“Por que será que tem que ser assim; A gente gosta, a gente ama, a gente muda...” (Não vou chorar, Chiclete com Banana).
...
As horas progrediram normalmente. Perto do frenesi do dia anterior, o período beirava o tédio. Confirmei a disponibilidade de Flávio e, logo em seguida, liguei para o restaurante. Pedi a Rebeca que me avisasse discretamente quando o entregador chegasse, e já deixei o valor separado em suas mãos.
Mais tarde, Adriano enviou uma mensagem sobre a sua chegada. Pedi que fosse direto para o último andar me encontrar. Aproveitei outra reunião da minha sócia com um grupo de atendimentos e persisti com a ideia do meu sumiço temporário.
Fora o horário de almoço ou eventos casuais, aquele espaço era bastante subaproveitado. Como o prédio não era relativamente novo, intuí que a área não foi devidamente planejada. Ainda assim, era um lugar agradável. Alguns minutos após o seu aviso, o barulho da engrenagem do elevador anunciou a chegada de Adriano, que espreitava os olhos por causa da forte claridade. Assoviei para reforçar onde estava e ele veio ao meu encontro na sacada:
- Uau! De dia, a vista impressiona! – apoiou os braços no parapeito.
- Esqueci completamente que você já esteve aqui – divaguei se não teria sido cruel reviver uma primeira lembrança ruim e lamentei a minha falta de noção.
- Pois é. Antes queria me matar, agora fica querendo me beijar... – não escondeu uma risada sincera, e seu rosto voltou a ficar vermelho.
O joguinho “morde e assopra” dele às vezes me deixava intrigado. Por mais que achasse encantador, procurava agir de forma respeitosa, pelo menos até sentir algo mais concreto entre nós. Continuei sem dar muita bola:
- Desculpa, não queria relembrar aquele dia... – estava encabulado.
- Para com isso. Não enxergo aquela festa como algo esquecível. Querendo ou não, graças ao Gustavo e a esse lugar, tive a chance de reencontra-lo.
A retrospectiva me deixou mais sério, e o meu acompanhante percebeu:
- O que foi? Falei algo que não devia?
Aproveitei a calmaria e comecei uma breve sessão de alertas e precauções:
- Ontem tive uma conversa com o Gustavo.
- Sobre o que?
- Ele sabe que eu conheci alguém, a irmã deixou escapar.
- Hum... – parecia surpreso, arqueando as sobrancelhas.
- Ainda não falei sobre você exatamente. Ele pareceu um pouco chateado por ter ficado de escanteio, mas já deixamos tudo em pratos limpos. Quer dizer, quase tudo.
- Isso é bom ou ruim?
- A verdade é que não faço ideia. Tenho medo de achar que estava mentindo ou querendo engana-lo, preciso me aprofundar melhor em como abordar o tema.
- Entendo... Não tenho intimidade suficiente para dizer que conheço alguém próximo a ele. Enxergaria um pouco de intromissão da minha parte. Não conversamos tanto assim.
- Se por acaso, algum dia, ele parecer diferente ou inquisidor demais, releve...
- Acho que não tem motivo para nenhum estranhamento ou necessidade de mentir. Mas o amigo é seu, prefiro que decida.
Estava pensativo, queria que as coisas realmente voltassem a funcionar. Não poderia ficar adiando, e às vezes me sentia mal por achar que não estava zelando pelas minhas amizades. Tenho uma estranha mania de querer agradar a todos, e isso frequentemente parece me sufocar. Além disso, interpretava que a situação poderia, em partes, prejudicar Flávio. As pessoas à minha volta importavam, e muito. Elas estavam acima de qualquer discussão ou ideias contra indivíduos de má índole.
O papo e a reflexão foram cessados pelo toque do meu celular. Era Rebeca, que anunciava a entrega das pizzas. Agradeci e pedi para comunicar a Flávio, que saberia aonde leva-las. Chamei Adriano para sentarmos numa espécie de varanda onde mantinham algumas mesas arrumadas e, pouco tempo depois, já contávamos com a presença do terceiro integrante:
- Mereço um pedaço extra, só pelo esforço – ele tentava equilibrar as caixas, copos e bebidas – Espero que tenha pedido uma de calabresa.
- Eita! Veio da guerra, foi? – brinquei.
- Quase isso...
Enquanto comíamos, conversávamos amenidades sobre o trabalho. Procurava contextualizar tudo para Adriano, que permanecia ao meu lado, na tentativa de inseri-lo na roda. Abastecidos, começamos a trocar ideias e avaliar possibilidades da melhor forma de chegar ao que seria o provável QG de Cláudio. Tudo parecia fluir perfeitamente. Quando começava a anoitecer, porém, fomos surpreendidos com uma quarta aparição:
- Então é aqui que vocês estão se escondendo, né?
A voz familiar atrás de mim me fez arregalar os olhos e empalidecer. Olhei de soslaio para Flávio, que exibia um sorriso sem graça:
- Guga? Que surpresa é essa?
- Pensei em chama-los pra gente jantar em algum lugar legal! – ele se aproximava mais rápido do que qualquer raciocínio de emergência.
Virei-me para cumprimenta-lo e, respirando fundo, segui para uma curta apresentação. Adriano acompanhou o meu movimento, também ficando de frente para ele:
- Esse aqui é o...
- Adriano? – ele me atropelou, bastante surpreso.
- Oi Gustavo, tudo bem? – procurou agir com naturalidade.
- O que está fazendo aqui? – caminhou para apertar a sua mão.
- Lembra o que te falei ontem? – resumi, presumindo que fosse entender a dica.
- Vocês se conhecem? – Flávio estava intrigado.
- O Adriano é um dos veteranos do curso. Temos alguns amigos em comum – justificou.
- Nossa, que coincidência! – o namorado estava perplexo.
- Demais! – me apressei para entrosar todos – Aceita um pedaço de pizza, Guga? – mudei o assunto e corri para encher um copo de refrigerante – Mais alguém? – o silêncio me incomodava.
- Você tá bem? – Flávio encarava o rosto atônito de Gustavo.
- Não é isso... – ele pareceu acordar de um transe – Jamais imaginaria que... – e tateava até onde poderia falar algumas coisas.
- Roubei o Flávio para trocarmos uma rápida ideia sobre o andamento ‘daquele projeto’ – frisei pausadamente.
- Acho que não estou entendendo – fitava o colega da faculdade, bastante confuso.
Meu coração estava acelerado, e precisava encontrar o tom certo para não acabar ofendendo ninguém. Adriano permanecia quieto, como se soubesse que parte do seu passado teria que ser revelado.
- Bom... Não existe uma maneira bonita de dizer isso, então serei direto: O Adriano também é uma vítima da Liga do Mal.
- Como assim? – Gustavo estava boquiaberto – Quando?
- Já faz alguns anos – ele sussurrou.
- Não somos os únicos – emendei – Ainda desconhecemos o paradeiro das outras vítimas.
- Mas no dia da festa... Estávamos aqui, e não me disse nada.
- Eu não fazia a mínima ideia, de verdade. Só depois tive coragem de procurar o Augusto para esclarecer as coisas.
- Que loucura! O que fez? Procurou a polícia? Prestou alguma queixa? – enquanto falava, pescou alguns rascunhos em cima da mesa e ponderou – Vocês estão...
- Tá falando dos... Planos? – algumas confissões teriam que chegar mais rápido do que imaginava – Ele sabe de tudo. Estamos aqui reunidos para isso.
- E também está participando? – as circunstâncias pareciam confundi-lo ainda mais.
Adriano evitava falar e já transparecia certa aflição, enquanto perdurava sob a vigília do meu amigo.
- Guga... Senta aí um pouquinho – olhava para Flávio como se suplicasse por uma ajuda – Temos muita coisa para falar, vamos por partes...
Esperei ele se acomodar e, ainda em pé, comecei a recontar parte da saga. Aquilo já estava ficando um pouco cansativo. Prometi a mim mesmo que aquela seria a última vez que repetiria a cronologia. Ou melhor, o que importava dela. Resumi o máximo que pude: a conversa após a festa da firma, a posterior descoberta dos vídeos, o fato de ele também tentar juntar provas... Só o essencial e tudo da forma mais lúdica possível.
A mente mais racional do time tentava encaixar tudo perfeitamente de acordo com o que a sua memória permitisse. Por motivos óbvios, procurei omitir alguns detalhes, como o flerte no carnaval e o embate desastroso na garagem do prédio da empresa. Seriam informações desnecessárias para o contexto.
Assim que concluí a rápida explanação, já encadeei com a investigação sobre Cláudio e em que fase nós estávamos. Só então me permiti sentar e tentar relaxar. Os dois universitários permaneciam frente a frente, em total comedimento: Gustavo com um olhar inquieto, cheio de dúvida, e Adriano ansioso, sem saber o que viria a seguir. Flávio começou a retomar o raciocínio e principal propósito daquele encontro, mas fomos interrompidos pelo seu par:
- Espera um pouco... Onde se conheceram mesmo? Aqui? – ainda tentava encaixar peças de um quebra-cabeça – O Adriano saiu mais cedo e teve uma hora que você despareceu...
Prendi a respiração e olhei para o meu companheiro, que assentiu após alguns segundos.
- Não... Foi no carnaval desse ano, lá em Salvador – afirmei.
- Já tem esse tempo todo?
- Nos desencontramos – evitava a todo custo liga-lo à gangue.
- Mas não foi no carnaval que...
- Foi antes desse episódio – me antecipei.
- E porque não continuaram depois? – falava como se tentasse colher mais pistas.
- Que pergunta é essa, Guga? – Flávio o recriminou.
- Deixa... – não me importei com a intromissão – O incidente atrapalhou qualquer outra possibilidade. Você sabe bem qual.
- É que, sei lá, tudo isso é muito estranho – claramente estava com a pulga atrás da orelha – Perdoem-me a sinceridade.
O interrogatório a conta gotas não ia nada bem. Não havia um jeito de florear nada ou tentar ser sucinto. A minha narrativa, de fato, ainda tinha muitos furos:
- Depois do ocorrido com o Adriano, ele se infiltrou no bando, com os mesmos objetivos: tentar incriminá-los. Parecia agir com o grupo, mas não participava de nada.
- Hum... – manteve-se cético.
- Quando ele me reencontrou, não sabia exatamente o que fazer, mas tinha informações valiosas, com as quais poderíamos trabalhar. Foi quando contei o que já tínhamos realizado.
Aquele olhar de quem ainda não estava convencido, como se quisesse armar algum flagra, começou a me irritar:
- Gustavo, seja o que for que esteja querendo perguntar, fale logo – não escondi a inquietação.
- Tudo bem – provavelmente queria ter certeza do que estava prestes a confirmar – Por acaso ele tem alguma coisa a ver com ‘O’ Adriano que está no seu painel de vidro?
Flávio estranhou a indagação e meu convidado fitou a minha expressão, sentindo-se igualmente encurralado. Todos aguardavam a minha resposta:
- Corrigindo: Estava – avancei com desenvoltura – Mas sim, é a mesma pessoa... – e procurava manter as rédeas da situação.
- Aquele que nunca encontrávamos uma pista sequer?
- Sim, esse mesmo – atestei.
- Entendi...
Gustavo silenciou novamente e Flávio, percebendo uma tensão crescente, seguiu com o assunto:
- Bom, vamos lá. Vocês falaram que o Cláudio tem uma moto...
O namorado deu uma breve risada irônica, paralisando-o de novo:
- Desculpa, mas... – virou-se pra mim outra vez – Você tá ficando louco? – disse num tom sério e recriminador.
- Não entendi – franzi o cenho, acuado com o rompante brusco.
- Como não entendeu? É cego? Ele é um deles! – apontou com nervosismo para o colega de curso.
- Gustavo, acho que você precisa se acalmar...
- Que mané calma! É por isso que escondeu isso de mim? – levantou-se aturdido, e elevou o tom – Esse pretexto todo de ‘quero ter certeza’ era para encobrir isso?
Flávio estava assustado com o que acontecia à sua frente.
- Você não me conhece – o alvo renegado retrucou angustiado, afastando um pouco a cadeira.
- Na boa, fica quietinho aí...
- Adriano, não fala nada –tentei tranquiliza-lo para então voltar ao meu oponente – Existe sim uma história que você desconhece, mas preciso que queira ouvi-la.
- Pra que? Você já sabe o que vou dizer! Não tá na cara? Ele vai inventar o que for preciso, vai querer ganhar a sua confiança. Essa verdade só existe na sua cabeça! Quem te garante que isso também não é um plano deles?
- Eu escolhi acreditar.
- Ah, que ótimo! Como a vida é simples, não é mesmo? E quando descobrir a mentira vai fazer o que? Pedir ajuda aos amiguinhos e começar outra vingança?
- Não cabe a você decidir o que devo fazer.
- Claro que não, a sua teimosia é irritante demais para entender isso.
- Não é a minha teimosia que está incomodando a todos. Acha que estamos concordando com o seu espetáculo?
Gustavo ofegava diante de espectadores estupefatos. Ciente de que a postura passara de qualquer limite aceitável, preferiu encerrar a conversa:
- Vamos ver até quando a conveniência dessa historinha saída de um conto de fadas lhe será útil, Augusto. Até lá, me deixe fora disso...
Sem se despedir de ninguém, refez o caminho de volta até o elevador, deixando-nos sem palavras.
- Eu... Foi mal gente, é melhor ir atrás dele – Flávio se adiantou para alcança-lo.
Fechei os olhos, pesaroso. Permanecemos em silêncio, os dois remanescentes, sem saber exatamente o que dizer.
- Não queria te expor dessa maneira, me desculpe. Deveria ter perguntado se estava de acordo... – lamentei.
- Você me disse que se quisesse ir fundo nessa empreitada, ele ficaria sabendo cedo ou tarde do meu envolvimento na história.
- Achei que se soubesse logo, poderia tirar da cabeça a ideia de que estava sendo preterido ou que estávamos esquivando-nos demais.
- Entendo o comportamento dele. Quem sabe quando os ânimos apaziguarem...
- O Gustavo às vezes é bem cabeça dura.
Persisti imóvel e desanimado. Adriano captou meu estado e tentou contornar o cenário:
- Augusto... – parecia reticente – Sei que já falei isso, mas me sinto na obrigação de reiterar. Minhas atitudes talvez tenham sido um pouco duvidosas por não ter impedido o ocorrido com você, e eu realmente não tenho como provar nada sobre o meu envolvimento. Mesmo assim, espero que acredite em mim. Isso não faz parte da minha natureza.
- Essa página já foi virada, e não existem motivos para voltarmos a discutir isso. Vamos em frente, certo?
- Tudo bem – suspirou – E agora, o que acontece?
- Hoje foi um dia e tanto, mas não quero me deixar abater – procurava acalenta-lo – Vamos aproveitar essa pizza, que está boa pra caramba, continuamos a nossa conversa e depois te levo em casa.
Recebi um sorriso tímido em troca e cacei mais uma fatia de quatro queijos na caixa, tentando abstrair todo o ocorrido. Muita coisa precisaria ser reavaliada dali para frente. Concluí que o mais propício a se fazer era aproveitar o que restava de bom daquele momento.
...
Quinta-feira (ou “Quando você se dá conta de que não sabe usar uma máscara de oxigênio em caso de despressurização”):
Foi uma noite melancólica, e a princípio decidi fingir que nada aconteceu. Cheguei cedo à empresa, com cara de poucos amigos, mas tratava todos da forma mais educada possível. Misturar trabalho e projetos particulares, afinal, não foi uma boa ideia. A aparição súbita do irmão da minha sócia não teria acontecido se estivéssemos no meu apartamento. Mas já não adiantava chorar pelo leite derramado.
Logo que cheguei, Flávio entrou na minha sala reforçando a análise da programação que deixara em minha mesa. Mesmo tagarelando, parecia um pouco deprimido. Não sabia se deveria tocar no assunto. Querendo ou não, sentia-me responsável.
- Ah, e aproveitando a passagem por aqui – ele falava sem parar, como se não quisesse oferecer nenhuma brecha – Tomei a liberdade de escolher três nomes que podem funcionar bem com aquele lance do César. São detetives que me indicaram, de confiança. Mandei tudo pro seu e-mail. Dá uma olhada e me fala, tá?
- Flavinho... Para um pouco, respira – interrompi – Você tá bem?
Por um breve instante, me encarou. Dando-se por vencido, sentou na poltrona e passou a mão rapidamente no cabelo.
- Não cara... Não tá? – recostou a cabeça, desestimulado.
- O que houve?
- O Gustavo... A gente teve uma briga feia. Aliás, a nossa primeira.
- Por causa daquela conversa?
- Basicamente, tá sem falar comigo. Não queria ter saído daquele modo ontem, mas precisava entender o que tinha acontecido.
- Esquece... A culpa é minha. As coisas tomaram uma proporção absurda.
- Ele estava irreconhecível!
- Eu deveria prever que ele poderia ter uma reação mais exaltada. No fundo, acho que estava evitando contar porque sabia que seria assim.
- Depois veio jogar na minha cara que eu sabia de tudo, que estava te acobertando, que isso também era criminoso... Enfim, foi bem bizarro.
Escutar aquilo era quase um soco no estômago. Não tinha certeza se as motivações de Gustavo estavam relacionadas com a ligação de Adriano e a Liga do Mal, ou com o que estávamos preparando para o andamento dos planos. Algumas suposições martelavam a minha mente, mas não enxergava uma conjuntura para tira-las a limpo. Gustavo sabia manter certo orgulho, e dificilmente teria uma chance de dizer o que estava pensando sem alguma plateia ao nosso redor.
- Vamos fazer o seguinte – acordei da minha autoanálise – Preciso conversar seriamente com ele, tá? Fica na sua e não diz nada por enquanto, deixe que eu resolva essa situação. É um dever meu.
- Melhor esperar a poeira baixar... Acho que se falar algo, as coisas podem piorar.
- Fui eu quem colocou os dois em maus lençóis. As informações se desencontraram. Esclareço as coisas, vocês ficam tranquilos e tudo se resolve.
Pensei em algumas possibilidades e cogitei pedir a Juliana um momento a sós com o irmão, o quanto antes. Independente do que estivesse afligindo o Gustavo, queria desanuviar a ideia daquele grande mal entendido.
- Obrigado Guto, de verdade – Flávio concluiu – É tudo muito recente entre a gente, mas me dói demais ter que pensar que pode acabar.
- Vai dar tudo certo – assenti.
Reafirmei o compromisso de dar uma resposta sobre o investigador particular que contrataríamos e, logo em seguida, ele se retirou.
“Essa família está me saindo um belo de um problema. Vão ser extremistas assim lá no Afeganistão...”, voltei aos meus afazeres, aborrecido com os últimos acontecimentos.
...
O mar parecia voltar à calmaria após a forte tempestade. Foi um dia bastante comum do meu cotidiano. Aproveitei a oportunidade, e decidi me voltar aos esportes. Cheguei na hora certa para a aula de natação e percebi que o técnico estava agoniado, falando com alguns alunos. Ao notar o meu comparecimento, frisou um ar de apreensão:
- Augusto... Chamei aqui todos antes dos exercícios porque precisarei sair agora. Minha mulher sofreu um pequeno acidente no trânsito, mas precisarei leva-la ao hospital.
- Nossa, ela tá bem?
- Parece que deslocou o braço. Não terei condições de ficar.
- Claro, se precisar de alguma ajuda, posso lhe acompanhar.
-Não será necessário. Estou dispensando todos que estão chegando por ser uma questão emergencial. Caso mais alguém apareça, pode informar para mim?
- Não se preocupe, fico mais um pouco para comunicar a todos.
Olhei ao redor e dois alunos nadavam na piscina, enquanto a maioria recolhia os seus pertences.
- Professor, se importa se me exercitar um pouco?
- Não. O Gustavo e a Bruna me pediram o mesmo – começou a mexer nos bolsos da calça, agitado – Só vou te pedir um favor: deixarei a chave do vestiário na sua mão. Quando terminar, entregue ao segurança para que ele possa fechar a escola, ok? Vou avisa-lo.
- Tudo bem, agradeço – peguei o chaveiro e guardei na mochila.
Enquanto me despia e começava a alongar os braços, observei que ele já se distanciava apressado. Vislumbrei que Gustavo mudara a raia que utilizava habitualmente e, propositalmente, mergulhei ao seu lado. Foram necessárias algumas voltas para que, finalmente, pudéssemos coincidir com o mesmo tempo de descanso entre os exercícios.
- Oi Guga, como você...
Antes que pudesse completar a frase, voltou a nadar, fingindo que estava sozinho. “Quanta infantilidade...”, revirei os olhos. Algumas braçadas silenciosas depois, percebi que a jovem que estava na outra extremidade, tinha encerrado o seu treino e já se enxugava do lado de fora. Em seguida, aproximou-se da borda, sinalizou que estava de saída e se despediu com um aceno, fazendo-me retribuir o gesto. Agora, estávamos a sós na água, eu e o meu (aparente) desafeto.
Não tardou muito e ele também deixou a piscina, sem alarde. Cobriu-se com uma toalha, pegou a bagagem e andou ligeiramente para o banheiro. “Então vai ser assim...”, resmunguei baixinho. Instantaneamente, me veio à cabeça a ideia da conversa a sós, e aquele talvez fosse o momento perfeito para coloca-la em prática. “Ok, vamos encerrar o treino mais cedo. Chegou a hora da verdade...”, dei um último mergulho e peguei impulso com os braços para erguer o meu tronco para fora.
Segui os mesmos passos do “rebelde sem causa” e assim que adentrei o espaço, escutei o chuveiro ligado. Peguei a chave do técnico, tranquei a porta e deixei a minha mochila no banco, próxima à sua. Calmamente, me livrei da touca, dos óculos e... da sunga. Sim, estava decidido a sanar algumas dúvidas que pairavam na minha mente. Comportado, e com a roupa de banho, ele desdenhou da minha presença e progrediu com o banho como se não estivesse ali.
- Vamos ver até quando vai fingir que eu não existo – abri a torneira e comecei a tirar o cloro do corpo.
- Não tenho nada para falar, prefiro ficar na minha – murmurou, começando a se ensaboar.
- Sem problemas. O banheiro está fechado, e ninguém sai daqui até resolvermos tudo. Tenho todo tempo do mundo.
- Até parece...
- Tenta lá!
- Augusto, me deixa em paz! É a única coisa que te peço.
- Depois de tudo o que falou ontem? Sem ao menos me dar uma chance de defesa? Não deixo não...
Ele nada respondeu.
- Hoje, especificamente, só quero entender o que está se passando na sua cabeça. O motivo de estar agindo dessa forma tão... Peculiar.
- Algumas coisas estão fora do seu campo de compreensão.
- Ninguém é perfeito. Quer tentar explicar?
- Não.
- Pare de ser irracional. Ainda sou seu amigo.
- Já achei o mesmo. Não tenho mais essa certeza.
- Poderia repetir a mesma frase, mas continuo com esperanças. Prefiro te dar a chance de uma justificativa plausível.
- Eu que preciso me justificar? Acha que sou algum palhaço?
- Não se acanhe, vamos lá. Vou ajudar: Tá chateado por ser o último a saber, puto com as descobertas ou com ciúmes ?
Sem me dar corda, voltou ao modo “invisível”.
- Sem julgamentos, prometo – perseverava no aguardo.
Impaciente, começou a se enxaguar rapidamente.
- Você ainda sente alguma coisa por mim, Guga? É isso? – insisti.
Ainda mudo, desligou o chuveiro. Antes que pudesse caminhar em direção ao banco, porém, segurei o seu braço.
- Não vou deixa-lo sair até que responda.
- Me larga, Augusto – moveu-se rapidamente – Já disse que não vou falar nada.
Minha paciência também começou a diminuir drasticamente e logo isso ficou bem aparente. Puxei-o com força, encostando-o à parede e segurando os seus punhos na altura do peito. A atitude o deixou assustado.
- Para de agir como um moleque mimado – estava enfurecido – Você ainda sente alguma coisa quando me vê assim? Anda, seja homem!
- Me solta! – ensaiou um grito nervoso.
-Estar com outra pessoa que te deixa revoltado?
Ele se remexia angustiado, tentando ser superior à minha força.
- É porque o Adriano tem quase a sua idade ou porque também faz parte do seu círculo de amizades?
- Vá tomar no cu! – me empurrou com força, ofegando – Qual o seu problema?
- O meu problema? – aproximei-me novamente – Quer saber qual é o meu problema?
À medida que avançava, ele recuava imediatamente.
- Desde que você chegou, eu ficava me podando, evitando demonstrar alguma atração. Passei semanas pensando no que estava sentindo. Fiquei me martirizando depois que quase morreu por minha causa e comecei a me encher de coragem para admitir que talvez houvesse um sentimento. O que eu recebi em troca? Você estava com o meu amigo! – o berro ecoava no recinto vazio – Escondido de mim, debaixo do meu nariz! Bacana, né? Não podia esperar, tinha muita coisa pra viver e me deu um fora. E quer perguntar qual a porra do meu problema?
Meu rosto queimava em ira. Comecei a vomitar frustrações que estavam engasgadas há muito tempo.
- Poderia cortar relações com os dois, ter uma crise de ciúmes, mandar todos à merda. Foi isso que eu fiz? Não! – gritei – Admiti que não era pra acontecer, aceitei o seu tempo, que estava com uma cara bacana e que poderiam ser felizes!
- Isso não vem ao caso...
- Cala a boca! Você só olha pro seu umbigo! – apontei o dedo com raiva – Não sabe o que passei para começar a me permitir, nem faz ideia do momento que tô vivendo. Surgiu alguém sim, e eu comecei a curtir. E daí? Qual o problema? Já não está comprometido?
- Você não o conhece, pode ser perigoso...
- Não é da sua conta! – bradei – Coloque isso na sua cabeça! Se não lhe diz respeito, não há razão para se intrometer! Depois que você começou a legitimar o motivo de estar namorando o Flávio, veio me pedir uma chance de ser feliz. Eu também não posso?
- Não quis dizer isso...
- Mas foi o que transpareceu! Fez questão de me humilhar, julgou uma pessoa que não faz ideia do que superou, deixou o meu amigo sem reação... Quem você pensa que é? Cresça!
- Não sei o que aconteceu comigo, tá bom? Era isso que queria ouvir?
- Não Gustavo, não era isso. Não se trata de você, o mundo não gira ao seu redor. Sempre fiz questão de deixar bem claro que todos à sua volta são como uma segunda família pra mim, mas não vou tolerar esse tipo de conduta. Fui muito sincero ontem quando disse que estou conhecendo alguém e quero que dê certo. Não vou deixar a sua birra atravessar o meu caminho. Entendo a preocupação, mas não vou deixar.
A essa altura, ela já exibia um semblante desolado.
- Encontrei alguém que sofreu o que eu sofri, que prefere não julgar os meus propósitos e se mostrou aberto e disposto a me ajudar. E antes que você ressalte a “conveniência da história” – ressaltei com ironia o que ele tinha falado – Isso não chega perto da principal causa de minha admiração por Adriano. Tá fora do meu e do seu alcance. Conforme-se.
Estava exausto e começando a sentir um grande nó na garganta, mas mantive a firmeza:
- Flávio é um cara especial, sempre de prontidão por você, e obviamente apaixonado. É difícil enxergar isso? – comecei a me tranquilizar mais – Se quiser crucificar alguém, pode me incriminar, beleza? Fui eu quem pediu para manter o segredo, porque queria que partisse de mim conversar sobre isso. Ninguém sabia de nenhum pormenor dessa situação. Então pare de agir como um imbecil e não estrague o seu relacionamento por minha causa.
- Eu quero ir embora – a voz trêmula denunciava que ele estava quase choramingando – Abre a porta do vestiário, por favor.
- Vou deixa-lo sair. Mas quero que saiba que estou assim na sua frente – apontei para o meu corpo desnudo – Porque hoje eu não me importo mais. Foda-se o que sente por mim. É uma coisa que já resolvi, e espero que faça o mesmo. Perdemos o momento, e precisamos reconhecer isso. Acontece, é a vida. Vou continuar sendo seu irmão mais velho, ou amigo confidente, caso queira. Mas até lá, como alardeou ontem, é melhor mantermos a distância.
Ele conservou-se cabisbaixo, sem falar mais nada. Segui calado até a minha mochila, destranquei o acesso principal e voltei para o chuveiro, sem olhar para trás. Apoiei as mãos na parede e deixei que a água fria atingisse com intensidade a minha cabeça, escorrendo pelo meu dorso. Travava os dentes para reprimir um choro de angústia por causa da discussão. Ao escutar a porta batendo com força, expirei uma grande quantidade de ar preso nos pulmões e deixei que algumas lágrimas se misturassem à corrente que descia pelo ralo.
O meu instinto já falhara diversas vezes, mas algo me dizia que deveria lutar. Mais do que nunca, batalharia pelo que decidi acreditar. Durante boa parte da minha vida, a razão teimava em prevalecer. Chegara a hora de abrir espaço para o coração respirar um pouco.
...
Sexta-feira (ou “Quando você percebe que a porta da saída de emergência está localizada ao seu lado”):
A noite anterior seguiu igualmente péssima. Sabia que tinha sido incisivo demais com Gustavo, mas entendia que falei o que ele precisava ouvir. Ainda assim, não consegui dormir. Tentei ler, procurar algo na televisão, observar a rua... Mas nada deu certo. Passei toda a madrugada divagando e refletindo.
Evidentemente, parecia um zumbi quando cheguei ao trabalho. Antes de fazer qualquer coisa, chamei Flávio e expliquei o que tinha ocorrido na aula de natação. Joguei limpo, deixei tudo claro e avisei que, por mais que fosse eternamente grato pelo auxílio, daria um tempo com a execução dos planos. Mais precisamente, com a participação de todos.
Queria que os dois tivessem tempo para manter o relacionamento vivo e saudável. Com o Gustavo de fora, e nossa amizade estremecida, pedir segredo e anonimato nas nossas ações seria imprudente e imaturo da minha parte. Triste com o resultado culminado pela situação, meu funcionário procurou entender a decisão, apesar de discordar com veemência.
Claro que não passava de uma desculpa para reforçar a sua exclusão. Voltaria a agir como um agente solitário. Se a ideia partiu de mim, era o meu dever entender os perigos e obstáculos, e enfrenta-los sozinho. Começou assim, terminaria assim.
Tentei adiantar alguns projetos, mas a manhã resultara infrutífera. Tomado por uma dor de cabeça, preferi voltar para casa na hora do almoço e descansar. Cancelei o encontro com Juliana – em comemoração pelo sucesso da reunião ocorrido na quarta-feira – e dormi a tarde inteira, nocauteado pelo cansaço físico e mental.
Acordei com o barulho do telefone, quando já tinha anoitecido. Era Adriano, ansioso com o meu silêncio. Para quem desejava tanto que aquilo avançasse e evoluísse, eu realmente estava faltando com a devida atenção. Pedi desculpas pela ausência e para compensar, o convidei para fazer algo. Partiu dele a ideia de assistirmos um filme, um programa mais simples e casual. Complementando o espírito preguiçoso, sugeri que fosse até o meu apartamento, e ele acatou.
Levantei para tomar um analgésico e tomar um banho para tentar relaxar. Depois, desci para verificar o que tinha na despensa da cozinha. Antes que cogitasse pedir algo para comer, ele chegou com pipoca e refrigerante. Agradeci a praticidade e, sem cerimônias, o chamei para escolher o que iríamos ver.
- Você está com uma cara horrível – sentou-se ao meu lado no sofá – Tá tudo bem?
- Estaria mentindo se dissesse que sim. Essa semana foi puxada. Quero aproveitar o feriadão para espairecer.
- Poxa... – parecia tristonho.
- Mas não é nada com você, juro – acessei o Netflix e entreguei-lhe o controle remoto – Só tive uma discussão tumultuada com o Gustavo, e não acabou nada bem.
- Eu sei disso.
Virei-me rapidamente e encarei o seu rosto:
- Como assim? Quem te contou?
- Ele me abordou na faculdade, hoje de manhã.
“Ele o que?”, voltei a me inflamar. O irmão da minha sócia parecia não compreender o significado da palavra respeito, e isso me tirou completamente do sério.
(continua)