PARTE 7
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Domingo foi dia de redenção. Fui ao culto com minha mãe, pela manhã, pra compensar a falta do dia anterior. O problema é que eu fui sem estar presente. Durante a pregação do pastor, algo sobre o jejum de quarenta dias em Monte Sinai e a necessidade de vencer as tentações, o pensamento voava para o Leandro. Minha mente me projetava para a tarde de segunda-feira, a campainha tocando e eu abrindo a porta. Aquele sorriso. Talvez alguns livros na mão, dando um ar de intelectual que caia tão bem nele. Como ia estudar? Como entender o que são orações coordenadas assindéticas perto daquele maxilar bem definido?
Saímos da igreja e minha mãe confundiu meu estado aéreo com um estado de reflexão pelas palavras que o pastor havia dito.
- Muito bem, filho... A palavra de Deus deixa a gente assim mesmo, né? Inebriado, nas nuvens. Glória a Deus...
- Glória a Deus. – respondi suspirando, no piloto automático.
Fui direto pro quarto e tirei meus tênis ao chegar em casa. Deitado na cama, mexi no celular e verifiquei se havia alguma mensagem. Nada. O pior naquela situação era estar ansioso pelo dia seguinte sem ter com quem falar sobre. Contentei-me em ligar pra Alexia e fingir que aquele era apenas mais um domingo qualquer. Precisava conversar com alguém. Após alguns segundos ela atendeu com uma voz carinhosa e sonolenta. Perguntei:
- E aí, bem, fazendo o que?
- A Denise vai trazer o Wii dela mais tarde, pra gente jogar aquele jogo de dança. Tá a fim? – e reprimiu um bocejo.
- Não... melhor não. Hoje é dia da célula aqui em casa. Aquele encontro da mamãe com as bitoladas da igreja. Ela vai querer minha ajuda pra preparar o lanche e sei lá mais o quê.
- “Bitoladas da igreja”... É assim que você chama as amigas dela? – e riu – que coisa feia, amor!
- Eu chamo as coisas pelo nome delas, ué. – e ri também.
- Então eu vou dançar enquanto você finge dormir no quarto pra não participar da... leitura de versículos? É isso que elas fazem?
- É. Basicamente isso.
- Parece animador... Pera aí, bem. Psssst, passa! – e escutei um barulho de chinelo batendo no chão vindo do outro lado da linha – É o Boris tentando cruzar com a minha perna aqui. Tá naqueles dias.
- Isso também parece animador. Pelo menos pra ele. – falei rindo.
- Há-há-há.
- Mas, Alex, mudando de assunto... E amanhã? O Leandro falou que horas vai vir? Você já passou meu endereço pra ele? – disse, me especializando em simular desinteresse na voz.
- Ahhh, sim, esqueci de te dizer. Ontem dei seu número pra ele, então ele deve ligar a qualquer momento pra combinar direitinho. Daí você aproveita e explica aquele esquema de estacionar por trás do prédio.
Ainda durante sua fala, assim que escutei “dei seu número pra ele”, minha mente já processava veloz: “Não, Alex! Não faz isso... Como se não bastasse a ansiedade pro estudo de amanhã, agora vou ficar sem dormir esperando a ligação de hoje. Ia ser tão mais fácil aguardar um horário exato e controlar a expectativa sabendo o roteiro...”. Mas falei:
- Ótimo, então! Bom... vou indo nessa. Tenho que fingir uma dor de cabeça ou algo parecido pra escapar da célula. Beijo, bem. Qualquer coisa me liga, manda mensagem, transmissão de pensamentos, o que for...
- Beleza, Du. Te adoro. Beijão.
Desligamos e fiquei olhando pro teto. A qualquer momento o celular tocaria e eu escutaria a voz do Leandro novamente, meio grave e meio rouca. Para não ter de pensar nisso, fui à cozinha e ajudei a mamãe a preparar sanduíche de metro e limonada com gelo. Enquanto ela dava os retoques finais, passando pasta de azeitona preta no pão, me ofereci para arrumar as cadeiras na sala, onde ela receberia as colegas de igreja. Depois de afastar a mesinha de centro e dispor os assentos em semicírculo, falei que estava com a cabeça latejando. Concluindo meu plano, pedi a ela que não participasse do encontro para ir me deitar. Ela nem questionou muito, talvez agradecida pela ajuda que dei.
- Tá bem, filho... Fecha a persiana pra claridade não piorar a dor e toma um analgésico. Vou pedir pras meninas falarem baixinho, viu? - e deu um beijo na minha testa antes que eu fosse pro quarto.
Durante esse tempo todo o celular estava no meu bolso, mudo e inerte. Queria não pensar nisso, mas em diversos momentos imaginava ter sentido ele vibrar. Olhava apenas por garantia. Eu sabia que não havia chamada alguma. Agora, deitado na cama, cada minuto tinha o peso de uma hora. Escrevi várias vezes uma mensagem pra Alexia pedindo logo o número do Leandro pra que eu ligasse falando do estudo, mas sempre apagava antes de apertar o botão de envio. “Deixa estar, Eduardo... Deixa estar”.
E então o celular apitou, já de noite. Mensagem recebida. Com o coração na boca, peguei o aparelho com medo de ser a Alex e me decepcionar. Não era. As palavras foram:
“Fala, Edu! Cara, tá de pé o projeto aprovação em português? :) Chegando ae amanhã às 14:00, se for ok pra vc. Coloque seu endereço aqui:rsrs Abçs, Leandro. ;)”
Apesar da mensagem bem-humorada, respondi de maneira formal: confirmei o horário, passei meu endereço e dei a dica do estacionamento. Nada de smiles ou risos virtuais. Desliguei o celular e voltei a mergulhar minha cara no travesseiro.
Foi somente após alguns minutos que me dei conta do porque de ter sido frio com ele. Esperava uma ligação ao invés de um punhado de frases digitadas. “Jesus! Pareço uma pré-adolescente dando chilique porque o namoradinho se esqueceu de ligar pra dar boa noite”!
Dormi puto comigo mesmo.
***
TAC-TAC-TAC. Acordei com o barulho de talheres batendo em pratos. Acima desses sons, pude distinguir murmúrios que indicavam duas pessoas conversando animadamente. “Pronto... Não bastando lancharem nos encontros, agora as amigas da igreja filam a boia de casa também”, pensei mal-humorado enquanto procurava os chinelos entre a cama e o criado-mudo.
Levei um choque quando finalmente me calcei e olhei que o celular já marcava quase uma da tarde. Faltava pouco mais de sessenta minutos pra começar o grupo de estudos e eu não havia almoçado. Com a falta de rotina após o fim das aulas, acordar depois de meio-dia era tão comum quanto arranjar desculpas para faltar ao culto.
Respirei fundo, torci para que a amiga fosse uma das menos chatas e sai do quarto em direção à cozinha, de onde vinha o papo.
- Mãe, desculpa a demora, não sei o que...
E foi quando parei como um inseto paralisa ao se chocar contra a teia de uma aranha. Imóvel, o coração batendo a mil por hora. Quem almoçava com minha mãe era ele. Leandro.
- E aí, Edu?! Desculpa ter vindo tão cedo, cara... Tive uns contratempos em casa e vim antes do combinado. Espero que não se importe... – Ele disse, realmente constrangido. Até havia deixado o garfo cair quando se dirigiu a mim. Eles comiam carne de panela e batatas salteadas na manteiga.
- Filho, seu amigo interfonou e não quis te acordar! Estava lá embaixo, sem almoçar, coitado... Ele me falava da viagem dele pela França. Você sabia que o Arco do Triunfo foi construído em homenagem a Napoleão? Pois é, almoçando e aprendendo!
Absolutamente sem saber o que falar, só reparei que eu estava sem camisa e de cueca alguns segundos depois. Sem graça, devo ter corado trinta vezes. Não consegui falar nada, apenas me retirei para colocar uma camiseta no quarto e tentei ganhar tempo para recuperar o fôlego. Ainda não sabia o que dizer ou como me portar.
Quando voltei, minha mãe já havia se levantado da mesa e esbarrava em mim ao passar pelo corredor em direção ao seu quarto.
- Tenho que me arrumar pra trabalhar, Du. Porque não conheci esse seu amigo antes? Ele me parece uma ótima pessoa! – falou, apressada.
Entrei na cozinha com a cabeça girando. Sem reação, limitei-me a perguntar se ele queria beber algo.
- Suco, se tiver. Ou água mesmo... Não quero dar trabalho, sério.
Encontrei um suco de caju na despensa e servi um copo a ele. A irrealidade da situação só tomou conta do ambiente e virou algo concreto quando, sentados, escutamos minha mãe falando:
- Tchau, garotos! Diz pra Alexia que deixei um beijo, filho! E se ele se esquecer, Leandro, lembre-o. Por favor! Beijos e até mais.
E então percebi que aquilo que mais temia e o que mais queria havia acontecido, sem aviso prévio e sem possibilidade de ensaios. Estava sozinho com o Leandro.
(FIM DA PARTE 7)