Eu acordei cedo com o Thi batendo na minha porta. Nós tínhamos combinado de planejar aula, eu só não tinha combinado tão cedo. Eu me levantei e fui atender a porta com a cara toda amassada....
- Bom dia, flor do dia!
- Bom dia o caralho! – Eu disse puto da vida
- Que horror! Isso são modos de receber uma visita?
- Quando a visita chega de madrugada, sim! Fica aí, eu vou tomar um banho antes que eu te bata.
- Cadê a Sophie?
- Tá do jeito que eu deveria estar, dormindo.
- Seu sem graça! Vai logo lá tomar banho. Rápido!
Eu fui para o meu quarto, tomei um banho e coloquei uma roupa de ficar em casa. Resolvi deixar a Sophie dormir mais um pouquinho. Coloquei a babá eletrônica beeeeeem pertinho dela, qualquer barulhinho eu subiria desesperadamente aquelas escadas.
Desci e fui para a cozinha levando o Thi comigo. Preparei um café bem rapidinho já que a Dona Cacilda ainda não havia chegado. Nós tomamos nosso café e fomos para o escritório planejar nossas aulas. Em um determinado momento, eu levantei para ir a cozinha tomar água e cuidar da Sophie que já estava acordada. Eu a arrumei, dei o café dela e a coloquei no carrinho perto de mim lá no escritório. O Bruno chegou, deu um beijo em mim e na Sophie, deu um oi para o Thi e foi dormir um pouco. Ele me disse que teria que ir ao hospital rapidinho depois do almoço.
Thi e eu planejamos a manhã inteira. Quando terminamos, ele foi embora almoçar e se arrumar para voltar para a escola, afinal ainda daríamos aula a tarde. Na hora do almoço, eu acordei o Bruno como ele havia me pedido. Ele estava extremamente cansado. Nós almoçamos, e partimos. Primeiro, nós deixamos a Sophie na casa da Mamam e depois fomos para a escola. Ele me deixou no pátio, eu dei meu beijo rapidinho, como de costume. Mas, ele me puxou e me deu um, dois, três... beijos de verdade.
- Te amo! – Ele disse – Te amo demais!
- Eu também te amo, amor!
Ele me deu mais um beijo demorado, me abraçou e eu sai do carro. Aquele sentimento de algo ruim ainda não tinha me deixado em paz. Eu entrei na escola e dei meus primeiros tempos de aula. No intervalo eu encontrei com o Thi na sala dos professores, estávamos só nós dois lá, por incrível que pareça. Enquanto eu falava com o Thi, meu celular tocou. Eu atendi o telefone. Não acreditei no que eu ouvi. Eu senti minhas pernas fraquejarem e eu caí no chão deixando meu celular cair também.
- Antoine! – Thi correu para me ajudar – O que foi? – ele pegou meu celular – Alô? Quem está falando? Sim! Sou amigo dele, o que aconteceu? – Ele ficou em silêncio e ouviu o que a mulher estava falando do outro lado da linha – Ok! Nós já estamos indo! – Ele encerrou a ligação
- Thi.... ele.... ele...
- Não! Vem! Vamos para o hospital.
Ele me ajudou a me levantar do chão.
- Thi e se...
- Antoine, isso não vai acontecer. Vamos para o hospital. Senta aqui um minuto enquanto eu vou lá na coordenação.
Ele me fez sentar em alguma cadeira na sala dos professores e saiu correndo. Eu só pensava o pior. Meu estomago revirou de tal maneira que eu estava com vontade de vomitar. Meu coração estava acelerado. Eu estava sentindo isso... eu sabia que algo iria acontecer. Se ele tivesse ido direto para o trabalho... Se ele não tivesse vindo me deixar. A culpa era minha? Por que tinha que acontecer isso com ele?
- Vem! – Thi apareceu e foi me erguendo e me levando.
Eu não via ninguém na minha frente. Se alguém falou comigo naquele momento eu não sei dizer. Nós fomos rápido até o estacionamento da escola e entramos no carro. Thi dirigiu rápido para o hospital. Assim que entramos no hospital eu avistei a secretária do Bruno.
- Cadê ele, Aline? O que aconteceu? Ele tá bem?
- Antoine, calma. – ela me abraçou e choramingou
Eu sabia que tinha sido algo grave. Meu coração me dizia isso.
- O que aconteceu, Aline? Me fala, por favor. – Eu já disse chorando
- Ele sofreu um acidente, Antoine.
- Mas ele tá bem? Me diz que ele tá bem...
- Ele chegou aqui com muitas fraturas, os traumatologistas estão com ele. Ele está fazendo exames.
- Entra lá com ele, vê como ele tá.
- Eu não posso! Nenhum de nós pode entrar lá, nós temos que esperar. – Ela chorava junto comigo
- Como foi o acidente?
- Eu não sei te falar, Antoine.
Eu não acreditava que aquilo estava acontecendo. Por que tinha que acontecer isso ele? Qual o motivo disso tudo? Eu queria acordar daquele pesadelo. Eu queria acordar e fingir que nada havia acontecido.
Nós esperamos por horas e ninguém dava nenhuma noticia.
- Aline, vai lá com eles. Já passou muito tempo.
- Os médicos vem avisar, Antoine. Calma!
Eu esperei por mais duas horas e nada.
- Primo! – Pi chegou no hospital, ele já veio me abraçando – Como ele tá?
- Eu não sei, Pi! Nós estamos aqui há horas e não temos nenhuma informação.
- Tu não podes fazer nada? Tu és marido de um dos médicos...
- Nem a secretária do Bruno pode fazer algo... – O choro veio forte novamente, eu abracei meu primo e chorei sem parar.
Eu odiava hospitais, eu só tinha lembranças ruins de hospitais. Foram tantas idas e vindas, tantas doenças, eu quase morri... Agora era ele que estava ali. Agora era ele... O que eu tinha feito para merecer algo desse tipo?
O médico veio até nós.
- Oi, Antoine!
- Oi, Umberto! Como ele está?
- Antoine, a notícia não é boa... – Ele disse sério e eu senti alguém enfiar a mão no meu coração e puxá-lo para fora de mim – O acidente foi muito grave, ele teve várias lesões. Ele teve uma na cabeça muito séria, nós vamos deixa-lo por observação, caso não melhore ele vai ter que ser operado.
Eu segurei forte a mão de alguém. Era a mão do Pi ou do Thi, eram eles que estavam ao meu lado.
- Ele corre risco de vida? – Eu me forcei a perguntar isso
- Infelizmente, sim. Como eu te disse foram... – Eu não ouvi mais nada
Eu abracei um dos meninos. Foi o Thi, eu reconheci pelo cheiro. Eu o abracei forte. Eu sentia como se eu não estivesse ali, a impressão que eu tinha era que eu assistia tudo de cima, de longe. Era como estar preso a um sonho, tu tentas acordar, mas não consegue.
- Antoine? – Thi falava no meu ouvido – Antoine? – Ele nos separou – Antoine? O médico está falando contigo
- Oi? – Eu disse
- Tu queres vê-lo?
- Quero!
- Vem, eu te levo até onde ele está. Tu só vais poder vê-lo através do vidro, tu não podes entrar no quarto, tá?
Ele saiu me levando pelos corredores do hospital, eu já estava perdido. Eu estava perdido em mim mesmo, eu não sabia mais pensar. Tudo estava confuso dentro de mim, eram várias imagens que vinham a minha cabeça. Eram vários sentimentos que invadiam meu coração e minha pele. Eu não sabia o que eu sentia. Nós chegamos na frente do quarto dele. Eu o vi de longe. Não era ele! Não era ele! Não era! Não poderia ser!
De longe eu podia vê-lo todo machucado. A cabeça estava toda enfaixada. O rosto muito inchado. Não era ele! Não podia ser! Era um sonho! Eu falava para mim mesmo. Era um sonho. Eu precisava acordar. Eu ia acordar e ia vê-lo levantar da cama para pegar a Sophie no quarto dela. A Sophie... Como estava a minha filha? Com quem estava a minha filha? Eu precisava vê-la. Mas eu tinha que cuidar dele. Não, espera. Não era ele! Não! Não era! Era engano! Eles estavam mentindo para mim. Era um sonho! Um terrível sonho. Eu ia acordar. Eu sabia disso.
Eu esperei, eu fiquei ali parado olhando para ele. Eu esperei. Não acordei. Eu coloquei minha mão no vidro, só então eu vi que eu tremia. Meu corpo inteiro tremia. Eu chorei.
- Antoine – Pi me abraçou
Eu molhei a camisa do meu primo com as lágrimas.
- Não é ele, Pi! Não é ele, né? Não é!
- Vem, primo! Vamos! Não é bom tu ficares aqui.
Thi e Pi foram me levando. Eu não acreditava que era ele ai naquela cama, por isso eu permiti que me levassem. Eu sabia que eu ia acordar... Aquela situação toda não processava na minha cabeça. Era tudo irreal.
- Como ele está? – Dudu veio chorando ao nosso encontro quando chegamos na sala de espera
Ele me abraçou, me abraçou forte, como só ele fazia. Os meninos me abraçavam, mas o abraço do meu irmão é diferente.
- Mano, como ele tá?
- Não é ele, Dudu. Não é ele!
- Não é ele? – Ele disse se separando de mim
Eu vi o Thi fazer algum sinal para o Dudu, mas eu ignorei. Eu parei de chorar. Eles me sentaram em uma cadeira e lá eu fiquei. Eu via médicos irem e virem, eu vi pessoas falarem comigo, mas eu não entendia o que elas falavam. Eu estava longe, eu via tudo de longe. Tão longe que eu não ouvia o que falavam.
- Antoine, vem, vamos embora.
- Cadê a Sophie? – Eu perguntei
- Tá com a tua mãe. Vamos lá com ela.
- Cadê o Bruno? – Eu perguntei
- Antoine... – Thi me olhou assustado
- Ele vem me buscar?
- Antoine – Dudu disse chorando – o Bruno não vem, mano.
- Por que não?
- Tu viste ele, mano.
- Não, não vi, não.
- Mano... – Ele dizia chorando – Tu viste ele aqui, agora.
- Não, não era ele. O Bruno é médico e não paciente.
Eu estava fora de mim. Não falava nada com nada.
- Vamos leva-lo, Dudu. – Thi disse
Eles me levaram para o estacionamento do hospital, me colocaram no carro do Thi e fomos para a casa da Mamam. Quando eu cheguei lá, Mamam veio correndo me abraçar.
- Meu filho – ela também chorava
- O Bruno tá aqui, Mamam? – Ela me olhou assustada
- Tá, mano! Ele tá aqui! – Thi disse – Vem, vamos lá para o quarto, depois ele vem falar contigo.
Todos se olharam e pareceram se entender assim. Thi me levou para o quarto e me deitou na cama.
- Fala para o Bruno vir aqui, Thi.
- Vou falar. Agora, deita um pouco e dorme tá?
- Eu não tô com sono, Thi.
- Me espera um minutinho aqui, tá?
- Unrum!
Ele saiu do quarto e voltou rapidamente.
- Toma isso aqui.
Ele me deu um copo com um liquido meio amargo.
- Fica deitadinho, tá? Eu vou ficar aqui contigo.
Ele sentou na cama ao meu lado. Eu dormi... Quando eu acordei, o quarto estava escuro, não havia ninguém lá. Eu levantei e a realidade me deu um tapa tão grande que eu cai. Eu lembrei de tudo. Eu lembrei dele. As lágrimas foram involuntárias. Eu fiquei encolhido no chão. Não era um sonho. Agora eu tinha certeza. Era tudo verdade, ele não estava lá comigo. Era ele naquela cama. Era o amor da minha vida naquela cama. Eu não tinha forças para me levantar do chão, então, eu fiquei lá até me encontrarem.
- Antoine! – Thi disse entrando no quarto e me encontrando no chão
- Era ele, Thi! Era ele...
- Era, mano. Era o Bruno.
Escutar o nome dele era o mesmo que receber uma facada no coração.
- Eu vou para o hospital.
- Não, calma! Tu acabaste de levantar.
Mal ele sabia que eu já estava acordado há muito tempo, sofrendo em mim mesmo.
- Eu vou! Não vou deixa-lo sozinho.
- Calma! Vamos lá embaixo, a Tata preparou algo pra tu comeres.
- Eu não tô com fome. Cadê a minha filha?
- Tá lá embaixo.
Eu me livrei do Thi e desci as escadas correndo. A Sophie estava no colo do Dudu. Eu a peguei e a abracei forte. Eu chorei, chorei como nunca. Ela ficou de frente comigo e ficou me olhando. Ela colocava as mãozinhas no meu rosto secando minhas lágrimas. Eu a abracei o quanto eu pude.
Mamam me levou para comer, eu não larguei minha filha um segundo sequer. Ela não chorou, não reclamou, ela ficou quietinha. Parecia que ela entendia o que eu estava sentindo. Me fizeram comer, eu tentei, mas não descia. Depois que viram que eu não iria comer, eles me deixaram.
Eu disse que iria para o hospital, mas não deixaram. O Papa tinha ido para lá, qualquer coisa ele ligaria, me disseram. Mamam e eu arrumamos a Sophie e a colocamos para dormir, já estava tarde.
Nós todos ficamos na sala, esperávamos notícias. E elas vieram. No meio da madrugada Papa ligou falando que eu teria que ir ao hospital. Eles teriam que operar o Bruno, e eu tinha que assinar os papeis.
Eu não sabia o que eu fazia. Eu queria ir ao hospital, eu precisava ir. Mas eu não queria mais ir. Se eu fosse, eu teria que assinar um papel para operarem a cabeça dele. Eu sabia o quanto essas operações eram arriscadas. Mas eu fui, eu tinha que ir.
Fomos Thi, Dudu, Pi e eu. Mamam ficou para cuidar da Sophie. A Jujuba ninguém tinha falado com ela ainda, ligaram mas não conseguiram falar com ela.
- Oi, filhote! – Papa me abraçou quando chegamos no hospital
- Oi, papa! Cadê o Umberto?
- Quem é Umberto, filho?
- O médico dele.
- Ah, sim!
Aline me viu e veio falar comigo, ela me levou até a sala do Umberto.
- Oi, Antoine! – Ele disse me recebendo
- Oi!
- Teu pai já falou contigo.
- Já!
- Antoine, a lesão é mais grave do que esperávamos. Vamos ter que operar urgentemente.
- Tudo bem! – Eu disse
- É uma cirurgia muito delicada, muitíssimo delicada. Há a possibilidade...
- Eu sei, Umberto.
- Tu precisas assinar isso aqui.
Ele me mostrou os documentos, me explicou rapidamente e eu assinei. Ele me disse que o Bruno seria operado naquela noite, que ele já estava sendo preparado, na verdade.
Eu sentia minha cabeça inchada, era como se ela fosse um balão em cima do meu corpo. Eu sentia como se minha alma fosse abandonar meu corpo. Meu corpo inteiro tremia, meu coração estava acelerado. Eu não sei como e nem em que momento eu entrei numa zona de neutralidade. Eu sabia tudo o que meu corpo estava sentido, eu sabia de toda a dor que eu sentia em meu coração, mas por fora, eu reagia diferente.
Eu parei de chorar, eu me acalmei. Eles me falaram que o Bruno havia entrado na sala de cirurgia. Eu orei. Orei para todas as forças do universo. Orei para todos os espíritos evoluídos. Eu pedia ajuda, gritava socorro. Eu sentia a presença de alguns, eu sabia que eu não estava desamparado. A partir do momento que ele entrou na sala de cirurgia, os pelos do meu corpo ficaram eriçados. Eu fiquei constantemente arrepiado, meus olhos se encheram de lágrimas. Mas as lágrimas não eram pelo Bruno. Era a presença dos espíritos que fazia isso. Toda vez que eu sinto a presença deles eu me arrepio por inteiro e lágrimas descem de meus olhos sem meu comando. É como se a luz deles fizesse isso comigo. Eu orei. Orei do início ao fim da cirurgia. Umberto veio falar comigo estava clareando o dia.
- Como foi, Umberto?
- Foi tudo bem, Antoine! Ele vai voltar para a UTI. Ele terá que ficar em observação.
Eu respirei aliviado.
- O perigo ainda não passou, Antoine. Nós precisamos ver como ele vai reagir agora. Fé, meu amigo. Tenha muita fé! – Ele me abraçou
Isso eu sempre tive. Nós ficamos na sala de espera, nem eu e nem meus amigos saíram dali. Só me deixaram ver o Bruno no meio da tarde. Eu tive que entrar na sala 100% esterilizado. Ele estava cheio de tubos. Ele estava inchado e roxo. Não era o meu Bruno ali. Meu Bruno era sinônimo de felicidade, ali não tinha felicidade. Ele estava sofrendo.
Eu toquei a pele dele e é como se eu tivesse sentido choque. Eu sabia que ele não voltaria para mim. Eu chorei. Pelo menos eu acho que eu chorei, não sei se saiam lagrimas. Meu coração foi reduzido a pó. Eu segurei na mão dele e orei. Eu pedi a Deus que ele concretizasse a vontade dele. Por mais que isso doesse mais do que ferro quente em minha pele. Por mais que eu sentisse meu peito sendo rasgado e costurado várias vezes. Eu sabia que tudo acontece de acordo com os desígnios de Deus. Eu pedi para que a vontade divina fosse realizada.
Eu não podia ver ele sofrer daquele jeito, eu me arrepiei. Eu sabia que eles estavam ali, eu sabia que eles estavam cuidando dele. As enfermeiras entraram e pediram para eu sair. Eu dei um beijo na mão dele. Ele estava frio. Eu fechei meus olhos e agradeci a Deus por tudo. Dei um beijo na testa dele e sai.