PARTE 22
Caminhei até o carro com a concentração absoluta de um faquir pisando em pregos, como se pudesse tropeçar a qualquer momento, mesmo que a calçada e a rua fossem planas, sem obstáculos. A sensação era de andar sobre areia movediça, cada passo mais difícil de ser dado que o anterior, já que eu me afundava, me afundava... Sua confissão no banheiro, meus braços se fechando sobre suas costas, o beijo que não foi dado na frente daquele box. Tudo isso havia ocorrido há um mês e eu tinha gastado os dias que se seguiram tentando esquecer, seja intensificando meu namoro com a Alexia, seja diminuindo o significado da ficada com o Leandro. Mas toda a atividade mental tinha evaporado diante daquele meio-sorriso triste. Fragilizado.
Parando em sua frente, notei que ele parecia dividido entre tentar esconder o rosto com a mão e arriscar um novo sorriso. Também reparei que havia duas latinhas de cerveja vazias no banco de passageiro e uma terceira, aberta, no suporte do porta-luvas. Sem saber o que falar, fiz a primeira piada que me passou pela cabeça:
– Café da manhã dos campeões, heim? – E apontei para as latas com o queixo.
– Sabe como é, né... Eles não tinham mais pão de queijo na padaria, daí... – E deu um gole da cerveja, depois de levantá-la no ar como se brindasse com o vento. Ao mesmo tempo, com a outra mão, continuou a pressionar a gaze contra o nariz.
Ficamos um pouco ali, em silêncio, apenas desfrutando do inusitado da situação. Parecia que tinha visto ele ontem e, ao mesmo tempo, era como se houvesse meses nos separando. O Leandro estava sentado no banco de motorista, mas com o corpo virado para fora do carro, usando uma camisa preta sem estampas, calça jeans e um par de all star bege levemente encardido, enquanto eu trajava camiseta lycra laranja com as mangas azuis, símbolo da Nike na altura do peito, e short esportivo. Não podíamos estar mais diferentes. “O despojado e o fitness”, seria a possível legenda se aquele momento fosse uma foto de Instagram. “Constrangimento na porta de casa” era um título alternativo.
Abaixando-me e quase de cócoras, para que meu rosto ficasse na altura do dele e eu pudesse analisar seus ferimentos, resisti à tentação de perguntar o que tinha acontecido. Eu já sabia. Sabia e não queria pressioná-lo a contar algo tão íntimo que eu só descobri porque praticamente coagi minha namorada a falar. Como eu também o incomodei da última vez que tentei mexer em um machucado seu, na minha casa, evitei tocá-lo novamente. Com opções tão limitações, restou-me perguntar:
– Você foi ao hospital?
– Sim, fui, eu... – Parecia incomodado ao responder. – Passei em um posto médico perto de casa. Mas não é nada de mais... Uns arranhões e partes inchadas, só isso.
A julgar pela gaze improvisada e com fita durex nas bordas, que ele provavelmente colocou para fixar abaixo do nariz e depois tirou quando o irritou, pude notar que ele estava mentindo. Ninguém havia visto e tratado aqueles ferimentos.
De repente, pareci despertar e perguntei o mais óbvio.
– O que você tá fazendo aqui, Leandro?
Ele respondeu tão rápido e cadenciado que era como se tivesse decorado aquela fala e só esperasse minha pergunta para soltá-la.
– Tentei ligar no celular da Alê e ninguém atendeu. Fui até o bloco dela, toquei o interfone e nada. Achei que ela pudesse tá aqui, contigo. Outra opção seria estarem todos dormindo, mas ela sempre diz que o povo da casa dela madruga, então...
– Eles tão no culto da manhã – interrompi. – Hoje é sábado. Por isso que mandei mensagem agorinha, ao invés de ligar.
– Certo... – E levou a latinha à boca mais uma vez, abrindo-a apenas o suficiente para passar o líquido sem que sentisse dor. Reparei que o lábio superior estava um pouco inchado. Olhando para um saco de cimento murcho na calçada, como se sentisse vergonha de me encarar nos olhos, tentou descontrair. – Mas, também, é seu dever de namorado saber mais dela que o amigo, né? Sábado, manhã, culto. Nota mental criada.
Sorri. Controlando uma vontade súbita de fazer carinho no topo de sua cabeça quando ele se inclinou para amarrar o cadarço do tênis esquerdo, disse:
– Ahnn... O que queria com a Alex? Se for pra devolver algo que ela tenha esquecido com você, pode deixar comigo que entrego. Ela vive perdendo as coisas pelo caminho.
– Não, não... Na verdade, eu precisava conversar com alguém. – E tentou conter mais um mini-esguicho de sangue que jorrou da narina. – Como ela sabe bastante de mim, pensei que...
Fomos interrompidos por um som altíssimo, ainda mais para as primeiras horas de sábado. Um carro esportivo vermelho fazia a curva de acesso à rua onde estávamos. “Up & Up”, do Coldplay, tocando em um nível de decibéis tão elevado que a voz do Chris Martin ficou levemente distorcida. Uma senhora de cabeça nevada apareceu na janela do segundo andar e gritou “eu sou velha e você que fica surdo? Animal!”. O veículo se aproximou velozmente e parou logo atrás do carro do Leandro. O vidro fumê da janela abaixou, um braço foi esticado para fora em minha direção e o sorriso dado revelava sulcos no rosto tão profundos que chamá-los de “covinhas” era um eufemismo. Fabiano chegara e eu havia me esquecido completamente do jogo.
– Tá lá, Dudu! Dessa vez você não escapa, meu garoto! – falou alto, após abaixar o som apenas o suficiente para que não precisasse gritar.
Se eu já estava desconfortável com aquela surpresa matinal, ver o cara que beijei em frente ao meu prédio, a presença do Fabiano só serviu para que eu preferisse estar caçando najas nas savanas africanas a estar ali, entre os dois. Contornando o carro do Leandro para cumprimentar meu amigo, dêmos um aperto forte de mãos e me abaixei para abraçá-lo, batidas vigorosas nas costas. Ele permaneceu sentado no lugar do motorista, como se não quisesse perder tempo e esperasse eu entrar logo no carro.
– E aí, Bin Laden! Quanto tempo, cara – tentei colocar o máximo possível de animação na voz, mesmo que tenha soado meio falhada e nervosa.
– Não me culpe, velho! Depois daquele dia que você deu o migué em geral, nunca mais retornou minhas mensagens de Whats, cara... deixei uns recados no seu Face também. A galera até achou que você tinha ganhado na Mega-sena e vazado pro exterior.
– E eu perderia a chance de esfregar na cara de todos vocês que tô rico, com uma mansão esparrada no Lago Sul? Jamais!
Rimos. A verdade é que, além da vergonha por ter faltado ao jogo anterior, eu não tive cabeça para ver o pessoal naquelas últimas semanas. Quando não eram os estudos para a recuperação, era a preocupação com a autoescola. Quando não era a preocupação com a autoescola, era a procura por um curso. E quando não era a procura por um curso, era ele. O Leandro. Afastar meus pensamentos daquele beijo consumia muito tempo e energia, e para isso eu preferia escutar Adele sozinho no meu quarto a ter que sair com os caras da escola e saber quem comeu quem, provavelmente enquanto assistiria a um jogo do Brasileirão num telão de bar.
– Muita coisa acontecendo... Mas, ainda bem, muita coisa se ajeitando – eu disse.
– Massa, Dudu! Fico feliz que suas paradas estejam indo bem, cara... Mas vamos falar de negócios agora. Partiu detonar no clube? – e, finalmente reparando na presença do Leandro no carro em frente ao seu, acenou para ele enquanto completava. – Fala, rapaz! Reforço pro nosso time?
Extremamente embaraçado (o curativo encharcado de sangue, as latas de cerveja vazias em cima do banco, a cara de quem foi atropelado por uma lancha), o Leandro nem se esforçou para se fazer ouvido e murmurou de cabeça baixa, olhando para o câmbio:
– Não... pra ser sincero, eu já tava de saída.
Acredito que o Fabiano nem tenha escutado. E então, a impressão que tive foi de ter decidido em uma fração de segundo. Mas, na verdade, não havia o que decidir. Eu sabia que mataria o jogo novamente desde o instante em que virei para trás, na portaria. Inclinando-me para o Fabiano, cabeça dentro do carro através da janela aberta, falei baixo, de modo que o Leandro não escutasse:
– Fabiano, eu não vou poder ir com você. – Soltei o ar que tinha guardado numa inspiração profunda. – Não vou jogar hoje.
Ele me olhou com uma cara confusa. Quase podia ver os pontos de interrogação acima de sua cabeça, como num gibi. Desligando o som, disse pausadamente:
– Não entendi direito, Du. Que você falou?
– Não vai dar pra eu ir, foi mal. Me desculpa, de verdade.
Passando a mão em seus cabelos castanhos quase negros, de tão escuros, o Fabiano fechou os olhos e fez uma cara de quem ia contar até três. Ele odiava cercar de expectativas algum evento apenas para ser frustrado depois, por algo que ele não pudesse controlar. E esse algo era eu, no caso. Para ele, em suas eloquentes palavras, a pior coisa do mundo era “morrer de pau duro”.
– Tá de sacanagem, né? Você tá aqui, todo vestido a caráter pra partida. E essa sacola nas mãos... suas chuteiras, né? Então. Que viagem é essa agora? – Ele tamborilava os dedos no volante, nervoso. – Até falei pro Wagner que nosso time tava completo, já que você não ia furar duas vezes seguidas. Eu dei minha palavra, velho.
Encostando a testa na parte superior da porta do carro, segurei a respiração e processei velozmente na cabeça uma desculpa aceitável. Sabendo que toda palavra dita naquele momento poderia ser usada contra mim posteriormente, busquei falar algo coerente (e que eu conseguisse me lembrar depois, claro):
– Escuta, Fabiano... Aquele cara no carro é meu primo. Não sei se você reparou, mas ele acabou de levar o maior pau de uns ladrões lá na W3. Bateram nele, roubaram a carteira e pegaram até o iPhone do coitado. Tá desnorteado, não sabe o que faz... Acho que tá bebendo pra esquecer o que acabou de passar, só pode... – E vendo a cara contraída de preocupação dele, me animei a continuar. – Então, o Leandro veio aqui pra que eu o acompanhasse até a delegacia, pra fazermos o boletim de ocorrência. Tá tão aturdido que não consegue contar direito o que se passou, daí pensei em ajudá-lo a explicar. Você viu como ele tá olhando pra baixo e falando pra dentro? Pois é...
Ele olhou para o volante, em silêncio. Depois, virou seu rosto na direção de um inquieto Leandro, que parecia decidir se ia embora logo ou se me esperava para se despedir. Estendendo a mão para mim e me olhando com admiração, como se aquela história tivesse me conferido um ar de nobreza, falou enquanto apertávamos nossas mãos:
– Vai lá, Dudu. Faria o mesmo se tivesse no seu lugar. Dá uma força pro cara, porque ele parece estar precisando. Eu chamo alguém pra cobrir sua posição, fica tranquilo.
E isso não deixava de ser verdade. O Leandro realmente precisava de ajuda, por mais que os motivos fossem outros. Dei umas pancadinhas no ombro do Fabiano, desejei um bom jogo e segui para o carro do Leandro. Quando bati na janela do banco do passageiro, para que abrisse a porta, ele deu um sobressalto. Provavelmente não esperava que eu fosse ficar. Passei as latinhas que estavam no assento e minhas chuteiras para o banco de trás, onde vários livros se encontravam empilhados em meio a instrumentos de precisão, como trenas e fitas métricas. Um forte cheiro de cravo inundou minhas narinas assim que entrei no veículo, deixando-me levemente enjoado. Desconfiei que viesse de uma bola pendurada no retrovisor, feita de diversos galhinhos retorcidos.
Sentei-me ao seu lado, esfregando as mãos úmidas no short. Antes que pudéssemos trocar qualquer palavra, o Fabiano, que estava manobrando para poder sair do estacionamento, passava com seu carro pelo do Leandro na direção contrária à anterior, olhando-o e tentando injetar encorajamento com seu olhar. “Força, você vai sair dessa!” praticamente estampado em sua testa. E rindo, apontou para mim enquanto gritava, já que a música havia voltado:
– E vê se responde minhas mensagens, seu filho da mãe! Eu posso ver que você visualizou!
Observamos o carro do Fabiano diminuindo, até virar um borrão vermelho que se dissipou no final da curva, onde algumas mangueiras tapavam a visão de quem chegava ou ia. O silêncio pós-canção foi tão intenso que acreditei poder escutar nossos batimentos cardíacos acelerados, em sincronia. Éramos duas crianças assustadas e excitadas no primeiro dia de aula, sem saber o que nos aguardava ao soar a sineta. Foi só quando ele tirou a mão do centro do volante, onde estava apoiada, que reparei que não era o único a suar. A marca dos dedos entregava seu nervosismo.
– Por que eu tenho a impressão de que sempre que apareço você não joga futebol?
– Talvez porque não seja uma impressão, e sim um fato.
Risos ansiosos ocuparam o interior do carro e ficaram soltos no ar, se embaralhando, até que morreram. Havia tanto o que dizer para preencher aquela ausência de sons. Eu queria saber se tinha sido difícil ele não ter me procurado. Queria saber se ele estava feliz com o César, se era alguém que o fazia bem. Queria saber como ele havia passado o último mês. Queria saber se morar com o pai fazia ele ficar acordado na cama, de noite, o sono sendo substituído por pensamentos sobre como mudar de vida. Queria saber sobre o último filme, livro e música que ele tinha visto, lido e escutado. Acima de tudo, queria saber se ele se arrependia de não ter tentado.
Mas, ao invés de saber tudo o que tinha para saber, perguntei:
– E então... Para onde vamos?
(FIM DA PARTE 22)
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