Queridos Pai e Mãe,
Quanto tempo passou, hein? Tanta coisa mudou. Os meninos cresceram, e acho que isso significa que, de alguma forma, estamos conseguindo contornar a situação. Entretanto, não tem sido fácil, principalmente para mim.
Ah, tenho uma grande novidade: vamos nos mudar para o Amazonas! Provavelmente, ficaremos na casa que o papai alugava, o que já é um ponto positivo. Só espero que consigamos nos adaptar e que tudo dê certo.
***
Eu conseguia ver o sorriso nos rostos das pessoas, a alegria em seus olhos, sentia os abraços apertados dos meus parentes, mas, para mim, aquilo era parecido com uma execução. Mais uma vez, minha tia resolveu se mudar. E eu não podia fazer nada. A não ser acompanhá-la nessa roubada. Tudo bem, entendo, eu era um pobre órfão vivendo às custas dela, então, lógico que para sustentar a mim e meus irmãos, uma mudança de cenário era necessária.
Estávamos familiarizados com os aeroportos. Meu pai era militar, ou seja, viajar fazia parte da nossa rotina. Chegamos a morar dois anos em Manaus, entretanto, pouco me lembro, tinha apenas quatro anos. Na cidade, meu pai decidiu comprar uma casa para investir em aluguéis, além de ganhar dinheiro do Exército.
Você sabia que o Amazonas é longe? São quase dez horas de viagem. Quem viaja dez horas? Fiquei impaciente no aeroporto do Rio de Janeiro. O voo estava marcado para às 3h. Fiquei tão cansado por empacotar minhas coisas que o sono bateu. Pela reclamação, deve ter percebido que sou adolescente, né? Mas sou um dos bonzinhos, daqueles que não dão trabalho, juro.
Tenho 16 anos. Sou gordinho, se considerar alguém com 95 quilos, gordinho. Sou branco e sem qualquer tipo de habilidade aparente. Tenho dois irmãos: a Giovanna (12 anos) e o Richard (9 anos). Eles são lindos e lembram muito meus pais. Prometi que cuidaria deles, então, essa se tornou minha missão nos últimos cinco anos.
Já a responsabilidade da nossa guarda ficou com a irmã da minha mãe, tia Olívia. Começamos com o pé esquerdo, pois não aceitei muito bem a morte dos meus pais e tive alguns surtos como, por exemplo, destruir todo o meu antigo quarto. Depois de acompanhamento psicológico e alguns remédios, pude começar a deixar o sentimento de perda de lado e viver a vida com mais normalidade.
A profissão da tia Olívia exigia muito dela, então, sou um jovem que faz coisas que outros da minha idade não sabem, como lavar roupa, cozinhar, medicar crianças, limpar chão de vinílico e lidar com pré-adolescentes. Apesar de ganhar bem, toda a economia da titia vai para nossas escolas e contas da casa.
Voltando ao aeroporto. Andamos até a sala de embarque, Richard tentou correr na minha frente e tropeçou. Gente, como ele não consegue ficar com sono? São 3h20 da manhã. Giovanna estava com cara de poucos amigos, mas não era por causa do sono. Na escola, ela era um projeto de abelha rainha e precisou abandonar todo o glamour para uma cidade nova. Acho que não tem nenhum traço deles em mim e vice-versa, quer dizer, tirando o fato de sermos loiros.
— Vai ficar com essa cara de desânimo? — questionou minha tia, me assustando.
— O quê? — questionei, fingindo demência, mesmo sabendo a resposta: sim, estou desanimado.
— Qual o motivo para tanto desânimo? — titia insistiu, andando do meu lado e olhando para cima, pois sou mais alto que ela.
— Não estou desanimado, tia. É o sono. Fora que estou cansado de mudar. Queria criar raízes, sabe.
— Eu sei, querido, mas em Manaus, eles vão pagar o triplo do valor que ganho aqui. Fora que o teu pai tem aquela propriedade em Manaus. Não vamos pagar aluguel. — titia se armou de pontos que eu não poderia contra-argumentar, então, apenas aceitei a derrota.
Tia Olívia pegou nos meus cabelos e bagunçou. Odeio quando ela faz isso. Na verdade, odeio o contato humano como um todo. Isso é culpa da Jéssica Tavares, que estudou comigo no maternal. Aquela "vacazinha" sem coração me beijou no meio da classe toda. Eu lembro disso, um mico total. Vai dizer que não lembra das coisas que fez quando tinha quatro anos? Eu lembro.
Finalmente anunciam o voo, e seguimos para a área de embarque em um daqueles ônibus sem assento. Tenho vontade de rir, pois parecemos aqueles animais que são transportados para outros lugares. O termômetro marcava 15 graus, até aquela característica fumaça saía de nossas bocas. Giovanna parecia uma maluca tirando selfie na frente do avião.
— Yuri, tira uma foto minha aqui na frente do avião. — ela me pediu, entregando o telefone e fazendo uma pose estranha.
— Quantas fotos você já tirou hoje? — questionei acionando a câmera.
— 394, mas quem tá contando? — ela disse de forma irônica.
— Credo.
Não sou fã de aviões. Na última vez, paguei o maior mico da história da aviação brasileira. Não vou entrar em detalhes, mas, basicamente, minha bexiga não aguentou e urinei no assento em que estava. O médico receitou alguns calmantes, a tia Olívia queria ter certeza que nenhum acidente aconteceria.
— Tome agora. Antes de subirmos. — ela pediu novamente, mas, dessa vez, me entregando os remédios e uma garrafa de água.
— Tia, não é necessário. — tentei argumentar, sem sucesso.
— Da última vez você mijou nas calças. — lembrou minha irmã pegando o celular da minha mão.
— Você vai fazer xixi de novo. Posso filmar? — questionou meu irmão, mais animado do que deveria.
— Ninguém vai fazer nada. — titia repreendeu meus irmãos e passou o remédio. — Vamos, amor, tome logo.
— Aff. — peguei o medicamento e tomei na frente deles.
— Vamos, crianças. Entreguem os bilhetes para os atendentes, por favor. — titia nos orientou antes de subir.
Aviões. Cruzes. Como essas coisas podem voar? Sempre tenho ataque de ansiedade quando viajo em aviões. Da última vez, quando minha bexiga me traiu, tive que viajar o resto do percurso dentro do banheiro e permaneci lá por quatro horas. Fora que, para as pessoas com os bumbuns mais avantajados, como eu, aquelas cadeiras são horríveis. Ficamos apertados, e o espaço entre um assento e outro é mínimo. Malditas empresas capitalistas.
Sentei ao lado da janela e uma forte chuva começou a cair. Olhei para minha tia em pânico. Ela se debruçou entre as poltronas e baixou a cortina. Dez horas. Dez horas. Era quase o tempo que eu gastaria para ir aos Estados Unidos. Conhecia muito pouco o Amazonas, claro que não ao ponto de achar que na cidade só havia índios. Sou muito bom em História e Geografia, por sinal. Só queria que a tortura acabasse logo.
Havia atualizado minha playlist. Coloquei todas as bandas que eu gostava: Oasis, Coldplay, Keane, Radiohead, ABBA, entre outros. Meu gosto musical era a única coisa que salvava em mim, pelo menos, eu achava. A primeira música que tocou foi "The Scientist", do Coldplay. Felizmente, o remédio fez efeito mais rápido do que o esperado e acabei adormecendo.
Por causa dos medicamentos, sonhei com o dia do acidente dos meus pais. Minha mãe me acordou de madrugada e pediu para que tomasse conta dos meus irmãos, porque o papai estava passando mal. Eles seguiram para o hospital, porém, nunca chegaram lá. Era um dia chuvoso, e um barranco caiu em cima do carro deles.
Eu demorei muito para digerir tudo. A minha tia, mesmo com 24 anos, assumiu a responsabilidade de nos criar. Ela era muito ligada com mamãe.
***
— Yuri, querido. Acorde. Chegamos. — titia disse, me chacoalhando.
— Chegamos? Como assim? É impossível. Eu dormi por quatro horas? — perguntei, confuso.
— Dormiu. E babou toda a poltrona. Pelo menos, não fez xixi. Tirei umas selfies, depois olha meu Facebook. Hashtag sem noção. — disse Giovanna, rindo e balançando o celular em sua mão.
— Pessoal, vamos! Quero ver os macacos, as araras! O meu amigo Thomas falou que vou morar em cima das árvores! — soltou Richard, correndo de um lado para o outro.
— Querido, calma. Não vamos morar em cima das árvores. — garantiu tia Olívia, para tristeza de Richard.
A aeromoça permitiu que fôssemos para a área de desembarque. Estávamos cheios de malas, então tivemos que esperar alguns minutos. Ao todo, eram dez malas enormes. Toda a nossa vida no Rio de Janeiro foi condensada nelas. Até que o aeroporto estava bem refrigerado.
"Ah, o pessoal exagera com o calor do Norte", pensei comigo mesmo.
Pegamos carrinhos para carregar todas as malas e nos dirigimos para o estacionamento. Quando as portas automáticas se abriram, senti apenas um leve vento quente que deixou meu rosto vermelho. Puta merda, pensei em seguida.
Calor. A única coisa que eu pensava era em mergulhar em uma piscina cheia de gelo. Minha tia alugou um carro e instalou o GPS. Assim que entramos, a primeira coisa que fizemos foi ligar o ar-condicionado. Ainda bem que fui no banco da frente. Sempre foi assim: titia dirigindo, eu sendo o co-piloto e os pestinhas atrás.
Fiquei impressionado com Manaus. Nunca vi tanto verde na minha vida. O caminho parecia uma floresta. Será que os comentários que via na internet estavam certos? Até que vi o Rio Negro pela primeira vez. As águas escuras balançavam de um lado para o outro. Ao longe, pude ver uma ponte enorme.
Passamos pela Ponta Negra, mas não descemos. O sol estava forte e não tinha sinal de vento. No caminho, observei tudo: shoppings, a sede da Marinha e diversas igrejas enormes.
Nossa casa ficava afastada do aeroporto, então demoramos um pouco para chegar. Para passar o tempo, colocamos nossa playlist familiar, "Nossa Bagunça". Tinha de tudo ali. Sempre fui fiel ao meu gosto musical, então, quando tocava Oasis, Coldplay ou Radiohead, podia ter certeza que era minha escolha.
Giovanna deu um gritinho bem afetado quando os primeiros acordes de "Atura ou Surta" começaram a tocar. Para minha surpresa, todos sabiam a letra.
Na verdade, adoro esses momentos com a minha família. Uma adulta e três crianças contra o mundo. Não somos perfeitos, longe disso. Brigamos bastante, porém, nos amamos mais do que tudo. Ver o sorriso no rosto dos meus irmãos é algo que não tem preço. Por isso, mesmo contra a minha vontade, entrava na brincadeira deles.
Passamos em frente a um grande shopping — o terceiro ou quarto, confesso que já tinha perdido as contas. Letras garrafais na fachada formavam o nome: Manauara. Devia ser o nome do lugar, pensei, enquanto observava o movimento de pessoas entrando e saindo, carregadas de sacolas e com aquele ar típico de quem estava aproveitando um dia de compras. Foi então que uma música familiar começou a tocar no rádio do carro, e eu quase dei um pulo. Era The Blower's Daughter, do Damien Rice. Cara, essa música é uma das minhas favoritas, sério.
Aquela melodia triste, a voz do Damien cheia de emoção, a letra que parece falar direto com a alma... Esse homem é demais. Eu me peguei cantarolando baixinho, deixando a música me levar por um momento, enquanto o mundo lá fora continuava passando.
Ao passarmos por uma quadra de areia, vi o garoto mais bonito do universo. O mundo parou naquele momento, e claro, eu agradeci. Ele era alto, cabelo curto, moreno e estava praticando slackline. Havia outras pessoas com ele, mas meus olhos só o enxergavam. Nunca senti o coração tão acelerado.
— Uma delícia. — soltei, inconscientemente.
— Uma delícia?! O que é delicioso? — questionou minha tia, me tirando do transe.
— Oi? Como assim? — perguntei, confuso, em um dos meus habituais "gay panic".
— Você disse "delícia". — repetiu titia.
— Disse não. — falei, ficando vermelho.
— Disse sim! Eu ouvi! — soltou Giovanna, chutando meu banco.
— Eu também escutei. Se for comida, eu quero. — ressaltou Richard, rindo.
— Estava falando do clima. O clima é delicioso. — usei a única desculpa que veio à cabeça.
Finalmente, após nos perdermos por um tempo, encontramos a casa. Mas algo estava errado. Ficamos parados na entrada durante dois minutos.
— Tia. A senhora tem certeza? — questionei, olhando em volta.
— Ela... eu... bem... — titia estava sem palavras, algo difícil de acontecer.
— Não. — soltou, a "drama queen" da família, entrando no carro. — Eu só saio desse carro se for para ir ao aeroporto. Que humilhação.
— Qual é, gente? Não tá tão ruim assim... — soltou a titia, fingindo otimismo.
Eu amava minha tia, de verdade, mas aquela positividade exagerada me tirava do sério. Ela sempre conseguia enxergar algo de bom em tudo e em todos. Para uma advogada, Tia Olívia deveria ser mais esperta. Mas essa nem foi a pior parte. Do nada — e eu digo do nada — caiu um temporal. Ficamos presos no carro por duas horas.
Nesse meio-tempo, Tia Olívia conseguiu uma diária em um hotel no centro da cidade. Quando a chuva finalmente passou, criamos coragem para entrar na casa. E, olha... Se do lado de fora já parecia ruim, nem te conto como estava por dentro.
As paredes descascadas, entulho espalhado por todos os lados e um cheiro forte de urina. Com certeza, levaríamos meses para colocar tudo em ordem. Fomos explorando os cômodos, um pior que o outro. O quintal, apesar de pequeno, estava em um estado lastimável.
— Olha, tia! Balões! — Richard entrou na casa todo animado, segurando um preservativo sujo.
— Larga isso! — Tia Olívia gritou, dando um tapa na mão dele.
— Isso é uma camisinha? — perguntei, olhando para o chão.
— Tem várias no quintal — respondeu meu irmão.
— Ok. Podemos ir para o hotel agora? — implorou minha irmã, saindo da casa.
Eu estava triste com a situação da casa. Minha tia ligou para a imobiliária para verificar o estado dos outros imóveis da família. Perdido em meus pensamentos, quase não percebi quando o meu Deus grego passou em frente à casa com alguns amigos. Eles pareciam felizes juntos. Mas como um zero à esquerda como eu poderia me aproximar deles?
"Não viaja, Yuri. Você nunca terá amigos."
***
Nunca imaginei que ficaria tão encantado por um lugar como estou agora. Estou no Amazonas pela primeira vez, e tudo o que vejo pela janela do hotel me deixa de queixo caído. O quarto que pegamos no hotel tem uma vista para o Largo de São Sebastião, e que vista!
Lá embaixo, o calçamento de pedras portuguesas desenha formas ondulantes, como se o próprio rio Negro tivesse deixado sua marca ali. As pessoas caminham tranquilas, algumas conversam em bancos de praça, outras tiram fotos, e tudo parece ter um ritmo próprio, diferente da correria do Rio de Janeiro.
Mas o que realmente prendeu minha atenção é o imponente Teatro Amazonas. Nunca vi nada igual. Sua cúpula, coberta por azulejos coloridos, brilha sob o sol, formando um mosaico verde, amarelo e azul, como se representasse o próprio Brasil. A fachada imponente, os detalhes arquitetônicos... Tudo parece saído de um livro de história. Sei que foi construído no auge do Ciclo da Borracha, quando Manaus era conhecida como a "Paris dos Trópicos", e olhando para ele agora, faz todo o sentido.
— Vamos passar o dia aqui? — perguntou a minha irmã.
— Temos que descansar, garota. Amanhã temos um dia cheio. — falei. — Eu pedi comida pelo aplicativo.
Depois do jantar, deitei na cama e logo senti o conforto do colchão macio. Depois de um dia inteiro andando por Manaus, era exatamente o que eu precisava. Após os pestinhas e a minha tia dormirem, o quarto estava silencioso, mas, se eu me concentrasse, ainda podia ouvir o som distante da cidade lá fora — risadas, o motor de algum carro passando devagar e, ao fundo, talvez o eco de uma música vindo do Largo de São Sebastião.
Virei para o lado e olhei pela janela. As luzes douradas iluminavam o Teatro Amazonas, que agora parecia ainda mais majestoso sob o céu escuro. A cúpula colorida refletia suavemente a iluminação da praça, e por um instante, fiquei ali, admirando, como se quisesse guardar aquela imagem para sempre na memória.
A cama era tão aconchegante que meu corpo cansado começou a relaxar quase imediatamente. Fechei os olhos e inspirei fundo. Minha mente ainda vagava por tudo o que vi hoje — os prédios históricos, as ruas movimentadas, o contraste entre a cidade e a floresta ao redor, e claro, o meu príncipe grego. Tudo era novo, mas ao mesmo tempo, acolhedor.
Aos poucos, minha respiração desacelerou. O cansaço do dia foi se transformando em um torpor tranquilo. Minha última lembrança antes de pegar no sono foi a sensação de pertencimento, como se Manaus estivesse me recebendo de braços abertos. E então, sem nem perceber, adormeci.
***
No dia seguinte, minha tia acordou cedo e saiu para fazer compras, enquanto eu fiquei no hotel e levei meus irmãos para o café da manhã.
O Amazonas tem uma gastronomia impressionante. Comi um sanduíche com queijo, banana frita e outros ingredientes. No quesito comida, eu me sentia em casa. Claro que não podia exagerar — já estava acima do peso ideal — mas aquele sanduíche me conquistou. Comi quatro.
— Estou satisfeita. — anunciou minha irmã, pousando o prato vazio sobre a mesa.
— Já?! — Richard e eu exclamamos, ao mesmo tempo.
— Ah, espera... Me empresta teu sanduíche? — pediu Giovanna, pegando meu prato.
— Você vai comer? — perguntei, desconfiado.
— Claro que não. Mas meus seguidores do Insta não precisam saber disso. — respondeu, tirando uma foto. — Como é mesmo o nome desse sanduíche?
— X-Caboquinho. — disse meu irmão, rindo. — Nome engraçado.
Pouco depois, minha tia me ligou avisando que os entregadores estavam a caminho de casa. Tivemos apenas dez minutos para arrumar nossas coisas. Lá fomos nós: uma adulta, um adolescente e duas crianças. Nossa missão? Reformar uma casa gigantesca, já que o pessoal do seguro demoraria a nos atender.
Tintas, pincéis e material de limpeza. Confesso que, no início, foi engraçado. A Giovanna e o Richard até ajudaram, mas o sol de Manaus... Meu Deus! Você precisa vir aqui para entender o quanto ele é forte. Graças a Deus, assim como a temperatura é quente, o clima também é instável.
Do nada, começou a chover. Nem preciso dizer que parte do nosso trabalho foi por água abaixo. No entanto, aproveitamos a chuva para brincar. Na caixa de som, tocava Don't Look Back In Anger, do Oasis. Essa música é quase um mantra para mim.
Apesar das nossas diferenças gritantes, funcionávamos bem como uma família. Eu sabia que podia contar com eles para qualquer coisa. Até a Giovanna, que é toda fresca, entrou na brincadeira e se molhou conosco. Depois de um tempo, alguns móveis chegaram: uma TV, colchões e quatro aparelhos de ar-condicionado. Essa era toda a nossa mobília até o momento.
Resolvi explorar o bairro. Mentira. Minha tia me obrigou a sair para comprar lanche. Andar por um lugar desconhecido é desesperador — basta pegar a rua errada e pronto, nunca mais volto para casa. Dramático? Um pouco.
De repente, levei uma pancada no rosto e minha visão ficou embaçada. Me estabanei no chão como uma mortadela gigante. O que foi que me atingiu? pensei, ainda atordoado. Continuei deitado no asfalto quente, tentando recuperar os sentidos.
A visão turva dificultava minha compreensão do que estava acontecendo. Então, vi uma mão estendida em minha direção. Peguei nela. Fechei os olhos por alguns segundos e, quando os abri, fiquei sem fala. Era o gatinho que eu tinha visto antes. De perto, ele conseguia ser ainda mais bonito. Ele começou a falar comigo, mas confesso que minha atenção estava voltada para outros detalhes.
— Eita, mano! — exclamou o garoto. — Tu tá bem? — perguntou, ainda segurando minha mão.
— Sim. — respondi depois de um tempo, encarando nossa mão entrelaçada.
— Que bom. — disse ele, soltando minha mão, o que me deixou frustrado.
— Mano, desculpa! — pediu uma garota de cabelos longos, quase uma Rapunzel amazônica.
O pedido de desculpas logo virou uma confusão. Ainda estava sob o efeito anestesiante da bolada no rosto, mas consegui entender que a culpa foi da tal Letícia, a moça de cabelos longos.
— Tu chutou essa bola com os dois pés, Letícia! — reclamou um rapaz fortinho, claramente um rato de academia. — Se tu não tivesse dado uma bicuda, eu não ia desviar!
— Já pedi desculpa, abestado!
— Gente, tá tudo bem. — tentei encerrar a discussão, porque minha cabeça latejava.
— Tem certeza? Posso te acompanhar. — disse meu crush, cujo nome eu ainda não sabia, mas estava louco para descobrir.
Se eu vivesse em outro universo e tivesse coragem para fazer qualquer coisa, pularia sobre ele e o lamberia como se fosse um picolé. Além de ser incrivelmente bonito, ele era gentil – se preocupou comigo, um completo desconhecido. Certamente, ele já tinha namorada. Que horror! Pare de olhar para ele, Yuri. Para. Fala alguma coisa. Diz que está bem.
— Estou ótimo! — quase gritei, afastando-me dele.
De repente, um dos rapazes soltou uma piada gordofóbica:
— Eita, que parecia uma peteca batendo na outra! — disparou o rapaz mais velho do grupo, rindo da própria piada, mas foi logo repreendido pelos demais. Eu já conhecia esse tipo de pessoa: sempre fazem piadas para ridicularizar a aparência dos outros.
— Cala a boca, bicho. Que zé ruela! — rebateu Letícia, a menina que me acertou com a bola.
— Lesado. — disse meu príncipe encantado.
— Melhor ficar calado, Vando. — acrescentou, dirigindo-se ao rapaz que havia feito a piada gordofóbica.
— Não afobe. Eu estava só brincando. Desculpa aí, irmão. — Vando bateu no meu ombro e se afastou do grupo.
— Relaxa. — respondi.
Que dia, hein? Além de tudo, ainda teve o comentário do tal Vando. Mas, sinceramente, não foi nada comparado a outros apelidos que já ouvi: Rolha de poço, Baleia, Bolha Assassina, Gordão, Majin Boo... esses já são quase comuns para mim.
Graças a Deus, pelo menos eu podia contar com uma coisa: comida. Nossa, a comida me fazia esquecer de todos os problemas.
Segui meu caminho e encontrei uma pequena padaria chamada Doce Horizonte. Tão charmosa! Acho que o tema do estabelecimento era Mundo Encantado, pois tudo remetia aos contos de fadas. Entrei e me deparei com uma infinidade de delícias, todas esperando por mim.
A dona do local logo se apresentou. Chamava-se Helena, uma mulher gordinha e de jeito delicado, que parecia escolher cada palavra com muito cuidado. Comentei que era novo no bairro e que ainda estava conhecendo os estabelecimentos.
— E o que você vai querer? — perguntou.
— Sete pães, três salgados de queijo, três sonhos e quatro fatias de pizza. — pedi, enquanto examinava as opções na vitrine.
— Égua, sua família é maceta, né? — disparou a mulher, surpreendendo-me.
— Sim. Demais. — respondi com um riso amarelo.
Cheguei em casa, entreguei os pães para a minha tia e comi o resto. Sim, podem me julgar. Não ligo. A comida me fazia esquecer os problemas — era como uma droga, uma droga deliciosa. Espero não encontrar a turma da rua por um bom tempo... Acho que virei motivo de chacota para todos.
A semana seguinte foi de adaptação, mas enfrentar aquele calor era impossível. Minha tia começou a trabalhar, e a responsabilidade de cuidar da casa caiu sobre mim. Para completar, os móveis novos chegaram. A parte de montar foi a mais difícil — aqueles manuais de instrução pareciam escritos em uma língua extinta.
— A gente não deveria montar isso lá dentro? Estou derretendo! — perguntou Giovanna, fingindo estar à beira de um colapso.
— A furadeira deixa tudo sujo. E para de drama, já estamos terminando. — a repreendi, percebendo a encenação.
— Giovanna, posso colocar fogo no teu cabelo? — perguntou Richard, segurando um maçarico com um brilho perigoso nos olhos.
— Mete esse negócio no teu...
— Ei! — interrompi antes que minha irmã completasse a frase e tomei o maçarico da mão dele. — Já conversamos sobre você segurar esse tipo de material. — Depois, lancei um olhar sério para Giovanna. — E cuidado com essa boca.
Meus irmãos tinham personalidades bem distintas. Como o mais velho, eu precisava dar o exemplo — nem sempre conseguia. Na verdade, nunca foi fácil. Minha tia Olívia tentava, mas não tinha jeito para dona de casa. Sem julgamentos. Ela nunca reclamava, mas eu sabia que era exaustivo para ela cuidar de três crianças e ainda trabalhar. Então, eu mesmo resolvia a maioria dos problemas.
Faltava apenas encaixar a última parte do móvel, mas eu não conseguia de jeito nenhum. Giovanna já estava impaciente — e, claro, me estressando junto. Foi quando ouvi uma voz familiar. Virei e encontrei meu crush parado na mureta de casa.
Ele sorriu. E que sorriso.
— Oi. — Giovanna cumprimentou o rapaz, animada. — Quem é você?
— Sou José Eduardo, mas pode me chamar de Zedu. — respondeu ele, com um sorriso que poderia iluminar o mundo.
Zedu. Então esse era o nome do meu príncipe encantado manauara? Bom saber.
Ele tinha uma beleza natural que dispensava esforços — pele morena, olhos vivos e expressivos, cabelo bagunçado do jeito certo. Seu corpo era magro, mas atraente, e ele pulou a mureta com uma facilidade impressionante. Expliquei o que estava fazendo e, sem hesitar, ele se ofereceu para ajudar. Giovanna, esperta como sempre, rapidamente entregou todas as ferramentas para ele.
— Por favor, monte a prateleira. Ela vai ficar na sala, mas não faz muito barulho. — pediu Giovanna, antes de sumir para dentro de casa.
— Não liga para ela. Meio biruta, coitadinha. — tentei minimizar o estrago do furacão Giovanna. Depois, olhei para Richard, que ainda segurava o maçarico. — E você, entra e vai tomar um banho.
— Posso levar o maçarico para o banheiro? — perguntou ele, como se fosse a coisa mais normal do mundo.
— Só sobre o meu cadáver. Vai... agora! — ordenei.
Fiquei sozinho com o Zedu. Tentava buscar na minha mente opções de conversas casuais para ter com o crush, mas não encontrava nada. Por sorte, ele era um cara bem descontraído e, em pouco tempo, já estávamos falando sobre todos os assuntos possíveis.
Infelizmente, como toda felicidade na minha vida dura pouco, a Giovanna saiu desesperada avisando que o banheiro estava pegando fogo. Zedu e eu entramos na casa e vimos fumaça saindo pelas frestas da porta. Num ato rápido, ele deu um chute e derrubou a porta. No meio da fumaça, encontrei Richard desmaiado. Peguei-o no colo enquanto Zedu usava a ducha higiênica para apagar o fogo.
Meu irmão teve a brilhante ideia de colocar fogo na cortina do banheiro com um maçarico. Precisei ligar para os bombeiros e solicitar uma ambulância. Graças a Deus, nada grave aconteceu — Richard apenas inalou muita fumaça, e o banheiro não ficou tão danificado.
Minha tia chegou furiosa. O Zedu até tentou me ajudar, mas acabou ouvindo um belo sermão junto com a gente. Lá estávamos nós: Zedu, Giovanna, Richard e eu, sentados no sofá, ouvindo tudo o que minha tia tinha para dizer. Segundo mico na frente do Zedu. Alguém está contando?
— Deixo vocês sozinhos por cinco horas e vocês colocam fogo na casa?! — percebi o nervosismo na voz da minha tia, mas aquilo me deixou chateado.
— Tia, foi muito rápido e...
— Você era o responsável, Yuri. E se tivesse acontecido algo? — ela me cortou.
— Não aconteceu, tá?! — gritei, me levantando. — Eu não deixei nada acontecer! Se a gente estivesse no Rio de Janeiro, nada disso teria acontecido. — Encarnei o lado dramático da Giovanna e saí da sala.
— Chocada. — cochichou Giovanna para Zedu.
— Ele tá bravo. — meu irmão confirmou o óbvio.
— Pois bem. — minha tia disse, recompondo-se e indo até Zedu. — Meu jovem, obrigada pela sua ajuda, mas agora você pode ir.
— A senhora pode falar para o Yuri que mandei um abraço? — ele pediu, levantando-se do sofá e saindo de casa.
— Claro.
Levei uma bronca desnecessária. Sorte que Richard ficou duas semanas de castigo. No meu quarto, descontei toda a frustração na comida. A tia Olívia não tinha o direito de brigar comigo na frente dos outros, principalmente do Zedu. Naquela casa, sempre fui tão responsável quanto ela. Queria gritar, chorar e ir embora. A comida era minha única amiga.
Em casa, tínhamos uma regra clara: não podíamos ficar muito tempo com raiva uns dos outros. Naquela noite, tia Olívia bateu à porta do meu quarto. Tive que esconder os pacotes de doces que estava comendo. Após o susto, me recompus e a deixei entrar.
— Desculpa, meu amor. Mas imagina que você está no trabalho e recebe uma ligação dos bombeiros falando sobre um incêndio na sua casa. — Ela disse, me abraçando.
— Tudo bem, tia. — respondi, mesmo sabendo que nada estava bem.
— Não, não está. Eu sei como você é cuidadoso com seus irmãos, principalmente com o Richard. — Ela disse, fazendo carinho na minha cabeça.
— Eu sei, tia. Eu cuido. Foi só um minuto e... — Por algum motivo, o lado sentimental tomou conta de mim, e as lágrimas escorreram pelo meu rosto.
— Ei, nada demais aconteceu. — minha tia tentou amenizar a situação com um abraço carinhoso.
Não muito longe dali, Zedu se encontrou com seus amigos. Eles costumavam se reunir em uma lanchonete, onde conversavam e passavam o tempo. O grupo era composto por quatro pessoas:
Zedu – O líder do grupo. Sempre inventava novas ideias para a diversão dos amigos. Gostava de música, futebol e judô.
Bruno – Melhor amigo de Zedu, conhecido como Brutos devido ao seu porte físico. Não era muito inteligente, mas tinha um bom coração.
Letícia – A bela do grupo, mas nem ouse dizer isso para ela. Além de bonita, era ótima em esportes e uma verdadeira moleca.
Ramona – A mais tranquila do grupo. Sempre acompanhava os amigos, mas evitava esportes radicais.
Parece que o incêndio na minha casa se tornou notícia no bairro. Os amigos de Zedu já sabiam de todos os detalhes. Ele ficou pensativo com tudo o que aconteceu e se perdeu em seus próprios pensamentos.
— Zedu! — chamou Brutos, estalando os dedos na direção do amigo. — O cara tá viajando. Geralmente, esse é o papel da Ramona.
— Não se faz de leso, Brutos. — respondeu Ramona, mostrando o dedo do meio para ele.
— Oi? O que foi? — perguntou Zedu, despertando.
— Estamos falando da casa que pegou fogo. — informou Letícia, roubando uma batata frita de Ramona.
— Foi um incêndio pequeno no banheiro, nada demais. — explicou Zedu de forma casual, surpreendendo os amigos.
— Você tava lá?! — perguntaram os três em coro.
Zedu contou tudo o que aconteceu na casa número 23 da Rua das Andorinhas. Os amigos ouviram atentos. No meio da conversa, apareceu Vando, o cara que praticava bullying comigo. Ele era mais velho e conhecido no bairro por aplicar pequenos golpes nas pessoas.
— Olha só, se não é o Quarteto Fantástico. — disse ele, sentando-se ao lado de Ramona, que imediatamente se afastou.
— Se não é o sem noção. — alfinetou Letícia. — Gente, preciso ir. Amanhã tenho que passar no posto de saúde. — avisou antes de sair.
— Brutos, lembra que precisamos ir à casa da sua tia? Vamos. — disse Ramona, praticamente arrastando o amigo com ela.
— Espera, Ramona! — disse Brutos, indo embora com a amiga.
— Beleza, moleque. — Zedu cumprimentou Vando. — Vou nessa também.
— Até depois, carinha. — murmurou Vando, esperando Zedu se afastar e prometendo vingança. — Esses fuleiros estão perdidos!
Infelizmente, o mundo não é feito só de pessoas boas. Minha ida para Manaus seria uma aventura sem precedentes. Descobriria amores, amizades e desafetos. Será que eu estava preparado para tudo isso? Bem, só o tempo dirá.