PARTE 5
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Não sei quanto tempo ficamos ali em silêncio, que apenas era quebrado pelos gritos de jogadores da quadra ao lado. Já tinha parado de chorar e, de olhos vermelhos, enxugava o rosto com a manga do casaco da Alexia. Leandro, ao meu lado, olhava para frente, talvez com medo de me constranger se ficasse me encarando ou fazendo perguntas indiscretas. Ele esperava, dedos das mãos entrelaçados e perna direita balançando levemente. Era possível ser sexy assim, sem fazer nada? Para ele, era.
Foi quando me dei conta do estranho da situação. O que ele fazia ali? Era de outro colégio e até já havia concluído o ensino médio. Não fazia sentido que viesse a nossa despedida. Parece que ele havia lido meus pensamentos (ou talvez quisesse apenas cortar o gelo do momento), pois falou, pausadamente, como se estivesse escolhendo as palavras:
- Sabe... quando deixei a Alexia em casa ontem, depois do boliche... ela me convidou para vir aqui hoje. Disse que ia ter um jogo de despedida de vocês, que você iria jogar, essas coisas.
Ele parecia querer se desculpar falando aquilo, como se estivesse justificando o fato de ter me visto chorando e me embaraçado.
- E o jogo está rolando nesse exato momento. – eu disse, sem esconder o tom de aborrecimento na voz.
- E você está sentado aqui. – ele concluiu.
- E eu estou sentado aqui. – falei, soando um pouco mais irritado do que gostaria.
Mais um silêncio constrangedor. Não conseguia encará-lo, mas pude ver, de soslaio, que ele parecia criar coragem para perguntar algo. Sua boca se abria e fechava sem emitir som algum. Devia estar ensaiando mentalmente sua fala. Na terceira tentativa, conseguiu soltar:
- É por isso que você estava chorando? Por que chegou atrasado ao jogo?
Repassei na cabeça todo o turbilhão de pensamentos que me atingiu pouco antes de desabar naquele banco. Tentava vencer o medo para poder responder: “Não, não era por isso. Eu chorei porque minha vida é uma merda, mas eu não tinha tanta certeza disso até conhecer você ainda ontem. Você chegou falando de amor e cantando no carro pra mostrar que tudo podia ser menos complicado, menos inventado, mais eu. O problema é que a briga interna é muito injusta. De um lado do ringue estão a Alexia, os amigos, minha mãe e família, a igreja e seu Deus, a sociedade e meus preconceitos. Mas... também existe caras assim, como você, do outro lado. E pareceu bastar um sorriso para que tudo aquilo fosse varrido para longe. Pareceu que, por um momento, você silenciaria todas as outras vozes assim, sem nem fazer esforço. Sorrindo.”.
Foi o que pensei. Mas aprendi tão bem a conviver com palavras não ditas que menti para ele e me limitei a dizer:
- Sim... Chorei porque desapontei todo mundo. E me desapontei, também.
- Bom, se isso te consola... você não me desapontou. Odeio futebol e também cheguei atrasado. Se você estivesse jogando lá dentro, eu seria obrigado a entrar e assistir ao jogo. Então... obrigado. – ele disse bem-humorado, estendendo a mão fechada para que eu batesse com a minha, em cumprimento.
- Palhaço... - Ri, segurando o punho dele e empurrando pro lado.
Nessa hora, escutei um ronco alto. Imediatamente, ele colocou a mão na barriga, sem graça, e se desculpou:
- Foi mal, ainda não almocei. Não deu tempo de comer nada antes de sair de casa.
- Não seja por isso... – respondi, tirando da sacola plástica que trazia comigo uma maçã pequena e uma banana prata. Só agora havia me lembrado das frutas que mamãe havia insistido que eu levasse para comer antes da partida. – no cardápio do dia tem maçã e banana. Vai de quê?
Ele sorriu e pegou a maçã.
- Obrigado.
Calamos-nos novamente, ele dando uma mordida na maçã enquanto eu descascava a banana. Ele ser tão legal assim não ajudava em nada na minha confusão. Ainda mais vestido com aquele casacão azul, o capuz pra trás mostrando os cabelos castanhos e bagunçados que reluziam sob a luz pálida do sol. Estava nublado, o calor do dia anterior era o presságio da chuva que deveria cair em pouco tempo.
- Veio com o casaco achando que irá chover? – perguntei apenas para preencher o vazio, após engolir o pedaço de banana que mastigava.
- Isso. Vejo que você também veio com o seu, né? Gostei da cor. – ele falou rindo, apontando para o casaco rosa e com estampas da Hello Kitty que estava em minhas mãos.
Sorri sem graça. Devo ter corado.
- Que nada, cara... Esse é o casaco que a Alexia esqueceu lá em casa, dia desses.
- Tô ligado, só brincando contigo. Eu me lembro dela usar isso no segundo ano.
Era engraçado como, em tão pouco tempo, já estava esquecendo que havia conhecido o Leandro através da minha namorada. Desde o instante em que ele pousou a mão no meu ombro e se sentou ali, me distraindo de um problema que era ele próprio, parecia que o conhecia de um passado só meu, sem intermediários. Exclusivo.
- Vocês são bastante amigos, né? – perguntei, tentando deixar a voz o mais neutra possível.
- Cara, demais... muito mesmo. Eu a considero uma irmãzinha.
Não sei o porquê, mas ouvir aquilo foi um soco na boca do estômago. Acho que, de todos os caras do mundo que eu poderia estar a fim, o pior de todos era justamente o melhor amigo da própria namorada. Como eu não havia o que acrescentar, ele continuou falando:
- Nesse colégio onde estudávamos, o Centro de Ensino São Jorge, eu era meio isolado, saca? Acho que pelo fato de não curtir educação física e preferir ficar lendo na sala de aula, sozinho, ao invés de jogar bola. Sei lá. Não que eu seja antissocial, longe disso! Mas meus interesses nunca foram muito parecidos com os dos moleques da turma.
Deu outra mordida na maçã, tentando olhar para dentro da quadra coberta como se quisesse ver a Alexia dali. E completou:
- E então a Alexia me via quietinho no canto da sala, com um livro na mão, e ia lá. Ela não queria nada em troca, só queria que eu não me sentisse sozinho, sabe. Ela puxava assuntos que nem devia curtir, só pra poder conversar comigo... Perguntava sobre os livros que eu gostava e pedia dicas de leitura, coisas do tipo. Claro que ela nunca lia depois. – e riu ao falar isso. – A partir daí, começamos a passar o intervalo juntos. Ela me pedia conselhos sobre os caras que era a fim e eu usava exemplos de casais dos livros pra dizer o que ela deveria ou não fazer. Era engraçado... E ela ouvia meus segredos também, lógico. – e se calou logo que disse isso, como se estivesse indo longe demais.
Não pude deixar de admirar ainda mais minha namorada. Ela ter se aproximado assim foi típico de seu bom coração. Mas também senti uma ponta de inveja da Alexia, pela intimidade que tinha com o Leandro. Eu era capaz de deixar de jogar futebol para ficar com ele na sala durante a educação física. Várias e várias vezes.
- E ela pediu conselhos amorosos sobre mim? – perguntei curioso.
- Não. O namoro de vocês é muito recente e eu passei os últimos meses viajando pra Europa, visitando meus parentes em Minas... Acabei o ensino médio e tô usando esse tempo pra decidir o que fazer da vida. Não tivemos muito contato até a saída de ontem.
- Você deve se preocupar muito com ela... – falei olhando para longe, pensando em voz alta. Era algo que dizia mais pra mim mesmo e acabei abrindo pro Leandro também.
Algo nessa frase teve o efeito de despertar nele uma questão importante e que, parecia, já estava em sua cabeça antes de encontrá-lo naquele banco. Foi quando ele virou seu corpo na minha direção, inclinou-se para a frente e segurou a minha perna com a mão, para ressaltar a seriedade do que ia falar:
- Demais, Edu. E por falar nisso, eu preciso mesmo te perguntar... você tem certeza que ela é a pessoa certa? Vi que vocês já trocaram anel de compromisso com três meses de namoro só. Não a machuque, cara. E não se machuque também... por favor.
Não sabia o que dizer. Será que ele havia descoberto que eu era gay? Teria reparado em alguma coisa no momento da lanchonete? Por que essa preocupação toda, como se quisesse me alertar de algo?
E então alguém tinha saído da quadra e caminhava na nossa direção, olhando para nós. A mão dele ainda estava sobre a minha perna quando uma voz feminina gritou, ao longe:
- Edu!
Era Alexia.
(FIM DA PARTE 5)