Flor de obsessão
(*) Texto de Aparecido Raimundo de Souza.
Especial para a “Casa dos Contos”.
DA MINHA janela, a da moça, em frente, parece ser maior do que aparenta. Mesmo em face da distância que nos separa. Dona de uma juventude próspera, a moradora chegada recentemente é de deixar qualquer marmanjo à beira de um ataque de nervos. E é assim que me encontro agora. Fora de mim, apatetado, boquiaberto, desde o instante em que a vi transitando através do postigo em trajes menores.
Meus olhos, esbugalhados e levados pelas tonturas da imaginação, me ajudam a viajar bem longe da terra. Loucura. Pura loucura! Quando ela não está, a sua ausência é sentida em toda parte, nos mínimos detalhes, notadamente dentro de meu coração. Fico me perguntando, como uma estranha com a qual nunca tive nenhum contato, nem troquei sequer um olá, um bom dia, pode fazer tanta diferença, ou melhor, como a sua ausência se faz tão forte e pujante quando não está por perto?
Desde o instante em que lhe vi, me sinto tomado por uma sensação diferente. Algo ilógico, delirante, que mexe com a minha estrutura, desde a sua base, invade a minha cabeça, a ponto de deixar meu estado de espírito em franco estado de desventura e fatalidade. Descubro que uma infinidade de pequenos lugares inacessíveis passou a habitar meu eu interior, e que só os vejo preenchidos, quando ela chega, por volta das oito da noite e inunda tudo com a sua presença marcante e inimitável. Nessa hora, engano meus propósitos, provoco espasmos, tapeteando minha insensatez diante da felicidade que ela irradia.
É nessa hora que ela chega que se desfaz, apressada, dos sapatos de saltos altos, que, num minuto atrás, quebravam o tranquilo do corredor. A princesa entra e vai direto para o banheiro. Acende a luz. Puxa a descarga. Reaparece, no hall, matizada pela claridade que não apagou. No quarto, acende outra lâmpada mais fraca, possivelmente a de um abajur e, então, se despe. Segue matreira, de volta ao banheiro, trajando apenas calcinha e sutiã.
Ao vê-la assim, quase sem nada, calo meus anseios. Abafo meus ímpetos. Não fosse o vão do fosso existente entre meu espaço e o dela (embora as residências se posicionem quase uma dentro da outra), me atiraria de cabeça, num voo cego e aterrissaria no chão de sua sala, despedaçado, esfacelado, com certeza, mas feliz, realizado por estar ao seu lado.
Enquanto ela se banha, os traços de suas expressões, em meio à água e a espuma, flutuam na minha imaginação. Ao tempo que boiam, viajo em quimeras, levado não só pela intimidade que se estreitou, mas igualmente pelo desejo em brasa, pela pretensão candente, atacado pelo pecado ávido aflorando meus nervos. Enfim, quando ela torna ao quarto e atravessa a sala, agora, nua em pelo, a toalha presa aos cabelos, propositalmente, estanca, por breves segundos, diante da janela grandiosa, e então, eu enlouqueço. Viajo. Vou ao topo do mundo e volto saltitante, nervos em frangalhos, querendo escapulir por todos os poros. Percebo, a cada minuto, a pele desperta, movida pelo desejo da posse. Meu Deus! Tenho plena consciência de que essas originalidades infantis da minha parte se transformam, pouco a pouco, em anomalias.
Num abrir e piscar de olhos, me vejo tolhido por estranhas sensações de loucura, onde espaços cheios de constelações brilham incandescentes diante de meu rosto. Não evito a tortura de me imaginar, posicionado com ela, sobre a cama de casal, passeando pelas curvas do seu corpo, devagar, mas também apressado. De repente, ela se abre todinha para mim, num frêmito de entrega total. Enrodilhada as pernas ao redor da minha cintura, eu a beijo com ternura e carinho. Divido os minutos que o relógio transforma em momentos eternos. Estamos ofegantes, os corpos em brasa, tentando encontrar um ritmo constante no meio de nossos movimentos desvairados. Nessa hora, confesso desejos urgentes, tomam contam, me fazem sair do real. Apesar de toda essa magia, no final, me pego solitário, vencido, aniquilado, dando um murro forte no saco, atrapalhado freneticamente num cinco contra um. Deprimido, humilhado, esfacelado, os bofes gangrenados a saltar pela boca, o olhar morto, sem vida, sem cor, me quedo, rés ao chão, petrificado... Meu aspecto, no geral, é o de um desenterrado.
Por trás dos bastidores, na coxia que acessa meu palco de sonhos, envolto pela cortina, sutilmente eu controlo seus horários. Na retorta de acuradas observações, analiso seus movimentos. Idas e vindas, chegadas e saídas. Sei dizer com precisão britânica a que horas se levanta. O instante em que toma o chuveiro matinal, que se veste e se embeleza para sair para o trabalho. O barulho das vasilhas de café, na cozinha, deixa no ar um cheiro forte, misturado a um mais robusto e vigoroso: o de sua feminilidade. Estou de plantão, sempre, os olhos enxutos e um apetite enorme de envolvê-la na minha solidão. Dessa forma inverossímil, ela vem me desgastando. Aos poucos, me consumindo. Sem nada seguro para me agarrar, procuro reescrever uma estratégia. Em paralelo, me recarregar descarregando os queixumes que me envolvem na doce miragem da sua silhueta. O olhar, contudo, persiste permanecer no vácuo, a procura de não sei o quê.
Os amigos que me visitam dizem que emagreci. É fato. Notório, por sinal. Quase não me alimento. Estou fraco, me sinto fora do normal, abatido, cansado, deprimido. Novamente vem a noite. As oito em ponto, ela restaura meus medos e reembolsa as minhas exprobrações, as minhas rebordosas e descomposturas. Uma transformação visceral. Novamente o espetáculo recomeça. Expectador de um dramalhão infindo, acalmo, tranquilizo, pressuroso, meu cansaço na plateia imensa. Pela fresta da fenda entreaberta espio. Espio longamente. Demoradamente, sorvendo cada detalhe. Ela liga a tevê. Não perde a novela. Todo santo dia... Todo santo dia é sempre uma reprise. A combinação prodigiosa de sua presença (aliada a tantos outros movimentos, toques imperceptíveis, celular tocando, torneira se abrindo, o ruído produzido pela porta do guarda roupas, lembra uma gata no cio, o som do micro-ondas, da lavadora e secadora de loucas, da maquina de bater roupas), concorre para uma reprise que se renova sem cair na rotina enervante da mesmice. Ela é o meridiano ideal que atravessa meu coração, a matriz que me renova a cada manhã, para um porvir de florestas e corais tecido no sobrevoo da Esperança longínqua que nunca chegará ser minha.
(*) Aparecido Raimundo de Souza, 62 anos é jornalista.