PARTE 14
O tempo é uma coisa curiosa: só trabalha a nosso favor quando esquecemos que ele existe. Quanto mais minha mente insistia em voar para o Leandro, mais aquele Fevereiro demorava a passar. E os dias seguiram, alheios àquela queda no quarto.
Entrei na autoescola e comecei a fazer malabarismo para conciliar as aulas com os estudos de português. O espelho do banheiro tinha papeizinhos autoadesivos colados em quase toda a sua extensão, só deixando um espaço pra ver minha cara. Os azuis continham dicas do tipo “todas as palavras proparoxítonas são acentuadas”, enquanto os amarelos mostravam desenhos com um X vermelho, indicando as proibições para o motorista. Às vezes, estudava orações coordenadas com listas de placas de trânsito ao lado. A Alexia via e, irritada, falava “Olha, se você não focar em passar nessa recuperação, tirar carteira de motorista vai ser tão útil quanto ter um carrinho de sorvete na Antártida. Sua mãe nunca vai dar um carro pro repetente do último ano”. Eu concordava, prometia me concentrar nos verbos e escondia a apostila da autoescola no meio do material de português, pra olhar de vez em quando sem ela notar. Eu tinha mais medo de não ser capaz de dirigir do que reprovar no ensino médio (e essa informação deve ser um prato cheio para os psicanalistas).
Graças a Deus, o Leandro teve o bom senso de não procurar a Alexia para combinar algum programa durante esse período. Não sei dizer se estava com peso na consciência em vê-la após o que fizemos ou se queria me evitar, sabendo que estaria sempre junto dela. De qualquer modo, essa ausência foi como ganhar na quina da mega sena. Eu precisava me esquecer do deslize cometido e tentar me lembrar de como eu era antes de conhecê-lo. Foi assim que decorar setas e regras gramaticais acabou sendo a melhor coisa que poderia ter me acontecido em um mês de 28 dias que parecia ter trezentos. A cabeça ocupada não me permitia pensar em mais nada.
O problema era quando a noite chegava. De duas, uma: ou eu ficava horas me revirando na cama, achando que mudar de posição iria magicamente alterar meus pensamentos, ou eu dormia e sonhava com ele. Nem todos os dias, e nem sempre com a mesma intensidade. Mas um sonho em particular me marcou, mais ou menos uma semana após a pior ligação da minha vida.
Nele, o Leandro estava na rua em frente ao meu prédio e gritava para que eu aparecesse na janela. Desesperado, achando que os vizinhos e minha mãe acordariam, eu descia correndo pelas escadas ao seu encontro. Coração convulsionando, eu sentia medo e felicidade ao mesmo tempo. Por que ele tinha demorado tanto? Eu já nem ligava para as luzes se acendendo nos apartamentos, minha mãe nos olhando da varanda, os cachorros latindo. Eu só queria chegar logo ao andar térreo, abraçá-lo para sentir aquele cheiro amadeirado e bagunçar seus cabelos enquanto o beijasse.
Mas assim que eu pisava na rua ele já estava com outra pessoa. “Você demorou demais”, o Leandro falava enquanto enlaçava a cintura de um vulto masculino com seu braço, os dedos entrando no bolso dianteiro da calça e fazendo carinho na perna do estranho. Enquanto me amaldiçoava mentalmente por não ter descido de elevador, achando que assim teria dado tempo de encontrá-lo sozinho, pensava em algo a dizer para tentar convencê-lo a subir comigo. Eu sabia, de algum modo, que a única posição em que poderia dormir sem pensamentos ruins a atrapalhar o sono seria abraçado a ele, deitados na cama. Olhando pra mim com um sorriso de canto de boca, ele notava meu nervosismo e perguntava “Você quer me falar alguma coisa”?
Eu queria. Eu precisava. Mas então... Não havia nada a ser dito. Eu sentia um vazio, o vácuo que a ausência de apelos havia deixado dentro de mim. Só me restava a súplica muda, com meu rosto, que no sonho era uma espécie de choro sem lágrimas. E eu começava a achar o sorriso dele não apenas bonito, mas melancólico, porque a causa desse sorriso era outra pessoa que não eu. Nesse momento, ouvia um grito de mulher vindo do meu apartamento. Quando olhava para cima, era a Alexia, e não minha mãe, que nos via com uma expressão aterradora no rosto. Por algum motivo ela sabia que eu gostava dele, mesmo que meu rival desconhecido estivesse o abraçando em meu lugar.
Virando-me para o Leandro em busca de apoio, esperando que ele me ajudasse a explicar pra Alexia o que a gente fazia de madrugada no meio da rua, via que o sorriso havia sumido e dado lugar a um roxo enorme que começava no olho e se espalhava pelo resto do rosto adquirindo tons avermelhados, como uma teia escarlate. Sangue saía de sua boca quando ele a abriu para sussurrar: “Edu... Se eu voltar pra casa ele vai me matar...”. E eu reparava que o primeiro vulto tinha sumido para dar lugar a outro, maior e muito mais assustador, prestes a acertá-lo com algo parecido com um porrete.
Nesse momento, acordei arfando e pingando de suor. Tive que sentar na cama e fechar e abrir os dedos das mãos, para me certificar de que estava completamente desperto. Passei o resto dessa noite acordado, com medo de dormir e descobrir o que o segundo homem faria ao Leandro se o sonho continuasse.
***
Uma fina garoa pela manhã anunciou o dia da prova de recuperação, na última sexta-feira de Fevereiro. No trajeto para a escola, sentados no banco de trás do carro da mamãe, uma dramática Alexia tentava tomar minhas anotações da mão alegando ser uma questão de “vida ou morte”. Coincidentemente, o teste teórico da autoescola seria no dia seguinte, sábado. “Dois coelhos com uma cajadada só”, pensei aliviado, lembrando que todo o stress dos estudos duplos acabaria em um final de semana. “Isso se a cajadada for suficiente para matar ambos”, completei mentalmente com preocupação, temendo que os estudos para um dos dois testes pudesse ser responsável pela reprovação no outro. O lado bom: durante a semana das avaliações, os sonhos com o Leandro desapareceram e foram substituídos por pesadelos com estradas sinuosas e cheias de placas, algumas contendo as inscrições “VTD” e “VTDI”. E sim, isso foi melhor do que os sonhos anteriores, para você ver como andava em frangalhos o meu estado emocional.
Assim que saímos do carro e ouvimos um “vai dar tudo certo” da minha mãe, seguimos para a sala no bloco de ciências onde seria aplicado o exame. Era o único lugar com carteiras vagas, já que o ano letivo tinha começado e os alunos regulares estavam ocupando todos os prédios principais. De mãos dadas com a Alexia, passávamos pelas quadras esportivas em direção ao local quando falei:
– Alex... sem querer soar porco ou o oposto de romântico, mas parece que você tá mijando pelas mãos de tanto suor.
– Boa tentativa de me fazer rir e distrair, bem – ela respondeu nervosa, apertando minha mão. – Mas simplesmente não vai rolar... Eu me vejo atravessando o lago Paranoá a nado mas não me vejo passando nessa prova.
– Mas você nem sabe nadar.
– Exatamente.
Chegamos. A sala era uma enorme e tradicional classe com quadro-negro e carteiras, mas aos fundos havia algumas bancadas de laboratório vazias. Os microscópios e tubos de ensaios estavam trancados num armário transparente ao lado. A única coisa à mostra que servia como lembrete de que estávamos em um bloco de ciências era o esqueleto artificial de um dinossauro, feito de gesso. Ele estava posicionado ao lado da porta e escondido pela parede, assustando os alunos que chegavam. O professor Gláucio riu quando a Alexia, entrando de supetão, reprimiu um gritinho com as mãos ao se deparar com os dentes falsos bem diante do seu rosto.
– Hahaha, o Barney te pegou de jeito heim, pequena Alexia? Que sirva para acordá-la, filha! Nada melhor do que uma dose de adrenalina pra encarar a prova mais importante da sua vida, não acha? – e riu da própria piada, mostrando gengivas que só eram menos alongadas que sua testa.
A Alexia sempre foi hors concours em espontaneidade, então sua reação natural após levar um susto em um dia tão tenso não foi menos do que óbvia: fechou a cara e franziu as sobrancelhas. Segui atrás dela apressando meu passo, já que ela disparou para o fundo da sala buscando uma carteira o mais longe possível da entrada.
– Nada melhor do que um professor boçal pra me estimular a passar nessa prova e nunca mais ter de pisar nesse colégio – ela disse entre dentes, enquanto se sentava no canto oposto à porta.
– Essa é a Alex confiante que eu conheço!
– E vamos combinar que se o cara deu o nome de Barney pra um dinossauro imaginário, isso quer dizer que ele nem sabe mais o que é sexo.
Ficamos um tempo revisando a matéria pelos cadernos, esperando que todos os alunos chegassem antes de guardar o material. Sussurrando, tentava convencê-la a não colar de mim quando o Elias chegou e se sentou na cadeira da minha frente. Era um rapaz pardo e de cabeça raspada que fazia educação física comigo.
– Fala, “Du, Dudu e Edu”! – ele disse animado enquanto batia no meu ombro, usando a velha piada do desenho da Cartoon Network. – Só te encontro nesses esquemas errados né? Haha! Ficou de recuperação em quê?
– Português, cara – e acrescentei, vendo a expressão de incredulidade dele. – Pois é, eu sei... nem pra ficar em Física ou Química.
– Confessa que você só bombou pra ajudar tua namorada e passar as respostas pra ela, vai! – seu olhar se dirigia à Alexia ao falar isso, levantando as sobrancelhas de modo provocativo. – Tô ligado que ela trouxe altos métodos de cola do antigo colégio.
– Se fecha, Elias! Você reprovou em três matérias e tá querendo tirar onda com a minha cara aí! – ela respondeu rindo.
Enquanto eles brincavam de trocar farpas e as carteiras iam sendo ocupadas pelos demais estudantes, eu já não escutava mais nada. Esse diálogo me lembrou da primeira saída com o Leandro, no dia do boliche. Ele havia dito que passava colas para a Alexia quando eles eram colegas de turma. Não tinha jeito: eu estava naquele estágio de rehab em que qualquer coisinha era um estopim pra ter uma recaída e relembrar dos detalhes mais ínfimos dele. Essa história me lembrava do jeito que ele a contou, que me lembrava da voz que ele usou, que me lembrava dele sussurrando “calma... eu sei... tá tudo bem” pra mim, no quarto... Até que o professor Gláucio me trouxe de volta à realidade com seu grasnado:
– Seguinte, alunos! Vou passar com a lista de chamada, assinem o nome de vocês e marquem a disciplina da recuperação. Ou disciplinas, para os mais enforcados! Haha – a Alexia deu uma risada abafada e pediu que eu cutucasse o Elias na minha frente quando ele falou isso. – E atenção para o horário! É de uma hora e meia para cada matéria. Correto? Entendido? A Fátima vai entregar as provas agora. Boa sorte! E, senão... Nos vemos aqui ano que vem! Haha
A Alexia respirou fundo. Segurando no meu ombro, deu uma apertadinha carinhosa e falou:
– Boa prova, bem. E quer saber um segredo? Eu acredito mais em você do que em mim. Vamos arrebentar e dar o fora daqui. – por um instante, sua voz parecia levemente emocionada. Mas em seguida ela recuperou o humor jovial. Inclinou seu corpo para frente, beijou meu pescoço e acrescentou, rindo. – Ahh, e vê se mentaliza bem as respostas. Nunca é tarde pra acreditar em telepatia!
O professor viu e falou em voz alta:
– Senhorita Alexia! Gostaria que fizesse a prova aqui na primeira carteira, na minha frente, se não for incômodo. Vamos deixar o senhor Eduardo se concentrar.
“Falta de sexo com certeza”, pensei, rindo internamente.
(FIM DA PARTE 14)
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