Papai e Mamãe,
Saí do Rio de Janeiro para morrer em um assalto no Amazonas. Isso não era justo. Ainda tinha tantas coisas para fazer, como pegar o Zedu, perder 30 quilos e talvez até ganhar um Prêmio Nobel da Paz. O que será dos meus irmãos? E da tia? Isso não podia ser verdade. Não!
***
— Leve o que quiser, mas, por favor, não me mate! — supliquei, erguendo as mãos em rendição.
Puta merda! Por que nunca me dei ao trabalho de aprender artes marciais? Será que conseguiria assimilar alguma técnica em um minuto? Talvez eu possa derrubá-lo e sair correndo para chamar a polícia... Quem eu quero enganar? Não tenho nem metade da agilidade necessária para isso. Além do mais, estou encurralado contra uma parede, sem nenhuma rota de fuga.
O motoqueiro continuava acelerando a moto no mesmo lugar, sem intenção aparente de avançar. O barulho do motor roncava alto, ecoando na rua deserta. Meu coração batia tão forte que parecia prestes a explodir dentro do peito. Foi então que, do nada, um grupo de garotos apareceu. Eles começaram a rir, apontando para mim como se eu fosse a atração principal de um espetáculo patético.
Entre eles estava Vando, o idiota sem noção que nunca perdia a chance de fazer piadas gordofóbicas. O imbecil segurava o celular na mão, filmando tudo com um sorriso malicioso no rosto. Sua risada exagerada tornava tudo ainda mais humilhante.
— Achei que um cara desse tamanho fosse mais corajoso! Olha só, o 'cabra' quase mijou nas calças! — zombou ele, mostrando o vídeo para os outros.
— Juro que pensei que ele fosse desmaiar ali mesmo — comentou um garoto que eu nunca tinha visto antes.
— Você precisa ser mais valente, seu rolha de poço! — aconselhou Vando, entre uma risada e outra.
Idiota. Babaca. Nojento. Tudo de ruim que existia dentro de mim parecia querer sair de uma vez só. Mas, ao invés de reagir, engoli o ódio e me afastei dali o mais rápido que pude.
Ao chegar em casa, o ambiente estava vazio, silencioso. Ninguém estava por perto. Joguei a mochila em um canto qualquer e fui direto para a cozinha. Peguei um pacote de biscoitos e preparei quatro sanduíches. Comer sempre foi meu refúgio, minha forma de encontrar algum alívio em meio ao caos.
Subi para o quarto, liguei o computador e vi que Ramona já tinha enviado algumas fotos para o meu e-mail. Passei um tempo analisando as imagens, escolhendo quais imprimir. No meio disso, acabei me pegando admirando o Zedu por um longo tempo. Ele era realmente lindo. Suspirei e, sem perceber, adormeci com o notebook ainda sobre a cama.
***
Na manhã seguinte, acordei cedo para preparar o café da manhã dos meus irmãos. Richard, meu irmão mais novo, era intolerante à lactose, então eu precisava ter cuidado redobrado com sua alimentação. Os médicos recomendavam opções mais naturais, mas fazer com que ele aceitasse qualquer novidade era um desafio quase impossível. Como minha tia já tinha preocupações demais, decidi assumir essa responsabilidade.
O problema? Richard não colaborava nem um pouco. Sempre que eu tentava uma receita nova, ele fazia cara feia, às vezes até cuspia a comida na minha frente. Um verdadeiro pesadelo.
Já Giovanna, minha irmã, era o completo oposto. Ela simplesmente não conseguia viver sem leite e queijo de búfala. E sabe quanto custa isso? Só posso dizer que não é barato. Além disso, ela tinha toda uma rotina matinal digna de uma celebridade. Quando morava no Rio de Janeiro, acordava às cinco da manhã só para se maquiar e preparar os cabelos antes da aula.
Naquele dia, decidi preparar uma crepioca de queijo sem lactose. Para tentar enganar Richard, enchi o prato de frutas — um truque para fazê-lo aceitar algo minimamente saudável. Nos últimos meses, ele perdeu muito peso, e eu precisava encontrar formas de melhorar sua alimentação.
Ele deu uma mordida na banana e, para minha surpresa, sorriu.
— Essa banana tá muito boa — disse, lançando um olhar suspeito para mim.
Cruzei os braços e estreitei os olhos.
— O que você aprontou?
— Nadinha — ele respondeu, franzindo a testa e mostrando os dedos em sinal de juramento.
— Richard, o que foi que você fez? — insisti. — Quebrou alguma coisa? Machucou alguém? Matou um animal inocente? Jogou veneno no reservatório de água do bairro?
— Não, não e não! — exclamou, ofendido. — E, só para constar, aquilo foi uma vez só! Eu não fazia ideia de que água sanitária fazia mal!
Revirei os olhos. Só ele mesmo.
— Na verdade, eu queria pedir uma coisa — continuou ele, ajeitando-se na cadeira. — Eu queria ir até a quadra do parque. O Zedu e os outros disseram que vão treinar hoje.
Soltei uma gargalhada, incapaz de conter a ironia.
— Você? Perto de outras crianças? Nem pensar.
— Qual é! Só hoje!
Enquanto Richard tentava me convencer, Giovanna finalmente deu o ar da graça, entrando na cozinha apenas para tomar seu precioso leite de búfala. Meu irmão não desistia, insistindo na ideia de brincar com meus amigos. Eu merecia um prêmio por aturar esses dois pestinhas diariamente.
Felizmente, Giovanna entendeu meu dilema e resolveu me ajudar.
— Nem pensar! — exclamou, olhando para Richard com um ar de reprovação. — Você já esqueceu o que aconteceu da última vez que tentamos deixar você praticar um esporte?
RIO DE JANEIRO – MESES ANTES
Meu irmão caiu acidentalmente na piscina da escola e, para a surpresa de todos, nadou de uma borda a outra em menos de dois minutos. O técnico da equipe de natação ficou impressionado com o desempenho dele e, sem pensar duas vezes, o convidou para integrar o time do colégio.
Tudo parecia ir bem até um dos campeonatos. Durante a competição, um aluno resolveu mexer com o Richard da pior maneira possível, e o resultado foi um verdadeiro desastre.
— Fala de novo. Anda! Diz na minha cara que eu não tenho mãe! — gritou Richard, com os olhos faiscando de raiva, enquanto segurava o garoto e o afundava na piscina.
— Pelo amor de Deus, Richard! Solta o Jorge! Solta o Jorge! — implorou o treinador, pulando na piscina para separar os dois.
O estrago já estava feito.
MANAUS – ATUALMENTE
— Pobre Jorge... Acho que a família dele até mudou de cidade depois daquele dia — comentei, balançando a cabeça.
Richard, que até então parecia tranquilo, bateu a mão na mesa com força e gritou:
— Eu vou!!!
Olhei assustado para Giovanna, sem saber o que fazer. Nunca tinha visto Richard reagir daquela maneira. Para evitar qualquer tipo de confusão maior, acabei cedendo e permiti que ele fosse. Claro que impus algumas regras, afinal, lidar com Richard solto no mundo era sempre um risco.
Giovanna, sendo Giovanna, se autoconvidou para ir junto. E lá estávamos nós, esperando o cabelo dela secar antes de sair.
No meu quarto, encarei o guarda-roupa, mais uma vez mergulhado no dilema da escolha de roupa. Minhas opções eram básicas: camisetas, pijamas, calças e bermudas. No fim, optei por algo leve, já que as tardes em Manaus eram sempre quentes.
Assim que chegamos ao parque, avistei a turma reunida. Para minha infelicidade, Vando também estava lá.
Giovanna, alheia a tudo, levou uma cadeira de praia e logo se acomodou para ler suas fanfics do BTS. Richard, por outro lado, estava radiante. Seus olhos brilhavam de empolgação enquanto pedia para experimentar o slackline — um esporte que consistia em equilibrar-se sobre uma fita elástica esticada entre dois pontos.
Fiquei apreensivo, mas logo descobri que Brutus e Zedu eram campeões da modalidade.
Richard não decepcionou. Ele saltava de um lado para o outro com uma facilidade absurda, como se tivesse nascido para aquilo. O moleque dava um trabalho imenso, mas, por alguma razão desconhecida, ver aquele sorriso enorme estampado no rosto dele fazia tudo valer a pena.
Foi quando Zedu tirou a camiseta.
Droga. Será que ele faz isso de propósito?
O sol realçava o brilho dourado da pele morena dele. Cada gominho daquele abdômen parecia chamar meu nome. Meu Deus... O Zedu era o próprio Tarzan do Amazonas.
— Quer experimentar, Yuri? — perguntou ele, aproximando-se de mim.
Eu estava sentado ao lado de Giovanna e gelei.
— Acho melhor não... Não sou muito de esportes radicais — respondi, torcendo para que ele não insistisse.
— Segura minha camiseta pra mim? — pediu ele, estendendo a peça de roupa.
Engoli em seco e peguei a camiseta, tentando fingir naturalidade, mas surtando internamente. O cheiro era maravilhoso, uma mistura de amaciante e alguma coisa que eu não sabia definir. Eu precisava descobrir que marca ele usava para lavar minhas roupas de cama e dormir sentindo aquele perfume.
— Vamos, grandão! — chamou Brutus, incentivando-me a tentar.
— Valeu... Eu vou depois — menti descaradamente.
Jamais subiria naquela corda. Só de imaginar, já via a cena na minha cabeça: eu subindo, me desequilibrando e derrubando tudo ao redor. Não só seria um desastre total, como provavelmente entraria para os vídeos de vergonha alheia na internet.
O problema é que os meninos não desistiam. Eles continuaram insistindo, e eu já estava ficando sem desculpas.
E, como sempre, Vando resolveu se meter.
— A corda vai arrebentar com esse peso todo! — soltou ele, rindo da própria piada ridícula.
Antes que eu pudesse responder, Brutus se adiantou:
— Telezé, Vando?
Meu coração aqueceu um pouco com a defesa inesperada. Mas não parou por aí.
— Se não quer ajudar, pelo menos não atrapalha, seu tapado — interveio Zedu, meu príncipe encantado, lançando um olhar fulminante para Vando.
Senti meu rosto esquentar.
— Deixa pra lá, gente. Foi só uma brincadeira — tentei aliviar a situação, sem querer que o clima ficasse pesado.
Mas Richard não era tão pacífico quanto eu. Ao ver Vando gargalhar, ele subiu na corda, balançou o mais alto que pôde e, sem hesitar, se jogou em cima do garoto. Os dois caíram no chão com um estrondo.
O impacto, é claro, foi todo em cima de Vando.
Pela primeira vez, ele ficou sem graça.
Richard, surpreendentemente, manteve-se comportado depois disso. Eu imaginava que ele aprontaria alguma outra, mas ele estava focado demais em aprender a se equilibrar. Era raro vê-lo tão empenhado em algo.
Pouco tempo depois, Ramona e Letícia chegaram trazendo lanchinhos. As duas também eram feras no slackline e logo começaram a dar um verdadeiro show, superando até os próprios professores.
Zedu, de repente, sentou-se ao meu lado, completamente suado e quente, e disse:
— Elas aprenderam tudo o que a gente sabe. Somos top demais.
Fingi um sorriso despreocupado, mesmo com meu coração prestes a sair pela boca.
— Eu acredito — brinquei, dando um soquinho no braço dele, tentando disfarçar meu nervosismo.
Por dentro, eu só conseguia pensar em como aquele dia estava se tornando mais intenso do que eu esperava.
No meio da brincadeira, Letícia anunciou, animada, que seus pais não estavam em casa e nos convidou para uma sessão de filmes. Antes que alguém pudesse sugerir algo, Richard, sempre intrometido, se meteu na conversa e disparou:
— Vamos assistir ao Massacre da Foice Sangrenta - Parte 4: Os Comedores de Tripas!
Todos caíram na gargalhada. Era óbvio que esse tipo de filme não era adequado para uma criança.
— Vou pegar o beco, esse menino não é normal — declarou Vando, já se levantando e indo embora.
— Ainda bem que ele se mandou — soltou Ramona, suspirando de alívio. — E não, Richard, esse filme nem tem tanto sangue assim — acrescentou, destruindo as expectativas do meu irmãozinho.
— Eu já desconfiava... A segunda parte é melhor. Tem aquela cena em que o bebê recém-nascido arranca os olhos da própria mãe — comentou Richard, com uma naturalidade perturbadora.
O silêncio que se seguiu foi tão desconfortável que até Giovanna ergueu os olhos de sua leitura de fanfics.
Depois de uma tarde cheia de risadas e momentos inusitados, levei meus irmãos para casa. Como um bom irmão mais velho, preparei um jantar nutritivo para eles... Mentira. Pedi pizza para Giovanna, enquanto Richard preferiu frango com batatas. Depois disso, fui direto para o banho. Se eu ia encontrar meus amigos de novo, pelo menos queria estar cheiroso.
Ao descer, encontrei tia Olívia na sala. Avisei que iria assistir a um filme na casa da Letícia e saí. Ainda estava meio paranoico com a possibilidade de outra brincadeira de mau gosto do Vando, então caminhei pelas ruas do Parque 10 igual a um espião, olhando para todos os lados como se estivesse fugindo de uma emboscada.
A casa da Letícia não ficava muito longe, e encontrei o endereço com facilidade. Era uma bela residência de dois andares — como a maioria das casas naquele bairro. Apertei a campainha e fiquei esperando, certo de que Letícia me atenderia.
Mas, para minha total surpresa, quem abriu a porta foi um verdadeiro deus grego.
— Oi? — ele disse, com uma expressão entediada que, de maneira nenhuma, diminuía sua beleza.
— Oi... A Letícia mora aqui? — perguntei, sentindo um nervosismo absurdo tomar conta de mim.
— Sim. Tu é amigo dela, né? Pode entrar.
O desconhecido abriu espaço para que eu passasse, e só então percebi quem ele era. Leonardo, o irmão mais velho de Letícia, universitário e dono de uma beleza que só podia ser hereditária.
Alto, pele clara, cabelo curto e um tanquinho que faria qualquer um se sentir um mero mortal. Que injustiça, meu Deus. Desculpa, Zedu, mas você tem um concorrente à altura.
Leonardo me levou até o quarto de Letícia.
Ela não estava lá, então me sentei na cama e comecei a analisar o ambiente. O quarto tinha uma decoração neutra, mas cheia de personalidade. Fotografias cobriam quase toda a parede, a maioria delas com nossa turma.
De repente, a porta se abriu.
Letícia entrou desfilando pelo quarto... apenas de sutiã e calcinha.
— Oi, amigo! Chegou cedo! Bom que me ajuda a preparar uns petiscos — disse ela, como se fosse a coisa mais natural do mundo. — Tem pipoca, pão de queijo e acho que até farofa de calabresa.
Enquanto falava, vestiu uma camiseta folgada e um shortinho jeans, sem o menor constrangimento.
— Vamos?
— S-sim. Vamos — respondi, desviando o olhar, completamente atordoado.
Essas pessoas magras e bonitas são tão destemidas. Nunca que eu teria coragem de andar assim pela casa, como se fosse a coisa mais normal do mundo. E, com o calor infernal de Manaus, eles ainda tinham a vantagem de poder andar sem camisa sempre que quisessem.
Ao passar pelo espelho da sala, me olhei rapidamente e me imaginei com muitos quilos a menos. Um sonho distante... Eu sabia que precisava trabalhar muitas questões internas, mas a coragem para começar ainda não existia.
A cozinha da casa de Letícia era espaçosa e bem iluminada. O teto de gesso tinha vários pontos de luz, dando um ar sofisticado ao ambiente.
— Yuri, pega as jarras de suco ali na prateleira? — pediu Letícia, enquanto organizava os lanches.
Fui até onde ela indicou e estiquei o braço para alcançar as jarras, mas elas estavam em um lugar alto demais. Tentei me equilibrar na ponta dos pés, sem sucesso.
De repente, senti uma presença atrás de mim.
Antes que pudesse reagir, um corpo quente se encostou no meu.
Meu coração quase saiu pela boca.
Era Leonardo.
Ele pegou as jarras sem esforço, mas permaneceu ali, perto demais, tempo demais. O atrito entre nossos corpos foi inevitável. O calor subiu pelo meu pescoço, e, para piorar minha situação, senti meu corpo reagir de uma forma nada discreta.
O que diabos estava acontecendo?
Antes que eu pudesse entender ou reagir, ele simplesmente saiu dali como se nada tivesse acontecido. E eu fiquei paralisado.
Infelizmente, aquele momento durou pouco, porque logo a galera começou a chegar.
— Yuri, nossa, parece que viu um visagem! — comentou Ramona, entrando com algumas garrafas na mão.
Eu ainda estava em choque.
— Oi — cumprimentou Zedu, lançando um sorriso divertido na minha direção.
— E aí, grandão! — gritou Brutus, tirando os fones de ouvido. — Opa, foi mal, falha minha.
Foi quando Ramona abriu a bolsa e revelou seu pequeno segredo:
— Trouxe umas bebidinhas que o papai estava guardando... Abafa!
Eles começaram a falar sobre os sabores maravilhosos do álcool, descrevendo cada gole como se fosse uma experiência transcendental. Eu, claro, fiquei completamente perdido no assunto. Não fazia ideia de que existia um vocabulário tão vasto para descrever bebidas alcoólicas.
Zedu, percebendo meu desconforto, sorriu de canto e tentou me incluir na conversa.
— Se nunca bebeu, melhor começar com algo leve. Uma batida de frutas, por exemplo. É docinha, fácil de tomar e não sobe tão rápido.
Assenti, tentando parecer interessado, mas, na verdade, minha mente estava a mil. Ainda não havia processado direito o que acontecera minutos antes. O irmão da Letícia, Leonardo, tinha se esfregado em mim na cozinha. Aquilo era para ser uma provocação? Um acidente? Um jogo?
Precisei de um tempo para assimilar tudo.
— Letícia, posso usar o banheiro?
— Claro! Fica no corredor, segunda porta à direita.
Entrei no banheiro e fechei a porta atrás de mim, soltando o ar que nem tinha percebido estar prendendo. Sentei no vaso fechado, apoiando os cotovelos nos joelhos.
Era a primeira vez que eu beberia álcool. Já estava nervoso por isso, mas o que me deixava ainda mais inquieto era Leonardo. O que significava aquele contato? E por que, diabos, minha mente não conseguia parar de reproduzir a sensação do corpo dele encostando no meu?
Levantei-me e fui até a pia. Abri a torneira e lavei o rosto, na esperança de clarear os pensamentos. Quando ergui a cabeça e me encarei no espelho, respirei fundo.
"Calma, Yuri. Finge normalidade."
Ao sair do banheiro, dei de cara com Leonardo no corredor. O susto foi tanto que travei na hora.
Ele me olhou de cima a baixo, um sorriso malicioso brincando nos lábios. Antes que eu pudesse reagir, ele encostou a mão no meu rosto e disse, sem rodeios:
— Tu é gostoso. Não sabia que minha irmã tinha amigos gordinhos. Eu me amarro em gordinhos.
Senti meu rosto queimar.
— Q-quê?
— Qual tua idade? — perguntou, passando o polegar de leve na minha bochecha.
Minha garganta secou. Meu cérebro parecia ter entrado em curto-circuito.
— E-eu... t-tenho 16 — gaguejei, me sentindo um idiota completo.
— Tenho 17. Não é muita diferença, né?
Antes que eu pudesse entender o que estava acontecendo, Leonardo pegou minha mão e me puxou pelo corredor.
Meu coração disparou.
Quando percebi, já estava dentro do quarto dele.
A porta se fechou, e tudo aconteceu rápido demais. Meu corpo encostou na parede, e antes que eu pudesse protestar — não que eu quisesse — Leonardo me beijou. Mas não foi um beijo qualquer. Foi intenso, firme, cheio de vontade.
Aquele foi o meu primeiro beijo de verdade.
E, de repente, as coisas esquentaram ainda mais. Em um piscar de olhos, Leonardo baixou a calça, e... bem, o resto eu deixo por conta da imaginação de vocês.
Sim, eu fiquei com um homem pela primeira vez. Nunca, em todos os meus devaneios mais ousados, teria imaginado que algo assim pudesse acontecer. O auge da minha existência aconteceu naquela segunda-feira comum.
Infelizmente, o momento foi interrompido de forma abrupta quando Letícia gritou meu nome do andar de baixo.
Leonardo recuou no mesmo instante, como se a voz da irmã fosse um balde de água fria.
— Acho melhor tu ir — disse ele, ajeitando as roupas.
Antes de sair, me olhou nos olhos e, com um tom sério, completou:
— Ei. Se contar pra alguém, eu acabo contigo.
Minha primeira experiência homossexual e minha primeira ameaça de morte, tudo no mesmo dia.
Desci as escadas apressado, tentando manter a compostura, mesmo com o coração ainda acelerado. Quando cheguei na sala, todos já estavam acomodados com copos nas mãos.
Letícia abriu um espaço para mim no sofá, e eu me joguei ao lado dela e de Zedu. Brutus e Ramona se espalharam nas almofadas no chão. O filme escolhido foi "A Noite dos Mortos-Vivos", de 1967.
Mal o filme começou e Brutus já estava exaltado.
— Mulher lesa! Corre! Essa abastada vai morrer! — berrou, quase derrubando a bebida.
Ramona revirou os olhos, pegando um punhado de pipoca e jogando nele.
— Tu sabe que isso é um filme, né? E que ela não tá te ouvindo?
— Vai que ela sente a energia da torcida? — rebateu Brutus, encolhendo os ombros.
Zedu, ao meu lado, se ajeitou no sofá.
— Yuri, quero me esticar — disse, colocando uma almofada no meu colo. — Vou deitar um pouco.
— Tá. Pode encostar sim, mas depois te cobro R$ 10 — brinquei.
Zedu riu e se acomodou, a cabeça repousando no meu colo.
Conforme o filme avançava, meus dedos, sem que eu percebesse, começaram a deslizar pelos fios macios do cabelo dele. Foi um carinho involuntário, juro. Mas quando notei, já era tarde demais para parar. O mais estranho foi que ele não protestou. Pelo contrário, parecia confortável demais para se importar.
Do outro lado da sala, Letícia soltou um grito quando a filha mordeu a própria mãe.
Brutus seguiu xingando os personagens por tomarem decisões idiotas.
E Ramona, já levemente bêbada, começou a chorar por pensar nos pobres animais em meio a um apocalipse zumbi.
Quando o filme terminou, a conversa fluiu de maneira leve e descontraída. Ramona encontrou mais bebidas e começou a servir todo mundo em copos completamente inadequados para a ocasião.
Bebi um pouco mais. O suficiente para me sentir levemente zonzo, mas parei antes de perder o controle.
A conversa continuou até tarde. Entre risadas, histórias aleatórias e teorias absurdas sobre zumbis, senti algo que há tempos não experimentava: liberdade.
Nunca me diverti tanto. Talvez o álcool tenha ajudado um pouco, mas, de alguma forma, aquela noite parecia especial.
Perto das 23h, cada um seguiu para sua casa.
E eu, com a cabeça girando por motivos que iam além da bebida, fui para casa sem saber o que pensar sobre tudo que havia acontecido.
***
No dia seguinte, acordei com uma forte dor de cabeça. A ressaca era implacável, como se um tambor estivesse sendo tocado dentro do meu crânio. Fui direto ao armário do banheiro, peguei um remédio e engoli com um copo d'água gelada, na esperança de aliviar o incômodo.
Apesar do mal-estar, lembrei-me de que tinha responsabilidades. Preparei o café da manhã para os meus irmãos, tentando ignorar a tontura que me acompanhava a cada movimento. Assim que terminei, voltei para a cama e me entreguei ao sono mais uma vez.
Acordei algumas horas depois para fazer o almoço. Ainda sentia meu corpo pesado, quase como se estivesse preso em uma névoa. A bebida, além da dor de cabeça, também me deixava sonolento. Depois de almoçar, me joguei no sofá e dormi de novo.
Dessa vez, sonhei com Leonardo.
No devaneio, revivia o que tinha acontecido no quarto dele na noite anterior, só que, dessa vez, o desfecho era diferente. Não havia interrupções, nem vozes chamando meu nome. Apenas nós dois, entregues ao desejo.
Acordei ofegante, com a respiração entrecortada.
"Isso não pode estar acontecendo..." pensei, sentindo meu rosto arder.
Mas não era hora para lidar com isso.
Tia Olívia andava cada vez mais atarefada. Seu novo emprego exigia muito dela. Trabalhava com pessoas influentes, carregando sempre um semblante preocupado. A empresa pagava bem, mas as responsabilidades eram proporcionais ao salário.
Naquela noite, ao voltarmos para casa, ela decidiu nos dar uma notícia nada agradável.
— Então, como vocês sabem, esse tem sido um ano atípico para nós — começou, pousando os talheres sobre a mesa e suspirando. — Novo emprego, nova cidade... ainda estamos nos adaptando. E, claro, surgiram gastos além do esperado. Tivemos que comprar móveis, eletrodomésticos... sem contar o carro. Precisamos de um meio de transporte confiável.
Giovanna, que mexia no celular distraída, ergueu os olhos, desconfiada.
— Titia, onde a senhora quer chegar com esse discurso? — questionou, impaciente, cortando-a sem cerimônia.
Tia Olívia hesitou por um instante, como se precisasse tomar fôlego antes de dar a notícia.
— Conversei com alguns pais da empresa, e eles me indicaram algumas escolas...
— Certo. Quais delas? — Giovanna arqueou a sobrancelha. — La Salle? Lato Sensu? Martha Falcão?
Minha irmã e eu já havíamos pesquisado algumas opções de colégios particulares, então ela só esperava confirmar o que já tinha em mente.
Mas a resposta não foi a que esperávamos.
— É uma escola pública — disse titia, fechando os olhos como se já previsse a reação.
Foi o suficiente para instaurar o caos.
Giovanna arregalou os olhos, ficou de pé tão rápido que quase derrubou a cadeira e começou a andar de um lado para o outro, em total desespero.
— A senhora ficou maluca?! Nunca estudei em uma escola pública! — exclamou, gesticulando de maneira dramática. — Minha vida está arruinada! Escola pública?!
— Gio... — tentei intervir, segurando sua mão. — Se acalma.
— Me acalmar?! — ela puxou a mão com força. — Me acalmar?! O mundo está desabando sobre a minha cabeça e você pede pra eu me acalmar?!
Os olhos dela estavam marejados. Foi aí que percebi o quanto aquela notícia realmente a abalara.
— E o dinheiro dos nossos pais?! — questionou, virando-se para tia Olívia com um olhar furioso.
— Está reservado para os gastos com a faculdade — explicou ela, mantendo um tom calmo.
— Faculdade?! — Giovanna riu sem humor. — Eu vou entrar em uma universidade federal, pode ter certeza disso. Mas antes, preciso de uma educação decente! A senhora não entende?! Escola pública tem um ensino horrível! Eu preciso estudar em uma instituição particular. Eu mereço isso! Não sou obrigada a dividir o mesmo espaço com... com pessoas comuns!
— Giovanna, que absurdo! — repreendi, sentindo-me incomodado com suas palavras.
Mas ela não me deu ouvidos.
— Titia, eu sempre fui a melhor da classe! — continuou, quase implorando. — Me destaquei em todas as matérias, faço balé, canto no coral... Eu preciso disso. Eu preciso!
E, com um último olhar indignado, bateu os pés e saiu correndo da cozinha.
Fiquei em silêncio por alguns segundos, processando tudo. Então, soltei um riso amarelo e olhei para tia Olívia.
— Bom... poderia ter sido pior. Ela surta bem mais quando é assunto de viagem. A mudança pro Amazonas que o diga.
Antes que pudéssemos continuar a conversa, Giovanna voltou subitamente, nos assustando.
— Você! — apontou o dedo para mim, os olhos estreitados. — Sabia disso desde o início, né?! Concordou com essa maluquice!
— Giovanna, chega! — levantei um pouco a voz. — Não diga nada que vá se arrepender depois.
A discussão se estendeu por mais algum tempo. Melhor dizer que debatemos, soa mais civilizado. Mas, no fim, chegamos a um acordo: buscaríamos uma escola particular mais acessível para Giovanna e Richard. Eu ficaria em uma escola pública, só precisaria encontrar alguma que aceitasse matrículas naquele ponto do ano letivo.
Mais tarde, quando a poeira baixou, titia segurou minha mão e disse:
— Obrigada por ficar do meu lado. Sei que isso não te agradou também.
Suspirei, dando de ombros.
— Tia, não gostei, mas não sou burro. Sei que estamos em um momento difícil. As coisas não são mais como antes. Eu vou sobreviver.
Dias depois, saí com meus amigos. Sim, amigos. Soa estranho dizer isso, mas é bom. Finalmente faço parte de um grupo. Ainda estou me acostumando, já que eles vivem relembrando histórias antigas que não fazem sentido para mim. Mas um dia teremos nossas próprias memórias para contar.
Dessa vez, fomos conhecer o Teatro Amazonas.
Era um lugar simplesmente encantador. Uma construção imponente, rica em detalhes, com uma atmosfera quase mágica. Mas, para minha surpresa, o único do grupo que já havia visitado o teatro antes era o Brutus.
— Eu sou chibata, eu sei — gabou-se ele, inflando o peito de orgulho.
— É realmente fascinante... — comentou Letícia, sentando-se em uma das poltronas do teatro e cruzando as pernas. — Dá pra imaginar aquelas madames da época, vestidas com seus vestidos luxuosos, abanando-se com leques...
— Você ficaria linda em um desses vestidos — brinquei, rindo da encenação dela.
— E a gente de terno, hein? — acrescentou Zedu, pensativo. — Nesse calor dos infernos...
Olhei para ele e percebi um brilho diferente em seu olhar. Não sei se era pela grandiosidade do teatro ou se havia algo a mais ali.
O Teatro Amazonas é realmente uma obra-prima. Sua arquitetura imponente e a atmosfera carregada de história nos transportavam para outra época. Durante a visita guiada, ficamos fascinados com os detalhes preservados da decoração original, que remetiam ao período áureo da borracha.
O guia nos contou algo impressionante: a cúpula do teatro é formada por 36 mil peças de cerâmica, todas em tons que representam as cores da bandeira do Brasil. Cada detalhe, cada ornamento carregava consigo um pedaço da história, e o mais curioso era que grande parte da infraestrutura do teatro foi importada da Europa, um reflexo da influência estrangeira na época da construção.
Entre os artistas que já pisaram naquele palco estavam grandes nomes da música mundial, como o tenor José Carreras, Roger Waters e até as bandas Spice Girls e The White Stripes. No cenário nacional, ícones como Heitor Villa-Lobos, Milton Nascimento, Ana Botafogo e Bibi Ferreira também haviam se apresentado ali. Saber que tantas lendas haviam passado por aquele mesmo espaço tornava tudo ainda mais mágico.
Depois da visita, seguimos para o Largo de São Sebastião, uma praça charmosa que integra o espaço do Teatro Amazonas. Nos sentamos em um dos bancos, pedimos uma pizza e deixamos o tempo passar enquanto conversávamos sobre qualquer assunto que surgisse.
Durante o papo, acabamos nos conhecendo melhor. Meus amigos fizeram perguntas sobre minha vida, e eu, curioso, também quis saber mais sobre eles. Foi assim que descobri que Letícia já quebrou o braço andando de bicicleta, Zedu tem pavor de dormir no escuro, Ramona é uma fã incondicional da Turma da Mônica, e que Brutus, apesar da aparência de brutamontes, toca piano incrivelmente bem.
Em determinado momento, joguei uma pergunta no ar:
— E sobre a escola de vocês? Como é lá?
Zedu sorriu e respondeu:
— Fica bem aqui perto. Quer dar uma passada na frente?
Ele já tirava dinheiro da carteira, pronto para pagar a conta.
O nome da escola era Dom Pedro II e ficava bem em frente a uma bela praça. O prédio chamava a atenção pela imponência; sua arquitetura lembrava algumas escolas antigas do Rio de Janeiro, com uma fachada robusta e janelas altas. Ao lado, havia uma quadra esportiva que, embora aparentasse estar um pouco desgastada pelo tempo, ainda era bastante utilizada. De acordo com meus amigos, aquela era uma das melhores escolas públicas da cidade.
E, pela primeira vez, comecei a considerar a ideia de estudar lá.
***
A semana seguinte passou voando. Literalmente.
Graças ao pai da Ramona, que conhecia a diretora da escola, consegui uma vaga no Dom Pedro II. No entanto, antes de oficializar minha matrícula, precisei fazer uma avaliação para comprovar que estava no nível adequado. Para mim, aquilo não foi um problema; os conteúdos já haviam sido revisados na minha antiga escola, então passei sem dificuldades.
Se, por um lado, minha situação escolar estava resolvida, por outro, o assunto "escola particular mais barata" ainda era motivo de tensão dentro de casa.
A insistência da minha irmã em não estudar em uma escola pública levou a uma discussão acalorada entre ela e tia Olívia. Como eu soube disso? Simples: encontrei Richard encolhido debaixo da mesa com um olhar assustado.
Respirei fundo e fui até o quarto da titia. Encontrei-a sentada na cama, pensativa, o olhar fixo no nada.
Sentei-me ao lado dela e quebrei o silêncio:
— Dia difícil?
Ela suspirou e passou a mão pelos cabelos.
— Eu não sei mais o que fazer...
Hesitei por um momento, mas sabia que precisava contar a ela.
— Tia, eu fiz algo sem te consultar.
Ela me olhou com uma expressão apreensiva.
— O quê, Yuri? — franziu a testa. — Fez um piercing? Uma tatuagem? Entrou para uma banda e vai sair em turnê pelo Brasil?
Ri da reação exagerada e balancei a cabeça.
— Não, nada disso. — Respirei fundo. — Eu me matriculei na escola dos meus amigos. Fica no centro da cidade. O ensino é bom, e o melhor: não tem mensalidade. Com isso, a gente pode investir em uma escola particular para o Richard e a Giovanna.
O silêncio pairou no quarto. E então, reparei que a porta estava entreaberta.
Giovanna estava ouvindo tudo.
Antes que eu pudesse dizer algo, senti os braços de titia ao meu redor. Ela me abraçou forte, emocionada.
— Obrigada, meu filho... — murmurou.
A verdade é que eu quem deveria agradecer. Desde que tudo desmoronou em nossas vidas, ela foi a única que segurou as pontas, manteve nossa família unida e lutou para que nada nos faltasse.
Mostrei para ela algumas opções de escolas particulares que haviam sobrado de nossas pesquisas anteriores. Depois de analisarmos juntas, escolhemos uma que oferecia um ensino de qualidade e que cabia no orçamento.
— Essa aqui tem uma boa grade curricular e o valor não é tão alto... — comentei, mostrando a tela do celular para ela.
Titia suspirou e assentiu.
— Vou precisar mexer um pouco na sua parte do dinheiro, Yuri... mas prometo repor aos poucos.
— Pode usar o que for preciso, tia. O importante é resolver isso de uma vez.
Ela sorriu com gratidão, e naquele momento, tive certeza de que tudo ficaria bem.
— Amanhã marco uma reunião com a escola e peço para o Zedu me levar — garanti, já organizando tudo mentalmente.
Levantei-me e dei um beijo na testa dela.
— Agora, vou ver como está a fera indomável.
Ela riu, e pela primeira vez em dias, pareceu um pouco mais aliviada.
Eu respirei fundo antes de girar a maçaneta do quarto de Giovanna. A porta rangiu levemente, como se reclamasse da minha intrusão. Ela estava deitada na cama, de costas para mim, fingindo mexer no celular. Sabia que ela não estava prestando atenção na tela. Era só uma forma de evitar encarar o mundo, ou melhor, evitar encarar a si mesma depois daquela cena com a tia Olívia.
— Precisamos conversar, Giovanna. — Minha voz saiu mais firme do que eu esperava. Eu não queria ser duro, mas sabia que, com ela, não adiantava ser mole. Ela era teimosa demais para ceder a qualquer coisa que não fosse direta.
Ela se virou de lado, os olhos vermelhos e o nariz inchado já me diziam o que eu precisava saber. Chorando. Sempre chorando quando as coisas não saíam do jeito dela.
— Yuri, eu não... — Ela tentou falar, mas eu a interrompi. Não era hora de desculpas vazias.
— Não, mocinha. Vai me ouvir. — Sentei na beirada da cama, o colchão afundando levemente sob meu peso. — Fiquei muito decepcionado com a sua atitude sobre a questão da escola pública. O que foi aquilo?
Ela evitou meu olhar, os dedos dela brincando nervosamente com a capa do celular. — Eu não sei. Fiquei com medo da opinião das minhas amigas.
Eu suspirei, tentando manter a calma. Medo das amigas? Era sempre a mesma desculpa. Giovanna era tão preocupada com o que os outros pensavam que esquecia de quem realmente importava. — E era preciso tratar a tia Olívia desse jeito? Você sabe que se não fosse por ela a gente estaria em um orfanato, né?
Ela não respondeu. Apenas baixou a cabeça, e as lágrimas começaram a cair de novo. Eu odiava vê-la assim, mas sabia que precisava dizer aquilo. Tia Olívia não merecia ser tratada como ela tinha feito. Ela era a única razão pela qual ainda tínhamos um teto sobre nossas cabeças e comida na mesa.
— Olha, nós não somos melhores ou piores que ninguém. — Minha voz ficou mais suave, mas ainda firme. — Depois que você se recompor, por favor, peça perdão a titia.
Deixei ela chorando. Saí do quarto e fechei a porta com cuidado, mas o peso daquela conversa ainda estava em meus ombros. Eu odiava ter que ser assim, tão ríspido, tão direto. Mas era o que funcionava com meus irmãos. Eles eram todos tão geniosos, tão cheios de opiniões fortes e impulsos que não conseguiam controlar. E, infelizmente, cabia a mim educá-los.
Às vezes, eu me perguntava como tinha acabado nessa posição. Eu não era o mais velho, mas era o que eles olhavam quando precisavam de alguém para resolver as coisas. Talvez porque eu fosse o mais paciente, ou talvez porque eu fosse o único que ainda tentava manter a paz naquela casa cheia de personalidades explosivas.
Mas, mesmo assim, eu odiava isso. Odiava ter que ser o chato, o que sempre tinha que chamar a atenção, o que tinha que ser duro quando todos só queriam desabafar. Mas era o que eu tinha que fazer. Por eles. Por nós.
Enquanto descia as escadas, ouvi o som abafado do choro de Giovanna vindo do quarto. Eu sabia que ela ia se recompor. Ela sempre se recompunha. E, no fundo, eu sabia que ela ia pedir desculpas à tia Olívia. Mas, por enquanto, eu deixava ela chorar. Às vezes, as lágrimas eram necessárias para limpar a alma.
Eu só esperava que, um dia, eles entendessem que tudo o que eu fazia era por amor. Porque, no fim das contas, éramos tudo o que tínhamos.
***
Tia Olívia estava tentando. Eu percebia seu esforço diário, mas, ao mesmo tempo, era evidente que algo dentro dela não ia bem. Carregava uma exaustão silenciosa, como se sustentasse o peso do mundo sozinha.
Talvez o que lhe faltasse fosse um pouco de vida social. Amigos, distrações, até mesmo um namorado... Alguém com quem pudesse compartilhar seus dias, além das preocupações com o trabalho e conosco. Sua rotina se resumia a um ciclo fechado: casa e trabalho, trabalho e casa. Nada além disso.
Eu torcia para que ela encontrasse não apenas estabilidade profissional, mas também sorte no amor. Ela merecia. Agora que estava bem estabelecida na carreira, talvez fosse hora de abrir espaço para si mesma.
A empresa onde trabalhava ficava perto de casa, o que lhe permitia passar mais tempo conosco, mesmo que, muitas vezes, ela estivesse cansada demais para qualquer outra coisa além de cuidar das nossas necessidades. Recentemente, um pequeno alívio surgiu em sua rotina: pela primeira vez, ela contava com um estagiário para ajudar no escritório.
Carlos era um homem um pouco mais velho que os estagiários comuns, pois estava retomando os estudos para realizar seu sonho de se formar em direito. Era discreto e trabalhador, sempre solícito no serviço.
Naquela tarde, enquanto tia Olívia organizava alguns papéis sobre sua mesa, Carlos entrou em sua sala com uma pilha de documentos em mãos.
— Boa tarde, Olívia — saudou ele, depositando os papéis com cuidado sobre a mesa.
— Olá, Carlos — respondeu ela, sem levantar os olhos de um relatório.
Ele hesitou por um instante, ajeitando a gola da camisa antes de continuar:
— Então... Hoje o pessoal do escritório vai fazer um happy hour depois do expediente. Quer ir?
A pergunta foi feita de forma casual, mas havia um tom esperançoso em sua voz.
Tia Olívia ergueu o olhar, pegando-o um pouco de surpresa.
— Não sei... Meus sobrinhos estão em casa e...
Antes que ela pudesse terminar, Carlos a interrompeu com naturalidade:
— Eles não podem ficar com a mãe deles?
O silêncio que se seguiu foi constrangedor. O olhar de tia Olívia endureceu no mesmo instante.
— Ela faleceu, Carlos — disse, sua voz carregada de um tom cortante. — Então, eu sou a mãe deles.
O estagiário empalideceu.
— Er... Nossa. Me desculpe — balbuciou, claramente arrependido. Ele coçou a nuca, desconcertado, antes de dar um passo para trás. — Não foi minha intenção...
Sem esperar mais, virou-se e saiu da sala apressado, deixando um clima pesado no ar.
Será que um novo interesse amoroso estava surgindo na vida da tia Olívia?
Honestamente, eu esperava que sim.
Ela nunca se questionou sobre suas responsabilidades em relação a nós. Nunca hesitou, nunca cogitou outra opção. Simplesmente nos acolheu como filhos e nos protegeu de todas as formas possíveis. Mesmo diante de tantas dificuldades, nunca deixou que nos sentíssemos um fardo.
Por isso, eu fazia questão de tentar apaziguar qualquer discussão entre ela e meus irmãos. Eu via o esforço dela. E agora, via também sua solidão.
No fim do expediente, quando todos já haviam saído, tia Olívia ficou sozinha em sua sala. O escritório estava silencioso, iluminado apenas pela luz amarelada da luminária sobre sua mesa.
Ela pegou uma fotografia que sempre deixava ali, uma imagem nossa, tirada em um dia feliz. Passou os dedos sobre a moldura, como se quisesse sentir a presença da irmã que havia partido. Um suspiro escapou de seus lábios antes que as lágrimas finalmente viessem.
— Eu estou tentando... Eu juro que estou tentando... — murmurou, apertando a foto contra o peito.
Fechou os olhos, permitindo-se chorar em silêncio.
— Eles são tão especiais... Mas será que eu dou conta? Será que estou fazendo certo?
A dúvida ecoou no vazio da sala, sem resposta.
E, por um breve momento, mesmo sem ninguém para ouvi-la, ela se permitiu ser vulnerável.
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