PARTE 15
Era março e eu nem acreditava que tudo havia dado certo. Enquanto escutava o professor da faculdade do Fernando falar sobre habeas corpus, erga omnes e outros termos em latim que mais pareciam xingamentos, minha cabeça passeava, distraída, pelos acontecimentos recentes.
Eu e Alexia não apenas tínhamos passado na recuperação como ela tirou uma nota maior que a minha, mesmo roendo todas as unhas das mãos e falado que já se imaginava usando, novamente, o medonho uniforme de cor caqui da nossa escola (e que dessa vez ia customizá-lo para deixar seu umbigo à mostra, só de raiva). Quando pegamos o resultado na sala dos professores ela ficou tão feliz, mas tão feliz, que sua única reação com a prova corrigida em mãos foi apontar para o 9.3 em caneta azul com o dedo, olhar pra mim e balançar a cabeça de um lado pro outro, como se não acreditasse e quisesse se certificar de que era verdade pelo meu semblante de aprovação.
Por alguma providência divina, eu quase gabaritei o teste da autoescola no dia seguinte. As placas fáceis estavam lá, e quando cobraram algumas mais difíceis eram justamente as que permaneciam frescas na memória. Soltando o ar de alívio ao descobrir que estava apto para as aulas práticas, não pude deixar de me parabenizar por ter burlado a vigilância da Alexia e misturado as apostilas de trânsito com os exemplos de verbos intransitivos.
Com essas duas aprovações na conta, fechei fevereiro com chave de ouro e iniciei o mês seguinte correndo atrás do que havia evitado em todo o ano anterior: descobrir o que marcar no vestibular. Minha mãe martelou em minha cabeça que essa era uma decisão tão importante quanto pedir alguém em casamento, já que eu devo escolher o que quero fazer com o resto da minha vida. Isso me deixou tenso, como se tivesse que cortar o fio vermelho ou azul de uma bomba para desarmá-la ou explodi-la, sem saber qual é a opção certa. E foi com essa preocupação na cabeça que aceitei o convite do Fernando pra assistir a uma aula no curso de Direito em que ele estudava. Era uma dessas faculdades particulares no Plano Piloto cujo intervalo mais parecia um desfile de moda do que um aglomerado de alunos.
Notando que minha mente voava longe, o Fernando, que estava na carteira ao lado da minha, cutucou meu ouvido com uma lapiseira. Virando-me para ele após coçar a orelha achando que era algum inseto, o escutei sussurrando:
– Tá tão chato assim?
– Tá não, Nando. Eu que tô viajando aqui, pensando nos últimos dias – e olhando para o professor, que parecia uma múmia escrevendo no quadro com a lentidão de uma lesma, admiti. – Tá... um pouquinho chato, sim.
Rimos com a mão na boca, pra disfarçar. Conheci o Fernando através da Vanessa, que é sua namorada e amiga de infância da Alexia. Sempre o achei um cara legal, pela leveza com que encara a vida e por enxergar o copo meio cheio ao invés de meio vazio em quase todas as situações. Fisicamente, duas coisas se destacam nele: o pomo de adão proeminente, dando a impressão de que ele tem uma bola de sinuca entalada na garganta, e os cabelos um pouco grandes, presos em um coque no alto da cabeça.
– Edu, vou mandar a real pra você. Ser advogado no Brasil não é igual nos episódios de “The Good Wife”, não – ele falou baixo, ainda com a mão cobrindo a boca.
Pronto. Foi só falar que tinha interesse em Direito porque gostava de filmes e séries de tribunal pro Fernando achar que eu era um iludido habitante da Terra do Nunca.
– Darrr, eu sei, né. Eu não quero fazer Direito pra virar um paladino da justiça, não... – respondi, torcendo para que ele não perguntasse o real motivo. Acabava de descobrir que, tirando os advogados da TV, eu não tinha noção do que um profissional da área jurídica fazia.
– Permissão para fazer uma piadinha meio escrota?
– Permissão concedida – respondi.
– Como uma pessoa que ficou de recuperação em Português espera ler isso aqui? – e deixou cair em cima da minha carteira seu vade mecum, a compilação de leis que parecia três bíblias compactadas, de tão grosso.
– Ha-ha-ha. Se você decorou dez páginas é muito. E até parece que os advogados folheiam esse treco ao invés de usar a internet quando vão atrás de alguma lei. Além do mais, eu passei na recuperação com um 9, sabichão.
Pegando o livro de volta, ele olhou pra cima batendo o dedo indicador nos lábios, como se ponderasse sobre o que eu falei.
– Sabe que isso até faz sentido... Ta aí, cara... Pelo menos em argumentação você é bom. Isso é essencial pra um advogado.
Voltando a prestar atenção à aula, escutamos mais um pouco da explicação do professor. Sua fala era tão cadenciada e o tom de voz tão suave que ele parecia estar apenas semi-desperto. Ficar acordado numa manhã fria tentando nos concentrar na teoria do direito penal mínimo já era uma provação, com aquela voz de canção de ninar então...
Quando o professor voltou a escrever no quadro, dessa vez desenhando algumas figuras geométricas para ilustrar algum ponto da matéria, virei meu corpo para o lado, discretamente, e perguntei pro Fernando:
– E a Vanessa, já te deu revanche depois daquela humilhação no boliche?
– Cara, nem me fale... E eu ainda tentei colocar a culpa nas canaletas, lembra? Haha – ele disse, fingindo que anotava o conteúdo no caderno e transformando os círculos e quadrados do quadro negro em um robozinho. Depois de um tempo, parecendo reunir coragem para falar, prosseguiu. – Mas, heim... Qual era mesmo o nome daquele amigo da Alexia que saiu com a gente nesse dia do jogo?
Engoli em seco. Desde o finalzinho de fevereiro eu tinha conseguido diminuir consideravelmente meus pensamentos em relação àquele beijo e suas consequências. Mas como a Lei de Murphy parece reger a minha vida, os eventos externos insistiam em trazer aquela lembrança à tona. Apesar de demorar a responder, aquele nome estava sempre na ponta da minha língua:
– Leandro.
– Isso, Leandro. Igual o da dupla sertaneja. Pensei nisso quando o conheci e depois não consegui mais me lembrar de qual das mil duplas era o nome – e riu, antes de continuar. – Então, esse cara, o Leandro... Você não reparou nada de estranho nele, não?
E assim que disse isso eu demorei um pouco pra entender onde ele queria chegar. Foi somente quando notei que ele fazia um trejeito com a mão no ar, deixando-a mole, que captei. Ele desconfiou que o Leandro fosse gay.
– Cara, pra ser sincero contigo... Eu mal reparei nele naquela noite.
“E o Oscar de melhor mentiroso do ano vai para...”, pensei com ironia.
– Pois eu achei impossível não reparar que ele te secou a noite inteira. E quando você se preparava pra fazer uma jogada, então... Ele só faltava comer a sua bunda com os olhos! – e deu uma gargalhada, atraindo olhares de alguns alunos e escutando um “psssst!” vindo do outro lado da sala.
– Não viaja, Nando! Você devia reparar mais na própria namorada ao invés de ficar vigiando a minha bunda.
Ele abaixou a cabeça em cima da mesa e cobriu a boca com o braço, para poder rir sem chamar a atenção do professor. Enquanto isso, eu esperava não ter corado e sentia o coração bater um pouco mais forte. Não apenas por voltar a pensar nele, mas porque havia descoberto que o Leandro também tinha sentido atração física por mim desde o nosso primeiro encontro.
Pouco tempo depois, olhei para o horário no celular e vi que faltavam alguns minutos para a primeira aula prática de autoescola. Tinha combinado com o instrutor de esperá-lo em frente à faculdade. Despedi-me do Fernando pouco antes de perguntar se havia problema em me levantar e sair no meio da aula (“Edu, capaz que essa múmia nem tenha reparado que você entrou nessa sala, pra começo de conversa!”).
A aula prática foi apenas introdutória. O simpático instrutor se chamava Denilson e tinha um sotaque gaúcho bem forte. Apesar de já saber muita coisa, fingi que era um completo leigo em direção para que ele explicasse tudo do começo e eu perdesse a aula inicial em conceitos básicos. Não estava com saco para treinar estacionamento logo no primeiro dia. Então, ele se limitou a explicar como funcionava as marchas, a embreagem, dar a seta e outros procedimentos elementares.
Terminando esses ensinamentos, minha barriga já roncava de fome. Pedi que ele me deixasse numa lanchonete natural chamada Flor de Marisa, na Asa Sul, onde combinei de almoçar com a Alexia. Ela estava nessa vibe natureba depois de ler em revistas sobre a décima dieta diferente em um ano. Eu insistia que o melhor regime possível era comer de tudo com moderação, mas ela insistiu ainda mais em sua “dieta das folhas verde-escuras” (as anteriores tinham nomes igualmente impactantes, como “dieta da fase lunar” e “dieta do tipo sanguíneo”).
Fiquei no semáforo, a uma rua de distância do prédio onde estava situada a lanchonete. Era melhor para o Denilson, que precisava descer por aquela via para pegar outro aluno. Enquanto atravessava a faixa ao fechar o sinal, mesmo à distância conseguia ver que a Alexia já tinha chegado. Não apenas isso: ela estava sentada com o cardápio em uma mão e o celular na outra, conversando com alguém. Ao me aproximar mais, gelei. Aquelas risadas, a intimidade, até mesmo a linguagem corporal adotada durante a ligação... Ter escutado “Lê” apenas confirmou o que eu já sabia. Ela falava com ele, após tantos dias sem notícia alguma. Com o coração acelerado e pernas falhando, me aproximei o suficiente para que ela também me visse.
– Meu bem! – ela falou pouco depois de desligar e antes de se levantar para me dar um abraço e um beijo. E continuou, a empolgação evidente em sua voz. – Quero saber tudo sobre seu Test Drive em Direito! Mas antes... preciso te contar uma notícia boa e outra muito boa! Qual você quer saber primeiro?
Oh-oh. Algo me dizia que era uma notícia ruim e outra muito ruim. Respirei fundo, tentei soar o menos nervoso possível e falei, enquanto me sentava à mesa:
– A somente boa primeiro. Vamos guardar o melhor pro final.
– O Leandro apareceu, disse que evitou entrar em contato antes pra não atrapalhar nossos estudos pra recuperação. Por conta de uns rolos com o pai ele não pôde mais ajudar a gente, o que eu super entendo, claro... – e deu um sorrisinho, chegando o corpo pra frente e cochichando o resto da notícia – E ele tá namorando um cara! Justo o Leandro, que falava amar ser solteiro e que ia morrer sozinho! Haha, legal né?
Então era verdade. Ele oficializou o namoro. As coisas andaram e ele teve algo sério com o cara que dizia não querer machucar. Ao escutar isso, toda a tensão se esvaiu do meu corpo e fui tomado apenas pelo sentimento de triste resignação. Por algum motivo, eu ainda tinha esperança de que essa relação com o outro não desse certo. Eu esperava que ele voltasse atrás no que falou naquela ligação. Que me esperasse terminar com a Alexia pra tentarmos ir além daqueles beijos. E eu só reparei que ainda alimentava essa fagulha de esperança ao escutar minha namorada falando que o cara que eu queria namorar já tinha namorado. Seria trágico se eu não fosse tão patético.
– Nossa, Alex... Que bom, heim. Eu... eu fico feliz por ele.
Ela estava tão animada em continuar falando que não reparou a nota de decepção na minha voz:
– Agora, a notícia muito boa... Rufem os tambores! – ela brincou, e eu nunca fiquei tão irritado com aquele jeito dela como naquele momento. – Eu combinei com ele de sairmos nós quatro! Noite dos casais, vamos jantar juntos e conhecer o namorado do Leandro!
Eu finalmente ia dar um rosto para o vulto do meu sonho.
– Isso vai ser ótimo, meu bem. Vai ser ótimo.
(FIM DA PARTE 15)