3ª PARTE
CAPÍTULO 10
O EVANGELHO SEGUNDO RAQUEL
1º“Por Favor” havia sido a última palavra que ele tinha ouvido de Débora, era óbvio que ele concordaria, honestamente, Gabriel, não achou que era de grande esforço ceder a Débora o que ela estava pedindo.
Drª Raquel era professora e psicóloga, amiga de Dona Lurdes, mãe de Débora, há anos, recebeu um telefonema da policial afim de fazer um pedido, faria sessões com ela, o marido e mais três amigos afim de se autocompreenderem melhor e não deixar que o trauma houvesse de deixar sequela alguma.
Gabriel, Mike e Jorge já estavam em casa, esparramados no sofá, assistindo tevê e comendo batatas, Aaron acompanhava Alice em seu quarto que passava a mão sobre a barriga de frente para o espelho, exibia em seu pescoço o cordão de pingente reluzente que havia ganhado de Débora.
Era como se nada houvesse acontecido que tivesse abalado aquela estrutura.
Gabriel apontou o controle para a televisão e de repente tudo era silêncio. Jorge e Mike olharam preguiçosos para ele.
- Pô! - Disse Mike.
- Você nem sabe o que estava assistindo Mike! - Reclamou Gabriel.
- Mas estava me entretendo.
Gabriel tinha a sensação de que nada havia mudado desde havia saído do hospital, o normal para ele era a diferente rotina que vivia, não sabia não ser aquilo que era, teve a sensação de que nada que Mike havia narrado para ele tinha de fato acontecido, ele não se recordava direito do acidente, as tragédias acontecidas, não sabia fazer parte, sentia que a única coisa que mudara até ali era a sua nova pequena cicatriz. Sua mãe nunca saberia.
Jorge e Mike não haviam mudado, eles eram os mesmos, cruéis, apaixonados, quentes e frios consigo mesmo, porém, agora divorciados, isso era estranho para Gabriel, mas estranho ainda é ninguém ter tocado no assunto, algumas coisas ainda permaneciam obscuras na sua cabeça e sem sentido algum, sabia que incomodava ao perguntar as coisas, então parou de fazer isso depois de determinado tempo.
- Se nós três estávamos no acidente, por que não podemos fazer as sessões conjuntas? – Perguntou Gabriel.
- Sei lá! – Respondeu Mike atravessando o sofá e tirando o controle da mão de Gabriel.
- Porque cada um lida com tais coisas de maneira diferente. - Respondeu Jorge.
- A Débora já havia feito isso antes? - Perguntou Gabriel.
Mike ligou a tevê.
- Já, duas vezes, ela acredita que a mente é capaz de fazer coisas incríveis, de fato está certa, ela está sempre certa, eu não acho que isso tudo é necessário, mas a gente deve isso a ela. Serão algumas sessões somente, uma por semana.... Então tudo bem.
- Calem a boca vocês dois! - Gritou MikeRaquel já era uma senhora e já havia passado dos setenta anos fácil, a idade havia lhe dado inteligência, experiência e impaciência, conseguia ver coisas além do óbvio e seu senso de percepção era assustado. Exibia orgulhosamente sua áurea de cabelos brancos natural, seus óculos meia-lua davam a ela uma impressão de figura de respeito, seus gestos indelicados não entregavam sua fragilidade sabia ser direta e gostava de aprender.
Havia conversado com Débora por telefone e já sabia algumas informações básicas sobre seus pacientes e achava extremamente interessante as coisas que tinha ouvido. A ordem era Jorge, Aurélio, Gabriel, Débora e Mickey, estava disposta a estudar e ajudar seus novos pacientes como quer que fosse.
1ª Sessão
JORGE
- Faz anos que eu não te vejo, Jorge. – Raquel e Jorge haviam se visto algumas vezes anos atrás, alguns infratores não era só questão de liberdade ou encarceramento, era mais burocrático que isso e essa diversificação de ponto de vista já havia feito ambos passarem por maus lençóis.
- Sim, a senhora está bem, bom vê-la novamente. – Disse Jorge educadamente.
- Obrigada, por favor, me chame de Raquel.
- Vou tentar...
- Então – Começou Raquel, abandonando a prancheta delicadamente em seu sofá extremamente branco – O que lhe trás aqui?
- Você sabe, a Déb....
- Tá Jorge, porque você está aqui?
Jorge a encarou sério.
Raquel o olhou por sobre os óculos diretamente em seus olhos.
- Você continua boa - Falou
- Você continua teimoso – Retrucou.
- Quem vai ser, Gabriel ou Mike?
- Os dois? Nenhum? Não sei....
- Qual seu problema com a solidão, Jorge?
- Nenhum, eu fiquei anos sozinho.
- Mas nunca feliz sozinho, o tempo que você passou sem a companhia de alguém foi miserável. Eu entendo e é normal buscar felicidade na companhia das pessoas, esse não é o problema aqui, o que você precisa saber é aprender a ser feliz, independente de alguém estar lá ou não.
- Eu não tenho medo algum de ficar sozinho.... Eu só não quero.
- E o que pretende fazer em relação a isso?AURÉLIO
Aurélio entrou na sala, sentou no centro do sofá e encarou Raquel, esperando que ela lhe perguntasse algo. Alguma coisa em Raquel lhe causava a impressão de que ela estava zangada, porém Aurélio não saberia dizer se ela de fato estava zangada ou se essa era sua expressão normal.
- O que lhe traz aqui jovem?
- Eu tenho tido uns problemas para dormir – Disse Aurélio com uma aparência cansada.
- Se falta de sono é seu problema, eu te prescrevo um remédio e a solução está aí, o que me interessa é o que lhe tira o sono.
- Minha cabeça... Ela.... Eu não controlo alguns pensamentos, penso na mesma coisa o tempo todo.
- Já falou com sua mulher sobre isso?
- Não....
- Por que não?
- Ela é tão.... Mais forte corajosa e passou por coisas piores do que eu, eu não quero.
- Aurélio, quando se trata de saúde e sanidade, medir dores não é algo inteligente a se fazer. Vocês passaram por coisas terríveis juntos, a maneira como lidarão com isso é bastante pessoal, mas não precisa ser sozinho. Hoje você vai para casa e conversar com ela sobre isso.
- Mas e...
- É isso! Te vejo semana que vemGABRIEL
- Eu terminei com meu namorado, a gente super se amava e tal, mas aí a gente terminou e eu comecei a rodar o país, aí eu conheci o Jorge que de começo era só mais um lance, mas aí eu comecei a me apegar, me apegar e apegar, mas nem contei para ele que estava indo embora, eu estou indo embora, desculpa, aí no dia que eu ia contar, eu fiquei sabendo do Mike, então minha cabeça que tava confusa, ficou mais confusa, porque e achei que o Mike estava morto, aí eu conheci o Mike e de começo não gostei dele, aí a gente brigou, derrubamos uma mesa na perna do Jorge, ele foi pro hospital e eu beijei o Mike, aí ele pediu pra eu ficar, e eu disse que não, porque meu futuro é mais importante, aí eu descobri que o câncer o Mike voltou e ele e recusava a se tratar, mas ele pediu pra eu não contar pro Jorge, aí a irmã dele apareceu, aí a gente foi lá na casa do pai do filho da irmã dele, ah é, ela tá grávida, Alice o nome dela, eu e o Mike conhecemos o Haroldo, pai do filho dela, bem ruim ele, enquanto isso aqui, Jorge conhecia uma tal de Helena, aí a gente foi numa festa, dias depois eu tive um acidente fiquei em coma por um tempo e enquanto eu dormia, um monte de coisa aconteceu, Débora perdeu o bebê, mas será mãe da filha da Alice, Jorge e Mike tão separados e meu cabelo está melhor.
Raquel colocou os óculos na boca surpresa com a rapidez eu Gabriel falava e se perguntando como ele conseguia respirar enquanto falava tudo aquilo.
- Daria um livro não!? – Perguntou ela.
- Ô! – Respondeu rindo.
- É a primeira vez que você tem vai a um psicólogo?
- Não! Respondeu Gabriel com um sorriso no rosto.
- E você quer falar sobre isso?
- Não! - Respondeu com o mesmo sorrisoDÉBORA
- Eu sou a rocha da casa, eu sei, eu passei por muita coisa - dizia Débora calmamente – Eu não choro, eu sou durona, explosiva.... E acho que as pessoas se acostumaram a me ver assim, às vezes eu me sinto como se não houvesse espaço pra eu ser outra coisa. Não fui sempre assim. Já fui mais.... Já me senti mais leve. Minha personalidade sempre foi difícil, não me entenda mal, mas já fui mais maleável, depois da polícia que eu.... As características já estavam lá, mas afloraram depois.
- Você gostaria de mudar, Débora?
- Não. – Débora fez um silêncio depois da resposta – Com certeza não, eu reclamo, mas prefiro ser eu, só acho eu deveria conversar mais.
- Você não conversa com seu marido?
- Sim, me sinto mais leve depois das últimas noites, eu queria lhe agradecer pelas coisas que disse ao Aurélio, ele tem falado sobre como anda se sentindo e tem dormido melhor, compramos roupas para o bebê ontem.
- Ouvir não é conversar....
Débora olhou nos olhos de Raquel e começou a chorar. Raquel alcançou a caixa de lenços ao seu lado e entregou a Débora que ainda tremia.
- Obrigada.
Era cruel ver Débora chorar, Raquel aprendeu com os anos de sua profissão que presenciar quedas emocionais de seus clientes era coisa com a tal qual ela estava predestinada, mas era mais sensível a mulheres, principalmente as mulheres fortes, Raquel se via muito nela, sempre houveram características semelhantes, não só entre Raquel e Débora, mas também entre Raquel e Lurdes.
- Quantas vezes você chorou desde que...
- Essa é primeira.
Em instantes a voz de Débora parecia voltar ao normal.
- Se sente melhor?
- SimMIKE
- Eu tenho que falar alguma coisa? – Perguntou Mike com tom de desgosto e contrariedade.
- Só se quiser – Respondeu Raquel.
- Então eu não quero! – Retrucou grosseiramente
- Ótimo! Terei tempo para roubar uns tomatinhos!
- Hã? – Perguntou Mike sentindo-se bobo.
- Eu tenho Fazendinha Feliz no meu tablet.
- Adoro esse jogo!
- Minha fazenda está enorme.... Você ainda tem? – Disse Raquel prestando atenção em seu tablete.
- Devo ter, faz anos que não entro.
- E não entra por quê? – Perguntou Raquel sem fazer contato visual.
- Tenho feito outras coisas – Respondeu Mike distraído.
- Como o que por exemplo? – Raquel aparentemente estava entretida com o que quer que estivesse acontecendo em seu tablet.
- Algumas coisas.... Sabe, me cuidando, transando, saindo, me vingando.... Essas coisas.
- E se sente bem fazendo tudo isso?
- Temporariamente.... –Respondeu Mie colocando os pés sobre o sofá e encarando a janela - É bom, mas ultimamente tenho tido consequências bem negativas.... Eu queria aprender pensar mais, que nem o Jorge pensa, mas é difícil sabe.... Além de que ele é muito chato.
- Bastante – Concordou Raquel ainda sem olhar pra Mike com atenção em seu tablet.
Mike se surpreendeu com o que ouviu, não acharia que ouviria alguém concordar com o fato de que havia chatice Jorge.
- Você também acha? - Riu - Normalmente todo mundo considera ele um herói.
- Heróis são chatos – Respondeu Raquel movendo seu dedo sobre a tela.
- Sim, são... Hahah... – Mike respirou fundo e olhou pro teto – Mas....
- Fáceis de amar, né?
- Insuportavelmente fáceis – Concluiu Mike.
- Você o ama? - Perguntou Raquel num tom de voz desinteressado
- Aham!
- E Gabriel?
- Aham também!
- Qual dos dois então?
- Tanto faz! – Completou tirando chicletes do bolso e colocando na boca.
- Tanto faz?
- Não, quero dizer....
- O que você quer dizer Mike!?
- Eu não sei... Hey, como você conseguiu me obrigar a falar?
Raquel mostrou o tablet para ele e viu que esse estava desligado.
- Por que você se sente confortável com desinteresse, Mike?
- Você é uma filha da puta! – Disse calmamente!
- Eu sei! – Concordou ela com um sorriso no rosto.
- Amei você!
- Nada une mais as pessoas que fila em supermercado e Fazendinha felizª Sessão
JORGE
- Você já considerou convencê-lo a ficar?
- Já! O tempo todo.
- E já pediu?
- Não, nunca.
- Por que não? - Perguntou Raquel apoiando as costas dos dedos sobre o queixo.
- Eu acho que... Seria egoísta a minha parte. Vamos ser sinceros, eu tenho quase o dobro da idade dele, ele tem tudo pela frente, estudos, oportunidades, carreira, por que ele ficaria?
- E se fosse você no lugar dele, você ficaria?AURÉLIO
- As coisas melhoraram, eu não quero me sentir com raiva ou triste, mas é como se essas.... É como se fosse bom às vezes. Nós fomos com Alice ver como estavam as coisas, um check up, nós ainda não sabemos o sexo do bebê, mas Alice sabe, ela jurou não contar para nós, mas se Débora quiser, ela dá um jeito.
- Quais são os planos depois que o bebê vir?
Aurélio explodiu em felicidade até seus olhos brilharem.
- Ah, nem sei!GABRIEL
- Eu sei como eu sou, e eu sou bastante coisa, bem.... Bastante, sabe? Eu.... sei que meio certo eu não sou, mas eles também não são e eu quero ter tempo para que a minha esquisitice seja levada em consideração, mas no meio dos dois minha esquisitice, não é nada.... Eu tô em terra de loucos....
- Você já considerou ficar?
- Já!
- O que te fez mudar de ideia?
- Sabe, existe uma linha tênue que separa coragem de burrice.... E às vezes eu.... Eu simplesmente acho que há outros meios.
- Quais?
- Eu não quero falarDÉBORA
- Você está radiante hoje!
- Sim!
- Posso saber o motivo?
- Eu sei o sexo do bebê!MIKE
- Você está mentindo pra eles?
- Errado!
- Você está mentindo pra ele?
- Certo!
- Por quê?
- Porque tanto fazª SESSÃO
JORGE
- Ansioso?
- Bastante, combinamos de viajar daqui a uns dias.... Gabriel está indo embora e ele quer conhecer um lugar antes, na verdade quem deu a ideia foi o Mike...
- Onde vão?
- Ilha do Mel – Jorge respirou fundo e desconectou o olhar de Raquel.
- Esse lugar lhe traz memórias?
- As mais diversas...
- Por quê?
- Foi lá que eu me casei com o MikeAURÉLIO
- Mais algumas semanas e você será papai!
- Puta que pariu!GABRIEL
- Semana que vem então...
- Semana que vem.
- Já arrumou tudo?
- Já!
- Eles te ajudaram?
- O Jorge e a Alice sim, o Mike não.
- Por quê?
- Acho que ele não tá plenamente de acordo com eu ir....
- Continue
- Eu não sei na verdade, ele quer que eu vá.... Acho que na verdade ele se sente inconfortável com a situação. Despedidas são difíceis.
- Mas você disse que tem um plano.
- Sim – Disse Mike, sorrindo.
- E colocará em ação quando?
- Hoje!DÉBORA
- Ele ainda não sabe?
- Não! – Sorriu Débora – Eu sou boa em guardar segredos
- E qual você acha que será a reação dele?
- Ah, ele vai ficar todo bobo.
- E sobre seus sentimentos, tem conversado?
- Não muito, mas me sinto melhor com as coisas do jeito que elas estão.
- Preparada para ser mãe?
- Não.... Mas é algo que eu quero muito.
- O que tem feito em relação a isso?
- Lido bastante, ido a um desses cursos para novas mamães.... A quantidade de mulheres ridículas que existem lá é incrível....
- Essa é nossa última sessão, eu estou feliz que você esteja bem mais emocionalmente estável do que na primeira vez que conversamos.
- Eu devo muito isso a você.
- Então.... Vai me contar se é menino ou menina?
- NãoMIKE
- Por que essa cara de bobo?
- Hã?
- Essa sua cara de perdido.... Qual o motivo?
- Gabriel.
- Isso não é novidade....
- E não é cara de perdido, é cara de.... Preocupado, surpreso....
- Surpresa boa?
- Eu não sei.... Isso.... Isso muda tudo....
- O que foi que ele fez?
- Ele comprou passagens aéreas para todos nós, ele nos convidou para ir morar com ele na Europa.
- E agora?
