Pai e Mãe,
Eu abri meu coração. Foi difícil, mas, ao mesmo tempo, me deu um alívio. Pensei muito sobre tudo na minha vida e precisei contar para titia.
***
"Eu sou gay", usei essas palavras para sair do armário. A tia Olívia ficou parada de frente para porta, então, a fechou novamente e sentou ao meu lado. Eu não conseguia dizer mais nada, apenas chorava e esperava a reação dela.
— Eu sei. — titia respirou fundo. — Só estava esperando o seu momento, filho. — ela acariciou meus cabelos, enquanto, eu chorava. — Oh, querido. Nem posso imaginar tudo o que passou na tua cabeça. Eu te amo. Você é quase um filho para mim. Estava com medo?
— Pensei muito na forma que a senhora reagiria. Fiquei com medo de ser expulso de casa.
— Amor. Não, não. Você nunca deveria imaginar isso. — ela falou enxugando minhas lágrimas. — Você é um menino tão especial. Ser gay não te diminui em nada, amor. Foi por isso que você sumiu? Por isso que tratou seus amigos dessa forma?
— Eu precisava de um tempo para pensar. Eu me senti sufocado.
— Yuri. — soltou tia Olívia chorando. — Nunca te expulsaria dessa casa, afinal, ela é sua e dos seus irmãos. Eu não tenho por que ter preconceitos, não sou igual à minha mãe. E seus pais também não eram. E, Yuri, você não está fazendo nada de errado, entendeu? Nunca deixe ninguém fazer você se sentir assim.
— É que eu sou gordo, louco e gay. A senhora não entende.
— Meu amor. Infelizmente, a sociedade é assim, mas nós que te amamos, sabemos quem você é realmente. — tia Olivia me deu um abraço demorado e beijou minha testa. — Eu te amo demais.
— Eu sei, tia. Desculpa. Eu não estou de castigo, né? — questionei dando um riso forçado.
— Ah. Claro que está. Uma semana sem sair de casa. — levantando da cama e pegando meu notebook. — Sem internet também. Cadê o teu celular? — confiscando o meu telefone. — Agora vai tomar um banho e dormir. Tá mais do que na hora.
Foi melhor do que eu imaginei. Pelo menos, agora eu não deveria mais nada para o Vando. Só quero ver a cara dele quando contar que saí do armário e sou oficialmente gay. Ter o amor da minha família é muito mais importante que o resto. Eles são o meu alicerce e guias nessa jornada confusa que chamamos de vida.
Enquanto isso, os meus amigos conversavam sobre minha atitude. Eles ficaram preocupados, ainda mais quando descobriram à respeito dos meus problemas psicológicos.
Para o Brutus, o problema foi o Diogo, que de alguma forma me levou para o lado negro da força. Já Letícia e Ramona lamentaram não ter me dado mais atenção na escola. O Zedu sentiu-se o pior melhor amigo do universo.
Zedu, Brutus, Letícia e Ramona conversavam sobre a minha atitude na frente da casa de Letícia. Meus amigos ficaram preocupados, principalmente após descobrirem meus problemas psicológicos, mas eles também tinham seus próprios demônios.
— Ele escondeu essa parte da internação, né. — ressaltou Brutus.
— Brutus, todos nós temos segredos. Vocês querem contar para o Yuri o que houve no ano passado?
— Verdade. — afirmou Ramona. — Agora, a gente precisa agir naturalmente na frente dele. Vamos dar todo o apoio que o Yuri necessita.
A tia Olívia conseguiu apagar um incêndio, agora faltavam mais dois. Na sala de casa, Orlando e Carlos, esperavam por ela. Depois de avisar que estava tudo bem, titia agradeceu a presença deles e os dispensou.
— Boa noite, meninos. — desejou titia fechando a porta e se assustando com Giovanna.
— Eu falei para eles, tia. — disse Giovanna passando pela sala de pijama e com uma máscara verde no rosto. — São dois teimosos. — subindo às escadas.
Você já se sentiu leve? Não estou falando da massa corporal, mas da sensação de nada estar errado? Apesar do sono, naquela segunda-feira acordei invencível. Claro, que ainda existia a possibilidade dos meus amigos serem assassinos homofóbicos, porém, só o fato de sair do armário já me deixava feliz.
A titia deixou o café da manhã pronto. Acho que ninguém dormiu bem, Giovanna e Richard, pareciam zumbis. A gente nem tocou no assunto do meu desaparecimento, a Van chegou e eles foram para a escola.
Encontrei a turma no ponto de ônibus, tentei agir naturalmente, por um momento, quase não consegui. Fui em silêncio na maior parte do caminho e encontrei o Diogo na frente da escola o que foi um alivio.
Para a minha surpresa, Diogo me abraçou e deu um beijo no meu rosto. O Zedu passou por nós e viu toda a cena. Percebi que o Diogo gostava de provocar o meu amigo, sem motivo aparente, pois, ele é hétero e tem namorada.
— Oficialmente fora do armário. Yeah! — anunciei para o Diogo como se estivesse comemorando um gol, mas de forma contida, afinal, a escola ainda era um terreno perigoso.
— Parabéns, ursão. Agora, posso te namorar?
— Diogo! — o repreendi.
— Brincadeira. Somos só amigos com benefícios. Você prometeu.
— Idiota. — falei subindo à escadaria da escola.
— Ei, você prometeu. Ei, Yuri. — Diogo falou vindo atrás de mim.
Os meus amigos esperavam por mim na entrada do colégio, mas por medo, acabei voltando minha atenção para o Diogo e entrei com ele. Os quatro ficaram bobos com o que aconteceu, geralmente, o excluído era eu. Eles conversavam sobre a atitude que tive, entretanto, a voz de Alicia os fizeram mudar de assunto.
— Ele nem se despediu. — pensou Zedu, olhando para mim e Diogo.
Antes de entrar na classe, o meu celular tocou. Pedi licença do Diogo e atendi. Era a tia Olívia fazendo milhares de perguntas. Garanti que estava tudo bem, e de fato, não menti. Aquela semana tinha todos os requisitos para serem maravilhosas.
Sentei perto do Diogo, percebi que com ele, o grupo dos implicantes nem olhavam na minha direção. Acho que ter cara de bravo e usar tatuagem deve cooperar para essa fama de bad boy do Diogo.
A gente passou o dia trocando recadinhos e desenhos. No intervalo, fomos para o nosso lugar secreto e confesso que dormi, enquanto, o Diogo copiava a lição de matemática.
No segundo tempo, a gente continuo conversando pelos papeis. Geralmente, piadas, comentários ácidos (da parte do Diogo) e desenhos da bandeira ursina. Percebi que tenho ótimos traços e perspectiva aguçada. Ah, o Diogo também aproveitava para me pedir em namoro.
Diogo: (mensagem) – Quando você vai aceitar namorar comigo?
Yuri: (mensagem) – Calma. Te conheço há pouco tempo.
Diogo: (mensagem) – Não quero te perder.
Yuri: (mensagem) – Bobo. Bobo demais.
Diogo: (mensagem) – Bobo por você.
Eu não conseguia evitar sorrir perto do Diogo. Toda aquela marra e ironia era apenas uma fachada de alguém doce, mas incompreendido. Quem não estava gostando nada da nossa aproximação era o Zedu, que temia perder o posto de melhor amigo, mesmo isso sendo impossível de acontecer.
— Que engraçado. — comentou Zedu, olhando para trás.
— O que houve? — cochichou Alicia para o namorado.
— Nada.
— Tá olhando muito lá para o fundão. É para a Luciana? — perguntou Alicia com ciúmes de Zedu.
— Não viaja, Alicia. — pegando o caderno e fingindo estudar.
Na escola da Giovanna, uma novidade deixou todos os alunos animados, o professor de artes estava escrevendo um espetáculo baseado na história da Cinderela. Lógico, que a minha irmã se imaginou vivendo a personagem principal.
— Você vai mesmo participar? — perguntou Cláudia, a primeira e única amiga de Giovanna na vida.
— Claro. Já pensou, irmã, euzinha estrelando a peça da escola? — Giovanna questionou ficando em pé e se imaginando no palco.
— Tem gente se achando. — comentou Niadra, uma das muitas rivais de Giovanna na escola.
— Eu não me acho, querida. Eu sou. — piscando e jogando um beijo para Niadra.
— Você sabe que existe uma audição, né? — soltou Niandra de forma irônica.
— Audição que vou arrasar, querida. — Giovanna usava um "querida" irônico que tirava qualquer pessoa do sério.
O professor apareceu e colocou um cartaz para os alunos interessados poderem assinar. Giovanna, como sempre, assumiu a dianteira, quase empurrou Niandra, e assinou seu nome em letras garrafais, e claro, no 'i' colocou um coração.
Durante a aula de biologia, a Letícia recebeu uma mensagem de Arthur, filho do diretor da produtora responsável pelo comercial dela. No dia da gravação do vídeo, eles trocaram contato, mas o rapaz não aguentou o silêncio da minha amiga.
Arthur: (mensagem de texto) – Oi?
Letícia: (mensagem de texto) – Oi, tudo bem?
Arthur: (mensagem de texto) – Puxa. Se eu não mandar mensagem, morro esperando.
Letícia: (mensagem de texto) – Desculpa, mas estou com muitos trabalhos na escola. Vida de estudante é difícil.
Arthur: (mensagem de texto) – Quero te ver. Será que pode arrumar um tempo para mim nessa sua vida de estudante/modelo?
Letícia: (mensagem de texto) – Posso sim. Hoje à noite te falo.
Arthur: (mensagem de texto) – Fala mesmo? Ou vai me enrolar?
Letícia: (mensagem de texto) – Falo mesmo.
Xereta, Ramona deu um jeito de ler a mensagem e aprovou a atitude de Arthur. Elas começaram a bisbilhotar as redes sociais do garoto, e sim, o Arthur é gato, mas prefiro o meu Zedu, ganha em beleza e simpatia.
— Vocês estão felizes hoje, né? — comentou o professor chamando a atenção da classe. — Yuri, Diogo, Letícia, Ramona, Zedu e Alicia. Sem conversa paralela, por favor. — ele pediu.
Olivia e Carlos. Carlos e Olivia. Havia atração mútua naquela relação, porém, o medo de estragar tudo gritava mais alto. Nos corredores da empresa, a titia mantinha certa distância do estagiário, só que nem sempre o plano funcionava.
Na empresa, a tia Olívia ainda mantinha uma certa distância do Carlos. Falava apenas o necessário, porém, nem sempre seu plano funcionava.
—E o teu sobrinho, o que ele aprontou? — perguntou Carlos abordando tia Olívia na escada.
— Ai, Carlos. — soltou tia Olívia chorando.
— Ei, calma. — o estagiário a levou para uma parte mais tranquila. — O que aconteceu?
— Sou uma péssima tia.
— Como assim? Eu não vi isso ontem. Você estava tão preocupada. Ele te falou isso?
— Não. Na verdade… ele… ele… ele contou que é homossexual. — revelou titia tirando os óculos e enxugando às lágrimas.
— Você está preocupada?
— Estou. Sabe quantos gays morrem no Brasil? — questionou tia Olívia.
— Infelizmente, milhares. Olivia, o teu sobrinho é um garoto esperto e tem uma família muito boa. Ele vai superar, principalmente, com a ajuda de vocês. Agora, posso fazer uma pergunta?
— Pode.
— Por quê você me ligou?
— Bem. — tia Olívia se afastou de Carlos. — É que você é uma das poucas pessoas que eu conheço em Manaus. Carlos, acho melhor a gente voltar ao trabalho, por favor. — desconversou titia.
Naquela tarde, não esperei por ninguém e peguei a condução sozinho. Queria evitar a turma, afinal, ainda não havia sanado todas minhas dúvidas em relação ao Mascarenhas. Também evitei sair de casa para não encontrar o Vando, aquele ridículo.
Durante a semana, recebi a visita do Diogo. Nós estávamos bolando uma ideia para o projeto de história. Ele deu a sugestão de pedimos a ajuda do George que possuía os equipamentos certos.
Adorava conversar com o Diogo, ele tinha várias sacadas legais e sempre demonstrava interesse em conversar comigo. Antes dele ir embora, a gente deu uns beijinhos, ou melhor, beijões. Só não contávamos com a presença da tia Olivia que ficou constrangida ao nos flagrar.
Praticamente expulsei o Diogo de casa, tadinho, mas ele precisava entender que eu ainda estava engatinhando no universo gay. A tia Olívia me chamou até a sala e, cara, tivemos outra conversa sobre responsabilidade e sexo.
— Yuri, meu filho. O mundo é cheio de pessoas e... elas são, como eu posso falar... hummm... perigosas, isso, elas são perigosas. Então, você não deve confiar em ninguém. O sexo pode ser algo bom, porém, precisa de responsabilidade. — ela disse me entregando um pacote de preservativo.
— Tia! — gritei em desespero e vergonha. — Eu já pesquisei muito sobre isso, não se preocupe.
— O que está acontecendo? — perguntou Giovanna aparecendo na sala igual a um fantasma.
— Nada! — gritamos, tia Olivia e eu.
— Que harmonia. — comentou Giovanna sentando no sofá e ligando a TV.
— Vou arrumar a horta. — falei saindo das sala.
— A Zuleide está me chamando, com licença. — inventou titia, saindo em seguida.
— Horta? Zuleide? Esses dois estão estranhos. — soltou Giovanna rindo.
Deveria ter contado para a titia que eu não era mais virgem, mas do que ia adiantar? Ela talvez já desconfiasse. Que vergonha. Nunca gaguejei tanto na minha vida. Apesar de tudo, não conseguia tirar da minha cabeça aquela história do Mascarenhas. Será que eles teriam feito aquilo por maldade?
A vida é muito estranha, no nosso dia a dia, precisamos conviver com um misto de emoções. As minhas preocupações ficavam em segundo plano, por causa dos trabalhos escolares.
Graças a Deus, o George nos emprestou seus equipamentos de filmagem. Ele nos deu um mini curso para manusear as câmeras, logo peguei o jeito. Era complicado, porém, prazeroso. Aprendi sobre foco, ISO, enquadramento e áudio.
Conseguimos também o contato de uma pianista que faria o papel de Chiquinha Gonzaga, então, iniciamos os ensaios para a gravação oficial. Além de tudo, o anjo do George liberou o estúdio para usarmos como cenário.
Após o ensaio, a gente começou a fechar o estúdio. O Diogo ficava com uma cópia da chave. Transei com ele pela segunda vez, ali mesmo, no chão do estúdio. Às vezes, me sentia culpado por usar o corpo do Diogo. Ele era atencioso, carinhoso, mas, no fundo, eu não o amava ou queria um relacionamento. Será que sou um lixo de pessoa?
Fizemos sexo ali no estúdio de George. Estávamos pelados no chão, eu gostava de estar junto ao Diogo, mas ao mesmo tempo sentia que faltava alguma coisa. Ele era atencioso, carinhoso, mas acho que eu não o amava. Às vezes, me sentia uma pessoa horrível.
— Eu gosto de estar com você, Yuri. — ele disse encostando a cabeça no meu ombro.
— Eu também. Você é um bom amigo. — comentei, não queria dar margens para outras interpretações.
— E o Zedu?
— O que tem ele, Diogo? — respirei fundo e tentei manter a paciência.
— Ele sabe que você é gay?
— Não, ainda não.
— Está esperando o quê?
— Não sei. — soltei.
Na verdade, eu sabia. Estava com medo da reação deles e perder tudo o que ganhei nos últimos meses. O Diogo tinha a mania de conseguir interpretar os meus sentimentos. Detestava isso.
***
Richard encontrou no meu quarto as camisinhas que a tia Olivia me deu. Ele guardou no bolso e resolveu levar para a escola. Ele mostrou para todos os amigos. As crianças começaram a encher os preservativos e usaram como bola de vôlei, algumas meninas, amarraram nos cabelos.
Quando a professora do Richard entrou na sala de aula, ela se deparou com várias camisinhas cheias. Revoltada, a mulher gritou com os alunos e exigiu uma explicação.
— Foi você, né? Seu enviado do mal!!! — ela gritou apontando para o meu irmão.
— Não fui eu professora. — disse o Richard fingindo uma inocência que não existia dentro dele, alguns alunos riram da situação.
— Aaaaah! — gritou a mulher espocando os preservativos.
A semana passou correndo, entre os trabalhos e ficadas com o Diogo, não tinha muito tempo sobrando. Desde o dia em que descobri que os meus amigos haviam atacado o Mascarenhas, eu não falava direito com eles. Na hora do intervalo, sempre inventava algo para escapar deles.
Um dia, o Diogo me beijou no nosso lugar secreto, ele falou que ia pegar refrigerante para nós. Quando olhei para trás, o Zedu, a Letícia, o Brutus e a Ramona me olhavam perplexos.
— Por isso que você está nos evitando? — perguntou Zedu, aparentemente, chateado.
— Eu posso...
— Caraca, grandão. — soltou Brutus se aproximando de mim.
— Porquê você não nos contou, Yuri? — quis saber Ramona.
— O que vocês estão fazendo aqui? — questionei me afastando deles.
— Era por causa disso? Era por causa disso que você estava estranho com a gente?
— A gente te seguiu para saber o que você estava aprontando e... — Letícia não conseguiu terminar a frase.
— Eu pensei que fossemos melhores amigos, Yuri. Você faz isso comigo.
Eles começaram a chegar perto demais. De repente, alguns flashs do vídeo com o Mascarenhas apareceram na minha cabeça. Os socos que o Zedu deu, as palavras que as meninas gritaram, o Brutus puxando o cabelereiro pelos cabelos.
— Se afastem. Fiquem longe de mim! — gritei em desespero.