Sempre tive uma excelente imaginação, deve ter sido por isso que tive tantos amigos imaginários, ainda que eles não gostassem de serem chamados assim. Lembro-me de pessoas, animais fantásticos em suas formas mais fantasiosas e animalescas possíveis, humanos híbridos, brinquedos falantes, entre outros. Cada um como seu nome próprio.
Eram tantas vozes na minha cabeça que as conversas tomavam muito do meu tempo. Por isso eu era tão centrado em mim mesmo, nos meus pensamentos, nas conversas, nos sonhos e fantasias sobre outros mundos, com os meus amigos, meus guias espirituais. Chame-os como quiser, mas eles foram amigos. Bons amigos.
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Não que eu fosse tímido, ou falasse pouco, se alguém me tirasse do meu transe habitual eu desatava a falar. Sempre com um sorriso no rosto, típico de uma criança que sempre teve amor dos pais, um lar modesto e estável sem grandes preocupações. Mas se eu ficasse sozinho por algum tempo eles começavam a falar, brigar, brincar e espernear por atenção. Pareciam animais de estimação, contudo eles estavam longe de serem amimais e muito menos de estimação.
Minha mãe até tentou me presentear com um fofo filhote de gato uma vez, mas eu teimava em dizer que já tinha o Zid, meu belo leopardo cinza que parecia um grande gato. Meus pais nunca viram o excesso de imaginação como um problema, afinal, para a maioria das crianças, essa fase é cheia de descobertas e fantasias. Apesar de que, para mim, essas descobertas foram um tanto quanto tristes.
Ao passar dos anos, os meus velhos amigos foram desaparecendo. O Leo um tigre vermelho, o Zid o leopardo cinza, o corvo branco Viv, uma quimera (claro que naquele tempo eu não sabia que o pequeno Cid era uma quimera), o Glin, uma raposa azul, a borboleta Jora com joias nas asas, um boneco de madeira, que se chamava literalmente "Sem dono” (pois achava que era independente demais para ter um), um garoto da minha idade que tinha olhos estranhos, ora azuis, ora transparentes como cristais sem imperfeições e que não falava nada, por isso eu não sabia o seu nome. Havia também outras pessoas, humanos híbridos com animais e até anjos.
Eram muitos. Minha imaginação era fértil, mas minha memória era e é péssima, por isso eu perdi grande parte das lembranças nesses últimos anos. Os nomes, suas formas, o tom das suas vozes, suas presenças, em meio à solidão e o desespero devido às primeiras descobertas de um pré-adolescente.
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A escola já começava a ficar "complicada", mas eu permanecia sem grandes amigos reais, apenas alguns colegas. Nesse ínterim, fui esquecendo os nomes dos amigos, os imaginários. Para mim, parecia que uma parte da alma também era perdida, esquecida. A adolescência já batia na porta e restavam tão poucos...
Um pequeno boneco de madeira que teimava em dizer que não tinha dono, uma bela borboleta com várias joias em suas asas e um garoto que sempre foi um dos mais antigos, mas ele sempre estava no canto quando eu preparava nosso tabuleiro, nossas cartas para aquele velho jogo. Naquela época, ele nunca disse seu nome ou qualquer outra coisa.
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O tempo passou e eu já tinha me esquecido de muitos dos amigos do passado. Era como as lembranças da primeira infância, você sabe que elas existiram, mas sua cabeça teima em não lembrar. Eu já tinha tantos anos, dizia para mim mesmo. Já não era velho para amigos imaginários? Talvez, mas mesmo assim eu os tinha e os adorava. Enquanto isso, meus colegas de turma já falavam nos seus primeiros beijos, seus videogames de última geração, do vigente computador. Tudo parecia mágico para eles, mas para mim não tinha graça alguma, pois bastava um pouco de papel, um jogo de tabuleiro e imaginar um grande desafio entre a Jora e o boneco sem dono.
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Com 12 anos, Jora me presenteou com suas joias, eu sabia o que aquilo significava, o "trabalho" como guia espiritual tinha terminado. Foi triste, mas mesmo na minha imaturidade eu entendi. Guardei todas as suas joias no meu relicário de memórias onde guardava também minhas fantasias e histórias, pelo menos as que me lembrava. O relicário era simples, de madeira, mas ainda me gabava por tê-lo construído. Sempre fui péssimo em todos os outros tipos de trabalhos manuais, mas sempre gostei de escrever e por alguma razão tinha uma facilidade de criar peças e esculpir em madeira.
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Restava dois, o boneco sem dono e garoto calado e eu já estava próximo dos 13. A maioria dos colegas da escola já tinha "crescido", mas eu continuava a velha criança de sempre, só que mais calado do que antes, ainda que desatava a falar quando alguém chamava pelo meu nome.
Nesse tempo, devido às frustrações, aos medos e inseguranças deixei que o boneco se afastasse, eu ainda podia vê-lo, mas ele tinha mudado tanto, já não era mais o mesmo. Mas eu não podia culpá-lo afinal eu também havia mudado e muito.
Como consequência, fique sozinho. Minha cabeça estava "vazia" e o único que restava era meu amigo imaginário que continuava calado. Eu o chamava, mas ele permanecia apenas me olhando. A minha cabeça estava bastante vazia nessa época. Mas, felizmente, foi por pouco tempo.
Ele tinha crescido a mesma estatura que a minha. Pode-se dizer que ele parecia comigo, mas tinha olhos de uma cor não humana. Um semblante sério, mas com um leve sorriso de confiança. Não me lembro porquê ou como, mas comecei a chamá-lo de H.(“aga”). H. de Hikan. E como uma versão alternativa da velha história do Rumpelstiltskin, ao pronunciar seu nome em voz alta ele falou.
─ Já era hora não Felipe?
─ ...
─ Tenho te observado durante muito tempo, mas decidi não falar nada enquanto todos aqueles amigos lutavam por sua atenção. Permaneci em silêncio te observando, esperando que você amadurecesse um pouco. Só iria falar quando você soubesse meu nome, ou melhor, quando o criasse. Sou um amigo imaginário um pouco diferente. É comum, as crianças se desapegarem de seus guias espirituais quando o nosso trabalho termina. Mas com você parece que isso não aconteceu, pelo menos não com todos, por isso vou te acompanhar por muito tempo. É bom se acostumar.
─ Os outros não vão voltar?
─ Não sei, nunca conheci alguém com uma imaginação tão forte. Pena que você não tem habilidade alguma para desenho se não seria brilhante.
─ Ei!
─ Mas é verdade, o conheço muito bem. Mas você é promissor com essas suas esculturas de madeira.
─ Sim, sempre gostei de carpintaria, não tenho muito jeito para desenho, mas consigo fazer algumas esculturas simples. Tenho tentado esculpir algumas dos imaginários. Mas é difícil se lembrar de todos.
─ Posso te ajudar. Eu tenho uma excelente memória, mas faça o meu primeiro.
─ Isso vai ser bastante divertido.
─ É claro, e isso é só o começo.
[...]
─ Você sabe o que posso fazer para voltar a falar com o boneco? Eu ainda posso observá-lo, mas já não escuto sua voz como antes, só pequenos trechos de poemas que parecem ser pronunciados por ele, mas mesmo assim não consigo me aproximar. Ele parece tão triste.
─ Sim, posso te ajudar nisso, mas você tem que esperar ele te aceitar novamente.
─ Vai demorar?
─ Não, mas você tem de ser paciente.
─ Certo, mas você pode me ajudar a reconstruí-lo?
─ O boneco?
─ Sim a madeira parece estar se desgastando a medicada que ele perde as esperanças...
[...]
P.S. Parece estranho ler essas memórias hoje, eu tenho 18 e o cristal continua aqui. Certamente muitos iriam achar estranho ter um amigo imaginário, ou melhor, nesses últimos tempos ele se tornou mais do que isso como se nós partilhássemos da mesma alma.
[...]
─ Não gostei de como você me retratou, nunca fui tão sério assim.
─ ... Eu sei, mas eu não poderia escrever que você pulou em cima de mim me abraçando depois que falei o seu nome, foi constrangedor até na imaginação.E dessa forma você ficou mais legal também.
─ Deixe de coisa F. Eu continuo sendo legal.
─ Menos, menos. Quem diria que eu iria terminar com você.
─ E você queria terminar com uma borboleta, ou com um boneco? Eu sou bem melhor.
─ Tenho minas duvidas, mas aqueles dois ainda estão aqui comigo. E o boneco logo, logo vai acorda novamente. E acho que devo contar a histórias deles.
─ Bom, conte também as dos outros.
─ Espero ter tempo para tudo isso. Estou bem atribulado hoje em dia, mesmo assim Acho que vou conseguir. De toda forma, obrigado.
─ Pelo que?
─ Oras, por todo esse tempo me aconselhando e me protegendo. Sei que você já deveria ter terminado seu trabalho como os outros amigos imaginários. Desculpe pelos transtornos. Já tenho 18 agora e mesmo assim parece que ainda sou uma criança. Obrigado por me ajudar nesse período de silencio, de me impedir de fazer besteiras e por ter me ajudado com o boneco também.
─ Felipe, quando estiver pronto, você mesmo me pedirá para ir embora, mas até lá estarei ao seu lado e não importa que seja com 30 ou 40.
─ Mas, mesmo assim, obrigado. Muito obrigado.
[...]
─ Agora, deixe-me contar para eles o que aconteceu durante esse tempo. Com o boneco, com a Jora e o reencontro com o laranja...
[...]