Amor de Carnaval não Vinga (19)

Um conto erótico de Peu_Lu
Categoria: Homossexual
Contém 4702 palavras
Data: 03/02/2016 00:31:42
Última revisão: 04/02/2016 14:07:14

“Eu vou arrasar, me decidi, vou me jogar por essa vida; Quero te ganhar, te possuir, te namorar vida bandida...” (Quebra Aê, Asa de Águia).

>>>

Fechei a porta do apartamento e encostei a testa na madeira. O feriado mal tinha começado, mas a cereja do bolo já tinha sido colocada. Suspirei pesaroso. Um maremoto de sensações ruins chocava-se na minha cabeça. Só conseguia pensar em me enterrar na cama e permanecer lá semanas a fio.

- Guto, é você?

O grito da minha visita, vindo do andar superior, lembrou-me de descartar qualquer possibilidade de isolamento:

- Oi prima, o que houve?

-Onde encontro uma toalha? Fala rápido antes que eu molhe o piso todo! – parecia afobada.

- No armário do lado da pia, embaixo! – esbravejei de volta, escutando a fechadura trancada como resposta.

Meu celular tocou. Era a quinta tentativa de comunicação do novo casal. Desliguei o aparelho, impaciente. Deixei o almoço em cima do balcão, e comecei a arrumar os pratos na mesa. Tentava planejar alguma programação para o dia, mas aquela maldita discussão insistia em bloquear os meus pensamentos.

- “Augusto? O que aconteceu?”, a voz do meu funcionário tentava sobressair-se perante o rosto pálido.

- “Calma, vamos conversar. Flávio, vista alguma roupa...”, Gustavo implorava.

Tal qual naquele momento, permaneci estático sem saber como reagir:

- Conversar é o caralho! – pensei alto, lamentando não ter dado essa resposta.

- Falando sozinho? – minha convidada deu o ar da graça, enxugando os cabelos e exalando um perfume suave de sabonete.

- Não, apenas divagando – era verdade – Achei que tinha se perdido no banheiro...

- Estava resgatando a minha beleza. Nem eu acreditei quando me vi no espelho.

Mal prestava atenção no seu senso de humor. Peguei os copos e pedi que ela levasse o refrigerante à mesa.

- E você – continuou – Tá com essa cara de derrota por causa da ressaca ou está escondendo alguma coisa?

“Isso, esfrega na minha cara, melhora meu ânimo...”, revirei os olhos, sem ser percebido:

- Fome! Vem, vamos comer logo – sentei-me, já me servindo de um rolinho primavera.

- Sei... – desdenhou – Por acaso tem alguma coisa a ver com o que me disse?

- Do que você tá falando?

- Sobre o Gustavo.

Engasguei com a comida, arregalando os olhos.

- Eu bebo, mas não esqueço – ela gargalhou.

- O que foi que eu te contei, Marcela? – fiquei preocupado em diagnosticar até aonde teria ido a minha revelação.

- Bom, pra começar, que ele é gay. Obviamente fiquei arrasada, mas ok – desandou a falar – Depois, que estava afim de você, o que é uma pena, porque o nosso Don Juan não quer saber de relacionamentos.

Repousei a cabeça no encosto da cadeira e fechei os olhos. “Me leva Deus! Acaba com esse martírio...”.

- Aí você falou que também ficou apaixonadinho e eu dei um grito, que provavelmente acordou os vizinhos. Convenhamos, isso sim é um mega avanço! Só que o seu amado te deu um fora, porque cansou de esperar. “Hastag corações abalados”. Como ousa me deixar de fora disso?

“O que foi que eu coloquei nessa vodca dos infernos...”, cheguei a perder a fome, “Tudo bem, vamos lá! Dos males o menor...”:

- Não te contei porque não deu em nada. Ele realmente já está em outra.

- Como você sabe? Meu Deus! – ela colocou a mão na boca, estupefata, aparentando ter resolvido um grande enigma – Você estava com ele agora? Conte tudo!

- Prima, já passou. Continuarei solteiro e feliz, como sempre.

- Feliz? Sei...

- Me passa o frango xadrez, por favor – tentei mudar o assunto.

- Olha, aproveitando sua lucidez, às verdades: Vamos parar com essa palhaçada? Já te traíram. Ponto. Sofreu, mas absorveu e seguiu em frente. Ponto. Saiu pegando mais homens do que eu e todas as minhas amigas juntas. Iupi! – fez um gesto sarcástico de comemoração – Agora, esse chororô todo porque foi esnobado em algum momento da vida? Cê jura, né?

- Não é isso...

- Eu sei que faz tempo, que finalmente surgiu uma brecha pra cabeça de cima pensar mais do que a de baixo, mas aproveite essa situação e se abra logo para novas experiências, Guto! Se apaixonar é bom!

- Não é não – respondi secamente.

- É sim! Garanto que é melhor do que se constranger ao encontrar na rua uma pessoa com quem transou uma vez e deu o pé na bunda. Melhore! Deixa o coração dar aquela acelerada quando vê alguém interessante, sentir um frio gostoso na barriga, compartilhar sentimentos... Sei lá, essa sua teimosia às vezes é irritante.

- Juro que não é teimosia. Quando enxergo algum cenário, preciso me trabalhar primeiro, analisar as perspectivas, saber aonde tô pisando... Só não quero sofrer de novo, entende?

- Você nunca vai descobrir se não tentar, é simples assim.

- Acabei de tentar, e nós já sabemos no que deu. Não vou mergulhar num relacionamento por uma simples atração, e depois de seis anos ter que começar tudo outra vez.

- Se fosse assim, metade da população estaria sozinha. Nem Tom Hanks demorou tanto tempo para abandonar a solidão de uma ilha deserta com uma bola de vôlei! – a sua impaciência exalava pelos poros.

Eu entendia a sua linha de raciocínio. Só não visualizava a simplicidade que ela tanto defendia:

- Vamos fazer um trato: a próxima pessoa que aparecer na sua frente, e rolar uma química, você vai convidar pra sair. Feito isso, com ou sem sexo, marcará outro encontro. Caso contrário...

- O que? – cruzei os braços, aguardando a bomba.

- Hum... – pensou por um instante – Já sei, eu fico com o seu carro!

- Vai achando, você anda vendo muito “Segundas Intenções”... E o que eu ganho se comprovar a saída?

- Oi? O amor da sua vida, talvez! Quer mais do que isso?

- E se por acaso o Gustavo voltar atrás?

- Eu te coloco no trio elétrico de Bell Marques, e vocês anunciam juntos que “A fila andou, eu te falei, não deu valor...” – embalou a melodia, imitando o cantor.

- Não é tão difícil vencer essa, concorda?

- Explorando o seu histórico, não sei não. Qualquer lance casual ou previsivelmente passageiro será desclassificado na hora. Vamos trabalhar com o bom senso. Tem que ser “aquele alguém”...

Fiquei encarando o seu olhar desafiador, enquanto me estendia a mão, bastante empolgada.

- Não seja mesquinho, vai... – prosseguiu – Seu carro já tá bem rodado!

Ri aceitando o cumprimento e o desafio:

- Tudo bem, trato feito.

- Daqui a alguns anos, espero estar contando essa história no seu casamento... Agora passa o yakissoba que esse discurso aumentou a minha fome! Ô pessoa complicada!

>>>

A ação incessante do filme que passava na televisão não foi suficiente para prender a nossa atenção. Enquanto ela cochilava no sofá, me peguei estudando alguns fatos que martelavam o meu inconsciente. “Não faz quinze dias que apresentei os dois, e já estão transando loucamente por aí...”, desconfiei, “Que paixão súbita é essa?”. Comecei a vislumbrar possíveis cenários, desde o conhecimento de Juliana sobre a relação, como eu lidaria com a situação no meu cotidiano, até o andamento do meu plano contra a Liga do Mal.

“Tão impulsivo para agir, e tão lento para as coisas do coração?”, lamuriei a minha personalidade, adormecendo ao som das explosões na projeção.

>>>

O dia já tinha escurecido quando acordei. A sala estava toda apagada, e não conseguia enxergar nada. Subi as escadas bocejando e escutei um barulho de secador, vindo do quarto de hóspedes. Pedi licença e entrei, querendo saber o que a minha prima estaria aprontando.

- Finalmente! Achei que ia desmaiar de vez! – fez farra quando me viu.

- Aonde vai assim, toda maquiada?

- Corrigindo, aonde vamos. Você tem vinte minutos para se aprontar, mas sou boazinha e te dou dez minutinhos de bônus.

- Acho melhor eu ficar em casa hoje...

- Ah não, chega de sermão! Ninguém vai vencer a aposta assim, enclausurado. Ande logo, merecemos um pouco de diversão. Não saí de Salvador para isso.

- Eu não sei a quem você puxou. Seus pais não são assim.

- Tá bom, senhor “poço de sensatez”, depois pague a minha terapia. Adiante!

Dei-me por vencido e me arrastei vagaroso para o chuveiro. “Adeus maratonas de séries...”. Acelerei o quanto pude e, no fim das contas, consegui ficar pronto antes dela. Marcela gostava de se produzir, e se o assunto era balada, a coisa ficava séria. Não seria diferente daquela vez: seu visual estava deslumbrante.

- Ai, quem me dera ter um homem desses esperando na porta– ela desceu as escadas, bastante animada.

- Eu escolho a boate, você define aonde vamos jantar.

- Se por acaso estiver usando esse vestido para acabar numa boate gay, eu juro que te mato.

- Ué, onde mais vou encontrar o amor da minha vida? A ideia foi sua!

- Tenha um pouco de compaixão. Agregue o melhor dos dois mundos.

- Ainda desconheço esse país das maravilhas, mas vou tentar.

Partimos para um barzinho onde uma colega dela estava e logo me vi em uma mesa repleta de cerveja e heteros. De um lado, a ala das solteiras – composta por Marcela e mais três garotas – esbravejava a grave situação do mercado sentimental e ansiava que algum milagre ocorresse naquela noite. Do outro, três casais de namorados se entreolhavam boquiabertos. Não sabiam se pensavam na sorte que tinham ou no desespero infundado que escutavam. No meio disso tudo, só me preocupava com o quão gelada estava a minha bebida, algo necessário para suportar aquela longa jornada que viria a seguir. “Que programão!”, lamentei.

As horas passaram entre discussões acaloradas sobre “mulheres exigentes demais” e “homens safados por natureza”. Por alguma bondade suprema do acaso, poucos pediam ou se importavam com a minha opinião, o que de certa forma era um alívio. Tocada pelo meu olhar suplicante, Marcela pareceu entender o meu evidente deslocamento e anunciou que iríamos pagar a conta.

- Mas já? – a amiga reclamou.

- Temos outro compromisso – retruquei.

- Poxa, que pena. Daqui ainda vamos para uma festa. Apareçam lá se puderem!

- Manda sua localização que te falo mais tarde, pode ser? – minha prima procurava manter a simpatia.

- Tá, mas não enrolem!

Mantinha o sorriso amarelo congelado no rosto ao me despedir, tentando ao máximo não apresentar um semblante rabugento ou aborrecido. Alcançando a calçada, não demoramos em descolar um táxi, e continuamos com o nosso cronograma original.

- Agradáveis os seus amigos, não? – provoquei.

- Sim! Na mesma medida da ironia do meu priminho.

- Estava tão na cara assim? Foi mal.

- Você nunca consegue disfarçar algum descontentamento. Tenho certeza que receberei o troco com o lugar que escolheu pra gente ir.

- Não vai não. Promessa é dívida. Vamos curtir juntos.

- Agora minha consciência vai ficar pesada.

- Pense pelo lado positivo. Ao menos os seus amigos são bonitinhos. Olhar não mata.

Marcela não escondeu uma gargalhada sonora, atraindo o olhar bisbilhoteiro do taxista. Na verdade, topei a empreitada noturna pensando exclusivamente nela. Se rolasse algo casual, ótimo. Caso contrário, pretendia ser mais santo do que aquela sexta-feira apática.

Quando chegamos ao nosso destino – vinte minutos depois, mais precisamente – a fila na frente da boate já tinha um tamanho considerável. Ainda assim, estava disposto a enfrentar o desafio. A quantidade de pessoas bonitas no entorno do espaço deixava a minha parceira eufórica.

- Tenha calma. Muitos podem gostar da mesma coisa que você – alardeei.

- Justamente. As possibilidades para a nossa aposta são imensas! – ela piscou o olho.

- Não fique criando expectativas...

- Larga de ser chato, contemple novas oportunidades! Não fui eu quem disse que “olhar não mata”.

Achei graça da ousadia e resolvi seguir o seu conselho. De fato, a beleza de alguns homens enchia os olhos, mas nada que me fizesse considerar algo além de uma boa noite de sexo. A caçada visual foi interrompida pelo gesticular agitado do segurança, que indicava o nosso momento de entrar.

No lounge, pedimos alguns drinques para abastecer a disposição e avançamos para a pista de dança. As pessoas se deixavam embalar pelos hits do momento com facilidade. Uns pareciam em transe com as músicas que se atropelavam sem parar; Outros aproveitavam a batida eletrônica para se aproximar de possíveis alvos amorosos.

Resolvi me entregar ao clima de descontração e cair na gandaia. No meio da algazarra, Marcela avisou que mandou uma mensagem aos amigos, convencendo-os a se juntarem a nós e me perguntou se teria algum problema. Não me opus ao acordo. Na pior das hipóteses, estava em um terreno mais propício para mim, podendo me afastar quando quisesse.

Algum tempo depois, quando a madrugada já avançava, eles chegaram. Os pares conseguiram uma mesa mais afastada e as outras garotas ficaram dançando conosco. Um pouco alto pelo teor alcóolico no sangue, não percebi que uma delas se aproximava cada vez mais. Como estava levando tudo na mais pura gozação, dei corda.

- Não sabia que o primo da Marcela era tão divertido assim – ela berrou.

- Que nada, é culpa disso aqui – inclinei-me para alcançar o seu ouvido e apontei para o copo de vodca, tentando vencer a socialização forçada.

- Solteiro?

- Graças a deus! – zombei.

- Hum... – balbuciou.

- Como? – não escutei.

- Digo, isso é ótimo! Você é muito bonito – ela insistiu.

Fiquei encanado ao perceber o real interesse:

- Olha, sem querer ser chato... Você provavelmente não sabe muitas outras coisas sobre o primo da Marcela.

- Como assim? – ela pareceu acreditar estar participando de algum joguinho de sedução.

- Ela nunca te contou que eu sou gay?

Queria ter tido a chance de tirar uma foto do rosto atônito da jovem com o testemunho e consequente frustração. Resolvi esperar educadamente a sua reação:

- Mas... – ela parecia chocada – Que desperdício!

Sim, em pleno século vinte e um, ainda se escuta esse tipo de coisa. “Educação uma ova...”, decidi concluir a conversa:

- Pois é... Talvez seja melhor desperdiçar o seu tempo e a sua lábia batida com outra pessoa. Vou ao banheiro, com licença.

Deixe-a sozinha e comecei uma árdua tarefa de atravessar uma pequena multidão para esvaziar a bexiga. Quando parecia sobreviver à lotação máxima do estabelecimento, nova surpresa: a fila estava quilométrica. Não ia conseguir segurar a noite toda, só me restava aguardar. “Jantar com os amigos chatos da prima, cantada de mulher na noitada, o que mais falta acontecer?”, cruzei os braços e me encostei à parede.

O caminho ao toalete estava bastante tumultuado. A fileira das pessoas que tentavam entrar se equiparava à dos indivíduos que pelejavam para sair. Foi no meio desse furdunço que o encontro mais inesperado e impensável aconteceu:

- Augusto?

Virei o rosto ao escutar uma voz familiar e mal pude crer no que estava enxergando:

- Leonardo?

Seis anos depois, aquele mesmo olhar cínico me fitava mais uma vez. Tentei não manter o tom sarcástico ao notar que estava mais gordo, ao mesmo tempo em que ele fazia questão de fazer notar um braço enlaçando a sua cintura. Olhei a sua mão estendida a mim e continuei imóvel.

- Quanto tempo! – ele desistiu do cumprimento, ficando no vazio – Como você está?

- Não que isso lhe diga respeito, mas estou muito bem, obrigado – permaneci sério.

- Esse é o Enzo, meu namorado – apontou para o rapaz agarrado às suas costas, com certo ar arrogante.

- Você não acha que é muita cara de pau sua querer me apresentar ao cara com quem me traía? – fiz questão de censura-los.

O garoto à minha frente olhou para trás, pasmo com a situação, cutucando o amigo que o escoltava. Leonardo parecia não entender de onde eu conhecia a identidade do seu acompanhante, algo que nunca tinha deixado claro na nossa derradeira briga:

- Não precisa ser grosseiro. Achei que já tivesse superado. Afinal, estamos todos felizes.

- Grosseiro? – sorri – Não, não... Você já me viu sendo grosso com alguém, sabe bem como é. Só trato as pessoas do jeito elas deveriam ser realmente tratadas.

Antes que o amante (agora atual) do meu ex-namorado pudesse responder algo, resolvi encurtar o diálogo bizarro:

- Apesar de ter deixado claro que não pretendia ter mais nenhum contato, desejo o melhor aos dois – saí da fila, já desistindo das minhas necessidades fisiológicas – Uma pena que com esse aqui, felicidade é uma questão de tempo – bati no ombro de Leonardo, dirigindo-me a Enzo – Se duvidar, já tem outro na parada e você nem sabe.

- Ele jamais faria isso – tentou defender os dois.

- Torço para que tenha razão. Boa sorte!

Comecei a me afastar, sem paciência para ficar revisitando o passado.

- Arrasou! – ainda pude escutar os dois amigos que estavam atentos à nossa conversa.

- Invejoso! – não tinha certeza se a réplica era direcionada para a minha torcida ou se tinha o intuito de continuar a discussão. Não daria esse gostinho de jeito nenhum.

Definitivamente o mar não estava para peixe. “Maldita hora em que pisei na rua...”, tinha que aprender a confiar no meu instinto de zelo. Estava satisfeito com a minha atitude e de ter me segurado, sem partir para algo mais físico. Por outro lado, não iria correr o risco de me bater com ele novamente. Precisava dar o fora dali o mais rápido possível.

Cheguei ao ponto onde estava inicialmente e encontrei Marcela aos beijos com outro homem. “Que ótimo!”, revirei os olhos, um recorde naquele dia. Caminhei apressado à mesa onde a sua turma estava reunida, entreguei um pouco de dinheiro caso houvesse necessidade e anunciei que iria embora. Uma das integrantes prometeu que sairia junta com ela.

Paguei a minha conta e entrei no primeiro táxi que encontrei. Cheguei ao apartamento aturdido, mas de certa forma consolado. Algo no meu inconsciente almejava que aquela página fosse virada, mas não sabia se estava efetivamente pronto para outra. Desanimado, cogitei entornar mais uma garrafa de uísque, mas optei encerrar a noite apenas abraçando a escuridão do meu aposento.

>>>

- Bom dia, bonitão!

Abri os olhos sem ter ideia das horas que o relógio marcava. Com esforço, percebi que Marcela estava sentada na cama, com uma bandeja no colo.

- Qual a ocasião da vez? – brinquei ainda preguiçoso.

- Bom... Uma é que eu te amo. A outra é que te devo um pedido de perdão.

- Como assim?

- Eu soube o que a imbecil da Carina te falou ontem. Fiquei mal de não ter esclarecido a elas sobre as suas preferências. Mas também não sabia se poderia falar...

- Prima, eu não tenho nada a esconder de ninguém.

- Eu sei, me perdoe. As pessoas às vezes têm reações babacas. Sinto que estraguei a sua noite.

- Não será a primeira nem a última vez. Já estou acostumado. Sua amiga é meio babaca sim, mas não foi por isso que eu fui embora.

- Porque sumiu então? Falaram que você saiu agoniado. Aconteceu alguma coisa?

- Depende. O que tem nessa bandeja aí? – tentei espiar.

- Espertinho... – ela deixou as coisas na cama e se esparramou do meu lado – Conta logo, vai!

Sentei-me recostado e, faminto, cacei algumas guloseimas, oferecendo-lhe outras.

- Enquanto sua boca trocava saliva com estranhos, eu discutia com o falecido na fila do banheiro.

- Não entendi...

- Leonardo... Estava lá com o namorado, esbanjando alegria.

Marcela parou de mastigar por um momento, estarrecida com a abordagem.

- Pois é... – prossegui – Não quero desenvolver muito o assunto, mas aconteceu e preferi me retirar.

- Você tá legal? O que aquele idiota disse?

- Eu tô ótimo e não aconteceu nada demais. Só não me chame para sair hoje, pelo amor de deus. Chega de imprevistos desagradáveis.

- Pode deixar... A minha cota dessa viagem já foi esgotada. Ficamos aqui vegetando, se quiser.

Antes que pudesse concordar, já veio me encher de afagos. Deixei sua agenda livre para sair com quem quisesse, mas escutei diversas negativas. No fim das contas, passamos a tarde assistindo filmes, entocados debaixo das cobertas.

No domingo, aproveitamos o clima da Páscoa e selecionamos um roteiro mais “família”. Passeamos pelo Ibirapuera, almoçamos em um restaurante indiano descolado, nos esbaldamos num bom sorvete de chocolate e seguimos para deixa-la no aeroporto. Depois do susto inicial, o resto do feriado foi bem tranquilo. Fiz questão de leva-la ao portão de embarque e agradeci a visita:

- Diz a minha tia que se tudo der certo, estarei lá no dia das mães.

- Pode deixar, estamos te esperando. Se estiver sozinho, já sabe...

- Não estou esquecido da nossa aposta. O carro continuará sendo meu por um bom tempo, acredite...

Rimos mais uma vez antes de um beijo de despedida. Só quando ela desapareceu de vista, após passar pela polícia federal, conduzi de volta para o aconchego do meu lar. Passei todo o caminho pensativo, sem perceber que já anoitecia. Após estacionar na garagem, fui comunicado pelo zelador que alguém me aguardava na portaria do edifício. Segui para averiguar de quem se tratava, ameaçando um palpite. Sentado de braços cruzados no playground, Flávio não escondeu um olhar ansioso ao notar minha figura.

- A gente pode conversar? – sua voz soou suplicante.

Cedo ou tarde, aquele momento iria chegar. Era a hora de colocar todos os “pingos nos i’s”.

>>>

- Desculpa aparecer sem avisar. Você não retornou nenhuma ligação, e eu não conseguiria trabalhar amanhã sem esclarecer tudo.

- Sem problemas. Aceita alguma bebida? – procurei manter a calma perante a presença inesperada.

- Não, obrigado – trilhou para a sala, me aguardando.

Acatei a decisão e fiz o mesmo, voltando com um copo d’água e sentando-me de frente para ele, apenas com uma pequena mesa de vidro separando-nos. Dei um ligeiro gole e decidi aguardar.

- Bom... – ele começou ainda tateando o rumo ideal do assunto indesejado – Não vou florear nada, ok? Naquele dia, fiquei surpreso e sem saber como agir. Não fazia ideia dos seus sentimentos ou que havia uma história entre os dois. Também não sei o que você imaginou ou interpretou.

- Existe algo diferente para imaginar?

- Não – foi incisivo – Mas aconteceu. Simplesmente aconteceu. O conhecia de vista, das vezes que ele aparecia lá na empresa. Naquela reunião que você fez aqui, comecei a acha-lo interessante. E aí teve aquela viagem para o Rio, estávamos no mesmo quarto, solteiros, com pontos de vista similares... Juro, foi muito natural.

- Mas porque não comentou nada?

- Lamento a maneira como descobriu. E não era para ter sido assim por minha causa. Eu sei que Gustavo é irmão da Juliana, sei que vocês são uma grande família. A gente ainda está se conhecendo. Preferi que a coisa se tornasse mais séria antes de ter uma conversa, principalmente com ela. O Guga concordou e só agora eu entendo a real pretensão.

Existia uma razão para confiar no meu funcionário, e não seria naquele momento que faria o contrário. Ele sempre foi o meu braço direito. Não havia motivos para mentir, e toda a narrativa parecia bastante crível, apesar de não haver qualquer obrigação da sua parte em me contar nada.

- Fiquei assustado depois que ele me contou e desde então quero deixar tudo em pratos limpos. Amanhã mesmo conversarei com a Ju. Vou entender perfeitamente se me demitirem ou me afastarem dele. Nossa amizade está acima disso. Jamais planejei causar algum tipo de situação constrangedora.

- Não fale bobagens. Ninguém vai ser demitido, não por isso.

- Como disse, não foi nada premeditado. Ele é bonito pra caramba e gosto de estar ao lado dele. Quando conversamos, os problemas do mundo desaparecem, sabe? É diferente, acho que nunca senti uma conexão assim. E eu me sinto muito mal porque de alguma forma, você é o responsável por isso.

O brilho no olhar de Flávio ao falar de Gustavo me deu um nó na garganta. Ao mesmo tempo em que finalmente queria viver algo assim com alguém (por mais que me negasse a tal), seria de um extremo egoísmo tentar coibir o sentimento genuíno dos dois. Minha oportunidade já tinha passado, precisava saber perder.

- Posso te pedir uma coisa? – estava cabisbaixo.

- O que quiser – ele não escondia o semblante apreensivo.

- Espera eu falar com o Guga antes de você conversar com a Ju?

Ele concordou com a cabeça.

- Não quero que nada impeça esse relacionamento, e jamais tentaria algo assim. Também não é nada sobre você, prometo. Aliás, agradeço muito a sua insistência em vir falar comigo. Sempre apreciei a sua pessoa e fidelidade costumeira. Reitero as suas palavras: nossa amizade está acima disso.

Agora era a vez de ele evitar me encarar, bastante sem jeito:

- Obrigado Guto. Significa muito para mim ouvir isso.

- Gustavo é um cara especial, e passou por muita coisa ultimamente. De certa forma, fico feliz que esteja em boa companhia. Só cuida bem dele, tá?

Flávio se levantou emocionado e me abraçou com força. Vislumbrei um temor no momento em que ele adentrou a minha casa, e o seu novo aspecto aliviado resultava acalentador. Algo me dizia que ele buscava uma espécie de benção, ou permissão.

- Não vou decepciona-los, eu prometo – ele cochichou, completando o raciocínio.

- Conte comigo sempre – foi o que consegui responder.

Após algumas amenidades, me coloquei à disposição caso fosse necessário amansar a fera no momento da revelação. No fundo, achava que minha sócia e o marido aceitariam numa boa. Perto da meia noite, ele partiu mais leve e confiante. Queria poderia dizer o mesmo, mas assim que fechei a porta, comecei a chorar.

Não sabia dizer o motivo, se de tristeza ou felicidade, se de ciúme ou cumplicidade... Apenas permiti que as lágrimas rolassem por horas e lavassem o meu rosto. Aquela pequena reunião encerrou um período de descanso como se desse fim a uma estranha fase. Cada segundo daqueles três últimos dias serviu para mostrar diferentes caminhos cheios de horizontes. E em todos eles, eu deixava para trás medos irracionais e desejos supérfluos.

>>>

Entrei na empresa com óculos escuros, torcendo para que as minhas olheiras não estivessem tão visíveis. Ao me avistar saindo do elevador e abrindo a porta de vidro, a recepcionista abriu um largo sorriso:

- Bom dia senhor Augusto!

- Bom dia Rebeca, tudo bem? – não compreendia a disposição de uma pessoa naquele horário – A Juliana já chegou?

- Ainda não. Quer que eu ligue para ela?

-Não é necessário, perguntei por curiosidade. Passo na sala dela mais tarde.

- Ah, só mais uma coisa – apontou-me um envelope – chegou uma encomenda para o senhor.

- Para mim? Quem entregou?

- Não sei informar. Estava na portaria. Parece que deixaram lá durante o fim de semana.

- Certo, obrigado – recebi o pacote intrigado e caminhei para o escritório.

Atravessando o corredor, já era possível observar alguns funcionários concentrados em alguns projetos. Antes que me juntasse a eles, decidi resolver outro mistério. Coloquei a mochila na poltrona e abri o envelope, despejando o conteúdo na mesa. De dentro, apenas um pen drive e um pedaço de papel rasgado se evidenciaram:

- “Olhe com cuidado esse material e me procure assim que possível”, o bilhete escrito à mão estava assinado por Adriano.

Senti meu coração palpitar, sem saber do que se tratava aquilo. Tranquei a porta e liguei o computador rapidamente. Assim que conectei o dispositivo, algumas pastas surgiram, todas com nomes de locais e datas. Um arquivo intitulado “Bahia – 12 de Fevereiro” me fez perder o chão. Cliquei e o conteúdo levava a um registro de vídeo. Olhei para os lados e, sem titubear, cliquei novamente. Meus olhos se arregalaram:

- “O Carnaval mal começou e já estamos saindo no lucro. Olha só quem tá no papo...”.

A voz de Júlio sussurrante guiava um movimento trepidante de câmera, buscando focar com precisão algo que eu lutava para esquecer:

- “Deita aí, vamos fazer uma brincadeira gostosa...”.

No monitor, meu corpo nu tomava toda a projeção, atendendo ao pedido sensual de Alexandre. Naquele exato instante, todo o meu pesadelo voltava a ganhar vida.

(continua)

>>>

Não morri! E jamais deixaria vocês na mão! Peço desculpas pela demora prolongada (demais até), mas já adianto que ela teve toda razão de ser. Entrei de férias no mês de dezembro, viajei para reunir as famílias na Bahia e lá (não sei por que ainda caio nesse tipo de coisa), fui vítima de outra surpresa do ruivo. Para resumir: troquei a aliança de mão, teve festão e viagem a dois (aproveitando as férias vencidas no trabalho). E sim, foi tudo maravilhoso! :)

Se alguém tiver dúvidas sobre algum acontecimento ou fatos da trama, terei o maior prazer em responder, desde que não envolvam spoilers. E, caso alguém queira se aprofundar ainda mais, todos os capítulos estão cheios de dicas valiosas. Com cuidado, dá pra juntar algumas pistas do que está por vir! ;)

Agradeço a todos pelos votos de felicidades no Natal e Ano Novo que recebi por aqui e desejo o dobro de felicidades. O conto não ficará sem continuidade e já estou de volta às postagens regulares. Sábado tem mais (um capítulo especial, de volta ao carnaval)! Obrigado pela paciência e por não desistirem da leitura!

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Comentários

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Pelo amor de Deus não para de escrever ppir favor! Perfeito!!

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Que legal! Voltaste e, o que é maravilhoso, com outro estado civil. Por favor, receba meus cumprimentos e dê um abraço carinhoso no ruivo por mim. Aguardo ansioso a continuação. Um abraço carinhoso para ti,

Plutão

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E outra coisa, historia mais linda tua com o ruivo. Sério meu amigo achei lindaaaa demais

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Eu realmente estou obcecada pela tua escrita, narrativa foda demais cara!!!

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To arrasada, mas se pararmos para analisar não acho q ia dar em muita coisa e apesar de eu detestar Adriano ate entao pelos fatos apontados, ainda acho q vai rolar alvo

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Homem do céu vc não imagina como estava ansiosa para este capítulo. Eu sou uma grande tapada pq nunca tinha visto tuas historias aqui na casa e a encontrei no wattpad, resultado fiquei a madrugada lendo e fui trabalhar quebrada, mas feliz pra caralho e ao mesmo tempo louca da vida pelo ultimo capitulo.

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Fico muito feliz que tenha retomado e desejo sucesso com essa mudança de aliança. Nota 10 pro conto e espero continuar lendo. Parabéns mais uma vez.

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Que bom que voltou! E sumiu por um belo motivo, né? Poxa feliz demais pelos dois. Que sejam felizes ate o infinito, seus lindos

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