PARTE 11
Deitado na cama, com a cabeça no colo da Alexia, reparei que essa era a segunda vez no dia em que alguém alisava meus cabelos com os dedos. Já passava das seis e deixamos os estudos para outro dia. Ao invés de me preocupar em ser aprovado na recuperação, tentava convencê-la a falar do pai do Leandro enquanto escutávamos “Imagine Dragons”:
– Mor... Por mais delicado que seja, não acredito que você não pode falar sobre isso com o próprio namorado. Deve existir uma hierarquia em que o namorado fica acima do melhor amigo, não? Tipo, é uma parada meio óbvia. Eu te conto tudo.
“Tudo?”, pensei. Eu devia tomar vergonha na cara antes de fala isso. Eu não contei que tinha acabado de me engalfinhar com o amigo dela, naquele mesmo lugar onde estávamos. Então não, eu não falava tudo. Mas ter jogado baixo surtiu efeito, porque ela odiava pensar em si mesma como uma namorada pouco leal.
– Aiiii, bem! Assim você me faz sentir culpada! – exclamou enquanto tentava arrancar um fio de cabelo branco da minha cabeça.
– “Ai” digo eu! Tira esse treco logo de uma vez, parece até que você puxa devagarzinho pra ver minha cara de dor.
– Olha, não é má ideia... Se você continuar me enchendo o saco pra contar os segredos do Leandro, é isso mesmo que eu vou fazer. E vou até inventar uns fios brancos onde não existem só pra deixar um rombo no seu cocuruto, de tanto arrancar!
Não aguentei e ri. Ela sabia muito bem como usar do humor para desviar minha atenção de assuntos sérios. Mas dessa vez ela não conseguiria. Eu precisava saber de onde veio aquele machucado que tanto envergonhou o Leandro.
– Olha só, meu bem... – comecei a falar, com a voz amena que sempre usava quando queria convencê-la de algo. – Você já não me contou daquele segredo dele, de ser gay? E outra, ele nem ligou de você ter falado... então qual o problema de continuar e dizer mais um?
Foi somente depois que ela parou abruptamente de caçar fios brancos na minha cabeça e me sentei na cama, reparando que algo tinha a incomodado, que ela finalmente falou:
– Pera aí, Du... Como você sabe que o Lê não ligou de eu ter te contado que ele era gay naquele dia do boliche? Por acaso ele te falou que já sabia que você sabe?
Ops... Isso foi algo que ele havia me confidenciado ali, naquela cama, entre um beijo e outro. Tinha me esquecido completamente que a Alexia não havia me falado em momento algum sobre ter revelado a ele que tinha me contado seu segredo. “Não pisque nem desvie o olhar, Eduardo! Nem pense nisso!”, era o que se passava na minha cabeça quando, olhando nos olhos confusos da Alexia, falei:
– Então... Ele me falou sim, hoje. Durante os estudos.
Ela soltou um suspiro de alívio. Fiquei sem entender.
– Ufa! Ainda bem que ele não ligou mesmo, de eu ter revelado... – ela disse, colocando as mãos em cima do peito. – Sabe, eu tava na dúvida... Porque quando contei pra ele que você já sabia, já que minha boca é maior que o mundo e você é meu namorado, ele ficou mudo. Parecia preocupado por ter mais pessoas sabendo, sei lá. Disse que tava tudo bem depois de uns segundos, mas você já deve ter visto como o Leandro é, né? Do tipo que mente como se sente pra agradar os outros.
– Sim... ele é esse tipo de cara.
– Mas já que você me falou que ele realmente não ligou, e vendo vocês conversando super de boa lá na mesa, fico mais tranquila e me sentindo menos culpada.
“Relaxa que no concurso dos que mais se sentem culpados eu fico em primeiro, segundo e terceiro lugares”, pensei de modo irônico, vendo que ela se martirizava por algo tão pequeno perto da minha culpa por ser o pior namorado do ano.
– Alex... Voltando naquele lance do pai do Leandro, você dizia que ele... – arrisquei, insistente. Ela sabia que quando eu colocava uma coisa na cabeça, ninguém tirava.
Ela apertou os olhos e fez aquela cara de “você não vai desistir mesmo, né?”. Em seguida, olhou para sua bolsa, que repousava em cima da cadeira do computador. Eu já sabia o que ela queria fazer.
– Não, bem... Você não vai pegar o espelho pra retocar a maquiagem justo agora. – falei, conhecendo a velha artimanha de checar a aparência e ajeitar os cílios sempre que estava nervosa e queria se esquivar de algum assunto.
Era engraçado como em apenas três meses de namoro e um semestre de convivência nós já nos conhecíamos tão bem. Se eu fosse heterossexual, talvez tivesse tido a sorte de ter encontrado minha alma gêmea bem cedo, já no ensino médio. Se, se, se...
– Tá bom, seu chato! Eu conto uma coisa ou outra... mas só se você ir lá na cozinha e voltar aqui com uma coisa bem gordinha.
– Opa, agora mesmo! – falei com um sorriso no rosto, dando um beijo no canto da boca dela e me levantando da cama para buscar sorvete.
– Ahhh, sim! E você tem que me prometer que não vai contar isso pra ninguém, muito menos pro Leandro!
Já na porta, voltei-me para ela e, com os dedos, fingi que fechava minha boca com um zíper imaginário.
***
Enquanto eu fazia a maior lambança deixando cair calda de chocolate na cama, a Alexia raspava a segunda taça de sorvete de pistache antes de começar a falar:
– Então... Eu lembro que um dia, quando ainda estudava no São Jorge com o Lê, ele chegou bem atrasado na aula. E não foi só isso. Depois de se sentar na cadeira dele, no cantinho do fundo da sala, ele não leu nenhum livro. E ele sempre trazia algum pra ler no intervalo e durante a educação física, já que o professor liberava os alunos que usavam óculos quando tinha um esporte mais, ahhn, digamos assim, de impacto. Daí...
Interrompi o relato para perguntar:
– O Leandro usava óculos? Sério isso?
– Aham, hoje ele trocou pelas lentes de contato. Mas naquela época usava uns óculos de aros grossos, acho que a armação era preta ou azul escura, não lembro direito...
O curioso foi que eu nunca tive uma queda por caras de óculos. Na verdade, era um acessório que não me despertava atração e nem repulsa. Algo neutro. Mas imaginar o Leandro de óculos me fez olhar para a questão com outros olhos. Talvez por combinar com aquele jeito culto dele... A verdade é que ele deveria ficar ainda mais charmoso, com pinta de diretor de cinema. Afastei esse pensamento quando a Alexia, após se servir de mais sorvete, continuou a contar:
– Bom, então, continuando... Nesse dia, ele ficou o tempo todo com a cabeça abaixada, deitada sobre os braços cruzados em cima da mesa. Acho até que ele fingia dormir, só pra não levantar a cara. E então eu, entrona do jeito que Deus me fez, fui lá e o cutuquei durante o intervalo. Ele não queria levantar o rosto de jeito nenhum, ficava virando a cara de um lado pro outro, sabe? Sempre com um dos braços na frente, tapando. Daí eu tive a brilhante ideia de fazer aquelas cócegas na lateral da barriga, que arrancam gargalhadas de qualquer um, tá ligado? A que fiz em você no nosso primeiro cinema e rimos tanto que fomos expulsos.
– Meu bem, você é podre mesmo... Passou na fila da falta de noção três vezes antes de nascer. – tentei descontrair, mas já me sentindo nervoso com o provável desfecho daquela história.
– Enfim, pelo menos funcionou! Assim que comecei ele tentou resistir e disse pra eu procurar o Papa na esquina, algo assim, mas até os fortes sucumbem a essas cócegas, você sabe! – ela falou rindo após uma colherada generosa, mas já ficando séria quando prosseguiu. – E então ele levantou o rosto e eu vi. Uma mancha roxa no olho esquerdo, daquelas de desenho animado, sabe? Que aparecem quando alguém te acerta em cheio um soco na cara.
Eu não sabia o que falar, mas sabia exatamente o que estava sentindo. O coração apertou e era como se eu estivesse vendo o Leandro da história, machucado, bem ali na minha frente. Pensando no ferimento atrás de sua orelha que havia descoberto naquela tarde, a ligação raivosa do pai e aquele episódio antigo de agressão, fiz uma pergunta já sabendo a resposta:
– E... e não foi algum dos colegas de sala que fez isso, foi?
Ela apenas fez que não com o rosto, virando-o de um lado pro outro lentamente. Fiquei olhando pra tela do computador, as imagens de um clipe passando, enquanto a Alexia repousava a colher do sorvete na terceira taça vazia. A tristeza pelo Leandro era algo que compartilhamos juntos naquele momento. Após um breve silêncio, ela concluiu:
– Eu olhei aquele roxo todo e falei que ia contar pra diretora, pra punir o espertalhão que tinha feito aquilo com ele. Apesar de nunca ter visto o Lê sofrer bullying, achei que fazia sentido por causa do jeito nerd dele, isolado, traça de livro... Na minha cabeça, só podia ser um dos meninos, e ele não queria falar quem era com medo de apanhar mais depois – e suspirou antes de concluir. – Quando falei que ia contar na direção para poderem informar seu pai, que isso era para o bem dele e tudo mais, ele agarrou a manga da minha blusa desesperado e disse, chorando, “foi ele, Alê! Meu pai... Não conta nada, por favor...”. Pra professora, ele disse que tinha batido o olho no galho de uma árvore enquanto andava de bicicleta. E ficou por isso mesmo.
Escutei o final do relato quase em transe. Desde que o conheci, quis saber cada vez mais de sua vida e sua história, mas não esperava encontrar algo que me deixasse tão atordoado. Ele tinha um pai abusivo, que o agredia no passado e que continuava o agredindo. Possivelmente, na noite passada deixou a ferida na orelha. E será que naquele exato momento ele não estaria apanhando, ao ter voltado pra casa? Não mais aguentando de tensão, levantei da cama como um raio, sem pensar. Não sabia o que fazer, mas na minha cabeça eu precisava saber se ele estava bem, ligar para ele, descobrir seu endereço. Qualquer coisa.
Sorte que minha mãe abria a porta de casa nesse exato momento. A Alexia não desconfiou que eu estivesse tão preocupado com o amigo dela, que conhecia há apenas três dias. Ela achou que eu tinha ficado de pé porque minha mão iria entrar no quarto em breve. Rindo, disse:
– Calma, Du! Sua mãe é religiosa e fica bolada com esse lance de namoro no quarto, mas até ela sabe que pra transar a gente deveria estar sem roupa e deitados na cama! Pode ficar de boa, sentado aí. Bicho estressado!
– Haha... Sim, tá tranquilo. Foi só o susto de ter escutado o barulho. E também, você sabe como ela é bitolada, né? – falei sem graça, fingindo que essa era realmente a razão da minha inquietação.
“Ficar de boa” era tudo o que eu não ia conseguir fazer, pensando no Leandro.
(FIM DA PARTE 11)