“Um litro de uísque”, cogitei:
- Sim, uma água também – agradeci a oferta.
Não sabia se era acalentador ou aterrorizante a descoberta de alguém com os mesmos propósitos. Antes que pudesse dar um voto de confiança, repassava rapidamente minha lista de dúvidas, enquanto o inquirido retornava com uma taça na mão.
- Como obteve esse material?
- Quando retornamos para São Paulo, passei um tempo incógnito. Procurei não expandir algumas conversas e até cogitei trancar mais um semestre na universidade, como fiz depois do que ocorreu comigo. Não tinha ciência do que era confabulado no grupo, ou o que estavam aprontando. Mas algo me fez mudar de ideia...
- O que?
Ele parou por um curto segundo, estudando o que deveria fazer:
- Espera um pouco.
Adriano repousou o copo na mesa e se retirou temporariamente, seguindo para o corredor. Prendi a respiração, aflito. Alguns minutos depois, ressurgiu com uma revista em mãos:
- Isso – me entregou o objeto.
Era uma publicação sobre negócios, de circulação nacional. A capa enaltecia “as novas caras do empreendedorismo no Brasil”, e a gravura reunia alguns jovens empresários em um estúdio. Eu e Juliana fazíamos parte do elenco. Aquilo era totalmente surpreendente.
- Um colega de sala me emprestou. O sonho dele é abrir um escritório de arquitetura, mas isso não vem ao caso. A princípio não me liguei, mas na reportagem tem uma foto sua com um depoimento sobre o seu trabalho.
- “Inovação, persistência, originalidade e ousadia: A receita para o sucesso”.
Alcancei a matéria e vi o destaque sobre o nosso produto. Sinceramente, sequer lembrava com exatidão daquela entrevista.
- Não imaginava que fosse uma figura importante. Vi a oportunidade de adquirir alguma ajuda se soubesse de toda a teia por trás daquela noite. O Imagine também era uma maneira ideal de me comunicar, sem me expor. Pesquisei outras notícias e li que sempre faz questão de manter contato com seguidores e utilizadores do programa. Desperdiçar um diálogo favorável seria burrice.
“Puta merda”, me lamuriei ao prospectar o resultado do embate virtual, caso tivesse se estendido como era anteriormente pretendido.
- Você é o autor do jogo, deve receber trilhões de mensagens diariamente, mas não custava nada tentar. Enquanto a sorte não soprava a meu favor, retomei a interlocução com Alexandre, torcendo por uma luz no fim do túnel. Demorou um pouco, mas acabei visualizando o cenário perfeito: fui convidado para uma “reunião” na sua casa.
- Que tipo de reunião?
- Disse que tinha contratado um garoto de programa e queria chamar os mais chegados para participar da brincadeira. Queria aproveitar uma viagem que a namorada estaria fazendo e a ausência do pai na ocasião.
“Paguei uma pessoa pra fazer uma sacanagem lá em casa. Até o Adriano vai!”, recordei o convite escrito no celular de Júlio, quando confisquei o aparelho e salvei todo o backup no laptop.
- Perguntei como funcionava o arranjo – insistiu – E ele avisou que bastava comparecer. Ponderei momentaneamente e aceitei desde que fosse como espectador, e não participante efetivo. Escutei algumas piadinhas por isso, mas não obtive recusa.
- Todos foram? – questionei.
- Cláudio sim. César tinha confirmado e não apareceu na hora, ninguém sabia a causa. Outros dois homens estavam presentes, mas desconhecia a identidade de ambos.
Pelo visto, a primeira captura da minha retaliação levou a sério as minhas ordens:
- Onde ele mora? – apressei-me em obter aquela informação.
- Um condomínio no Jardim Europa.
- O que procurava exatamente? Como sabia dos vídeos? – o papo ganhou ares de interrogatório.
-Não sabia, mas precisava arriscar. Inicialmente, estava decidido a filmar e usar como moeda de troca. Quando cheguei, assim que se reuniram na sala, Alexandre pediu que todos desligassem o celular e deixassem em um aparador, próximo à saída. Foi um balde de água fria. Não tive escolha: repeti o gesto dos demais e trilhamos para o quarto de hóspedes.
Aquele comportamento, sempre com uma resposta na ponta da língua, era algo intimidante. Resolvi deixa-lo terminar o raciocínio.
- No fim das contas, não obrigaram o cara a nada, foi um grande bacanal. Permaneci o tempo todo sentado e vestido, assistindo uma extensa cena de sexo grupal ao vivo. Em dado momento, perguntei onde era o banheiro, mas os gemidos acalorados demonstravam a total falta de interesse na minha pessoa.
Não escondi uma risada ao escutar a ridícula conjuntura. Ele desdenhou e perdurou:
- Saí sem ser percebido e encontrei um lavabo. Era a minha deixa para ir embora. Meus recursos se esgotaram e me decepcionei com o rumo do plano. Decidi tentar pelo menos me despedir, mas tive um vislumbre do extenso corredor cheio de portas. Não havia o que estudar, segui a minha intuição.
Algo em sua fala funcionava como um espelho para mim. No seu lugar, atuaria da mesma forma, provavelmente. “Ok, você assistiria um pouco mais da orgia”, me reprimi pelo pensamento.
- Quando encontrei o dormitório desejado, meu coração parecia querer sair pela boca. Abria cômodas, caixas e a todo instante voltava correndo, para me certificar que os gemidos continuavam. Minha cartada final era o computador em cima da escrivaninha. Não parava de tremer, sabendo que poderia ser pego no flagra. Analisei pasta por pasta, até encontrar uma em particular, meio escondida. Alguns diretórios depois, lá estavam os arquivos com as datas e locais.
- E por ironia do destino, um pen drive surgiu abruptamente no bolso... – o termômetro do sarcasmo voltava a subir.
- Roubei um dele. Não tinha tempo para discernimentos, ou análise dos próximos passos. Remexi uma gaveta do lado e encontrei. Imaginava que tivesse alguma relação com as vítimas ou com o planejamento de cada emboscada. Assim que a transferência terminou, olhei rapidamente em busca de algum vestígio da minha visita e escondi o utensílio.
Novamente, não consegui tolerar aquela trama cada vez mais novelesca. Por outro lado, dificilmente alguém acreditaria se eu contasse toda a minha saga vingativa.
- Quando retornei, todos já tagarelavam animadamente na cama. Adverti que não me sentia bem, e que precisava ir embora. Queria dar o fora dali o mais rápido possível. Tem quase vinte dias desde o ocorrido.
- E aí? Porque não agiu? Estava esperando a minha aprovação?
- Sinceramente, algumas coisas estranhas aconteceram desde então. O Júlio foi preso numa grande operação da polícia e fiquei assustado com o que havia por trás do episódio. Sei que entrar numa delegacia e deixar o apetrecho é insuficiente, não pode ser tão fácil assim. Idealizei que se respondesse, talvez me desse uma luz sobre o assunto.
- Por isso decidiu entrar de penetra na festa da firma.
- Espero que porventura acredite, mas aquilo foi realmente uma coincidência. O Gustavo faz parte do círculo de amizade de alguns colegas que estão com matérias atrasadas no semestre. Ele é gente boa, já papeamos em algumas ocasiões no pátio da USP. Estávamos marcando alguma programação para o feriado e fomos convidados para uma comemoração na empresa da irmã. Não tinha porque negar. Nem quando o seu discurso começou me dei conta de onde estava. Só matei a charada quando vi a arte sobre o aplicativo e um vislumbre furioso da sua aparência.
- O que disse a ele?
- Nada. Não tenho intimidade suficiente. Além disso, não pretendo abrir essa história para ninguém. As coisas naquele evento foram meio bizarras, mas depois de tudo, fiquei feliz que tenha te encontrado.
- Do que esta falando?
- Queria esclarecer tudo o quanto antes, porque realmente acho que podemos procurar um advogado e fazer uma denúncia – havia certa esperança no seu olhar.
“Você não faz ideia do andamento das coisas, garoto...”, considerei contar parte dos acontecimentos sob outro ponto de vista, mas não tinha porque confiar nele. Também não abriria mão de assistir à queda de cada membro da Liga do Mal só para criar um processo que poderia se estender por anos nos tribunais. Não havia provas sobre as drogas, nem sobre o paradeiro dos outros envolvidos. Era complicado.
- Sei que é difícil digerir tudo o que disse – cortou o silêncio – Mas não teria motivos para mentir.
- Olha... – levantei sem um argumento formado – As lacunas foram preenchidas e o seu relato é um tanto fantasioso, apesar de palpável, mas não sei o que te falar agora. Preciso pensar.
- Entendo – balbuciou, desanimado.
- Esconda bem esses vídeos, e não conte para ninguém sobre a nossa reunião, por favor.
- Só você sabe que tenho a posse deles. Entreguei uma cópia porque acho que era meu dever.
- Fez bem – admiti, sem encarar o seu rosto – Eu... Acho melhor ir embora.
Adriano aproximou-se, agora sem medo de alguma reação calorosa da minha parte.
- De todo modo, obrigado por ter vindo me escutar. Significa muito para mim.
Não consegui contestar. Assenti, sem graça. Caminhei ligeiramente para o hall de entrada e solicitei o elevador. A porta conservou-se aberta e ele permanecia estático. As peças, afinal, permaneciam intactas no tabuleiro. A estratégia, contudo, precisava de uma guinada sem precedentes.
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Não houve briga, sopapos ou agressão verbal. A ira se dissipou, mas permanecia atordoado. Andava calmamente pelo playground, em direção à rua. Já se passava de uma da manhã e não tinha me dado conta da velocidade do relógio. Aquela conversa me levou a uma turbulência de sensações. Vários chacoalhões, um após o outro, revelando pontos do enredo que seria incapaz de descobrir sozinho.
Saudei o porteiro e atravessei a via. Tive curiosidade de olhar para cima e constatar se ele me vigiava da janela, mas não o fiz. Mantinha o passo firme e acelerado, uma vez que o carro estava mais afastado. Quando dobrei a esquina, já tirando as chaves do bolso, senti um braço puxar o meu pescoço, tentando me sufocar.
Apavorado com o golpe repentino, tentei me desvencilhar, sem sucesso. Era impossível puxar o ar, minha garganta estava comprimida. Com esforço, desferi uma cotovelada forte no estômago do agressor, no intuito de ao menos me virar. Quando o fiz, recebi um soco na cara. Logo depois, fui empurrado para um muro e tive o meu corpo imobilizado.
- Achou que nunca descobriria sua identidade, filho da puta?
Tentando recobrar os sentidos, espreitei os olhos com dificuldade, arregalando-os em seguida:
“César?”, a imagem turva se completava à minha frente.
(continua)
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Oi pessoal! Peço desculpa pela demora do capítulo, mas eu realmente precisava amarrar muitas pontas soltas, e não podia perder a concentração. Nara M, adoro os seus comentários! Fico feliz que também acompanhe pelo Wattpad! Sobre Adriano, tenho uma confissão a fazer, mas só posso te falar lááá no último capítulo (rs). Dá um chega pra lá nos perrengues e vamos à luta! Eu e o ruivo agradecemos a torcida! Drica Telles (VCMEDS), ah não, você que é (#timido)! CrisBR1, eu particularmente não acredito em ninguém santo demais ou exageradamente ruim. Somos fruto da nossa personalidade, educação e vivência. Ah, e obrigado pelos elogios, :)! Rodrigo Paiva, te adianto que algumas surpresas ainda estão por vir. Fico feliz que esteja curtindo tanto! Ancient Jimmy, gargalhei sem parar com o seu comentário. Não, não sumirei, prometo! Mais uma vez, agradeço a todos pelos comentários e votos. Até o próximo capítulo! Abração!
